Casas com varandas de traço tradicional alentejano
Foto José Coelho
Coisas de alentejanos
Fazer da cal o bilhete de identidade. Comer
o primeiro u de Augusto. Às Marias chamar Bias. Petiscar ao fim do dia.
Acreditar em Deus e no Partido Comunista. São
coisas de alentejanos.
Explicar
Deus como “alguém que manda” nisto. Casar pela Igreja. Baptizar os filhos. Ser
indiferente à missa. Não faltar à procissão. Desprezar a confissão. Cantar ao
Menino pelos Reis. Chamar magana à morte. Dizer dos familiares que lhe
morreram: “o meu pai que Deus tem” ou “a minha Joaquina que Deus tem”. Tirar o
chapéu diante do cemitério. Temer as trovoadas como os gauleses do Astérix.
Benzer o pão antes de entrar no forno. Não derramar azeite. São coisas de
alentejanos.
Estar
apaixonado quando está triste. “Andar atrás de” quando está apaixonado. Chamar
boda ao casamento e ao copo d’água função. Anteceder os nomes dos filhos do
pronome possessivo meu ou minha: o meu João, a minha Ana. Da mulher dizer
apenas “a minha”, ignorando-lhe o nome. Não ter trambelho para os trabalhos
domésticos. Enforcar-se quando se vê viúvo. São coisas de alentejanos.
Ver cair a
geada. Chamar charoco ao frio e busaranho ao vento gelado. Dizer que está
aspereza quando há temporal. Ao Sol chamar “o astro”, como se fosse o único no
céu. Ao calor chamar calma. Viver com o Suão. Chamar às planuras descampados.
Cerros aos outeiros. À floresta arvoredo.
Olhar o horizonte e saber ter vagar. Dizer: estou à
espera de me ir embora. Declarar com solenidade: devagar que tenho pressa.
Abalar no comboio da Cuba. A Lisboa chamar aldeia grande. Ter parentes na
Brandoa. São coisas de alentejanos.
Estar de
roda do lume. Sentar no chão para conversar. Parar no largo ao olhinho do sol.
Ter sempre a navalhinha petisqueira no bolso das calças. Condutar o pão, o
vinho e a vida. Beber só em companhia. Cantar quando os outros também cantam. À
seca chamar desgraça. Querer a barragem de Alqueva. São coisas de alentejanos.
Porque sim!
Pedro Ferro, in Público, 9 de Outubro de 1995