A pereira (já brava) do Avô José Lourenço, de novo em flor. E lá atrás, a branca empena da casa já sem telhado. Foto José Coelho - Março'20
Sem querer desrespeitar as
indicações das autoridades mas podendo sair de casa em segurança sem qualquer
perigo para terceiros, resolvemos, eu e a minha companheira de vida há já 44 anos, calçar as sapatilhas e rumar aos campos completamente desertos da
nossa Beirã em busca de espargos bravos para desfrutarmos não só do ar puríssimo
como também da sedutora beleza que desponta por toda a parte anunciando a cíclica
roda das estações do ano.
Desde que me conheço que percorro
estes campos saltando paredes, trepando canchos, embrenhando-me pelo meio dos matagais
acompanhado apenas pelo canto da passarada e murmúrio da brisa no arvoredo.
É um mundo muito meu capaz de atenuar qualquer desassossego, seja ele qual for.
Tudo o que nos envolve é a paz e harmonia da natureza no seu estado puro. E nesta
altura do ano o desabrochar da vida vegetal que vai acordando dos frios invernais começa a multiplicar-se novamente em flores que depois serão frutos e tornam estas paradisíacas paisagens em algo único de cores e
odores.
Amendoeiras pereiras e macieiras
floridas juntamente com o vistoso amarelo das maias das giesteiras negrais, misturadas
com a alvura das maias das giesteiras alveirinhas e os rendilhados cachos das
lindíssimas flores dos pilriteiros – por aqui denominados carapeteiros – inundam
o ar dos campos com um inebriante e muito característico perfume para o qual
contribui também a abundância de rosmaninho e a infinita variedade de
lírios ou outras flores silvestres. Não há templo mais belo nem mais harmonioso
no mundo, não há outro lugar onde nos sintamos mais próximos de Deus e tão parte integrante
do Universo.
Foi por aqui que os meus avós
viveram e foram felizes, os meus pais se conheceram e me conceberam, assim como
às minhas irmãs. Por estes campos a minha avó, mãe, tias e primas mondaram
trigo, sacharam milho, cantaram quando felizes ou choraram quando tristes,
semeando neste chão muitas gotas do seu suor e cansaço ou as lágrimas magoadas dos seus
olhos por alguma dor. Foi por aqui que o meu avô, pai, tios e primos
guardaram rebanhos, lavraram a terra à força de braços com charruas e arados
puxados por juntas de bois ou parelhas de machos e mulas, semeando pão e legumes
misturados com as gotas do seu suor.
Estes campos e paisagens fazem
parte de mim como a minha própria pele. Por isso sou meio rústico como eles.
Desde sempre e nos momentos mais complicados da minha vida me refugiei na sua benfazeja
solidão em busca de paz de espírito, de equilíbrio emocional ou daquelas
respostas complicadas que só o silêncio nos consegue dar. Passei horas
caminhando sem destino por cabeços e covas, ou simplesmente sentado sem dar
conta do passar do tempo no cume de algum cancho a ouvir o resmalhar do restolho
pela correria de algum javali ou raposa, que desde que sou gente sempre abundaram
por estas bandas.
No meio das agruras da guerra quando receei
não voltar para casa prometi intimamente a mim mesmo que se voltasse
nunca mais de cá sairia. E quase cumpri essa promessa. Assim que voltei – e disso
darei graças até ao fim da minha vida – fui visitar inúmeras vezes todos estes lugares
para deles desfrutar de novo e matar saudades. Tive que ausentar-me outra
vez para ir cumprir a minha missão de chefe de família, já que aqui não era possível cumpri-la. Mas voltava amiúde. E assim que pude, regressei de vez. Porém,
tudo está hoje totalmente diferente porque quase tudo a vida levou. Entes
queridos e bons vizinhos porque terminaram o seu tempo e muitos quotidianos de outrora como por exemplo o vai-vem dos comboios se extinguiram inexplicavelmente.
Resta hoje pouco mais que as
memórias. Um silêncio absoluto que antigamente só se conseguia “ouvir” nas profundezas dos campos invadiu casas e ruas da aldeia passando a viver dia e noite paredes meias comigo. Ainda assim e se
depender de mim é aqui que desejo terminar os meus dias para continuar a deslumbrar-me com
cada por do sol porque em nenhum outro lugar do mundo são tão magníficos, para poder ouvir o terno trru-trru das rolas e seguir encantando-me com a ousadia dos
melros e dos pintassilgos que teimam em fazer os seus ninhos nas árvores do nosso quintal sem medo de serem incomodados, o que, de certo modo, me deixa algo orgulhoso...
José
Coelho
14.03.2020