sexta-feira, 20 de março de 2020

Há quem só lhes chame anjos. Eu chamo-lhes também amigos.

Dois "patrulheiros" da minha colecção - Foto José Coelho

(...)

Depois de me ouvir atentamente, o meu camarada ficou um bom bocado em silêncio, como que a pensar no que me iria dizer a seguir, sobre tudo aquilo que ouvira. 

E por fim falou:

- Acredito em si e concordo que nada fez de errado, Coelho, mas, sabe, há senhores fulanos de tal por detrás de tudo isso e são eles que querem a sua cabeça. Vá-se embora de Portalegre assim que puder, porque, ao mínimo descuido seu, pode voltar a ter chatices. O comandante da companhia é um bom homem. Vá falar com ele. Peça-lhe que o ajude a ir para perto da sua família. Não tem nada a perder…

Nessa noite dormi mal. Não me saía da cabeça o sensato conselho do velho camarada. E não deixei que arrefecesse. Fui mesmo falar com o homem. Com as pernas meio trémulas subi as escadas de acesso aos claustros do primeiro andar onde se situavam - e situam hoje ainda - os gabinetes do comando. Passei em frente do gabinete do homem que mais mal me tratou em toda a minha vida - também já deu contas ao Criador - mas nem para lá olhei. Dirigi-me ao outro, um pouco mais à frente e ao qual eu pretendia aceder e bati à porta. Era um gabinete simpático, antecedido de uma pequena sala de espera com vários maples, ampla e muito agradável, cuidadosamente arrumada e com um aspecto confortável.

Inspirava tranquilidade e sobretudo a metódica organização do seu inquilino.

Ouvi uma voz mandar-me entrar. Pedi licença e entrei. O comandante da companhia estava a escrever pacificamente. Tinha a secretária repleta de papéis que lia e a seguir rubricava. E tinha também um ar tão bondoso, tão paternal, que fiquei imediatamente à vontade. Cumprimentei-o fazendo a continência e apresentei-me como era da praxe.

- Então o que o traz por aqui? Perguntou, sem nenhum vestígio de arrogância, muito pelo contrário, afavelmente e com uma amabilidade que me surpreendeu, acostumado como estava ao tom irónico, gozão, mordaz, venenoso, como outro senhor oficial falava sempre para mim. E foi aquela sua atitude que pela primeira vez nos últimos dez meses fez com que eu me sentisse gente, relaxasse um pouco e baixasse, aliviado, a minha quase permanente postura auto-defensiva.

Aquele senhor, porque o foi sempre em todas as suas atitudes, era uma personalidade muito querida na cidade de Portalegre e correspondia exactamente ao perfil que o meu camarada me tinha descrito no decorrer da patrulha no dia anterior. Muito boa pessoa! Infelizmente já não está entre nós, mas deixou saudades. Muitas mesmo, quer no coração dos muitos militares que sempre ajudou, quer na comunidade onde quase toda a sua vida exerceu funções profissionais e não só. Mais tranquilo e já sem qualquer vestígio de temor, expus-lhe o que me levava à sua presença:

- Que tinha declaração de transferência pendente para o posto de Castelo de Vide e que tinha lá já em vista uma casa para alugar, em fase de acabamento de obras de restauro – o que era mesmo verdade – e sabia que se ia dar uma vaga naquele posto muito em breve;

- Que andava longe de casa, da mulher e do filho desde que tinha casado há três anos e ambicionava reunir toda a família de uma vez por todas.

- E que vinha pedir-lhe, caso ele quisesse e pudesse, para fazer o favor de me colocar naquele posto quando fosse possível, uma vez que na lista de transferências que tinha sido publicada na ordem de serviço eu constava em número um para lá. Logo, deduzia, não haveria prejuízo para terceiros…

Assim, quase num só fôlego, saiu-me aquilo tudo e também uma lagrimita piegas mas nada fingida a acusar o meu fragilizado estado de espírito por tudo o que vinha passando desde que pusera os pés naquele velho convento, julgando, como qualquer um dos meus outros camaradas, que seria simplesmente para estudar e aprender a ser guarda.

E o distinto senhor ouviu-me do princípio ao fim sem pronunciar uma só palavra. Pude perceber na sua expressão que não ficou nada surpreendido com o meu pedido. Tive mesmo a noção que ele até estaria já à minha espera. A gente percebe essas coisas sempre. Sejam boas ou más, não sei muito bem como, mas percebe-as. Decerto também não era eu o primeiro guarda que ali ia pedir-lhe ajuda.

Logo a seguir ele pegou no telefone e falou para algures. Mandou que lhe trouxessem a pasta das transferências. Pouco depois bateram à porta e um cabo da secretaria veio trazer o que fora solicitado ficando a aguardar novas ordens enquanto a pasta era consultada. O comandante viu o que queria ver, fechou a pasta, devolveu-lha e o cabo voltou a sair.

- Fique descansado – disse-me – vou ver o que se pode fazer. Agora pode ir à sua vida…

Saí com um estranho sossego interior. Tinha corrido muito bem, graças a Deus.

Em boa hora lá fui.

Aquele camarada de patrulha do dia anterior foi decerto o anjo bom que Deus mandou para orientar os meus passos de forma a suavizar um pouco a dura caminhada que eu vinha percorrendo havia já algum tempo.

E não é que, apenas uma semana depois, fui mandado apresentar-me imediatamente no gabinete do comandante de companhia?

Entretanto, e à cautela, eu não tinha falado rigorosamente com ninguém acerca da minha ida àquele gabinete, para evitar mais especulações e comentários.

Lá fui a correr na expectativa que seria qualquer coisa relacionada com o pedido que tinha feito.

E não me enganei.

- Camarada José Coelho tenho boas notícias para lhe dar!  Foi a sua resposta à minha institucional continência.

- Já está a ser preparada a publicação em ordem de serviço e a guia de marcha para você se ir apresentar no posto de Castelo de Vide no dia um de Novembro. Vai substituir o homem que passa à reforma em Dezembro. Vai já um mês antes para se ir adaptando e conhecer o restante efectivo. É um posto famoso pelas boas qualidades dos militares que lá prestam serviço, quase todos homens com uns bons anos de guarda. Requer muito juízo e compostura em virtude da quantidade de turistas que sempre por lá andam. Muitas vezes são até ministros que para ali vão passar férias. Por isso porte-se bem e trabalhe melhor ainda. Espero que não me deixe ficar mal. Já pode então começar a juntar a sua família. E boa sorte!

Assim, de uma assentada, com a serenidade que caracteriza as pessoas de excepção e de boa índole, como se estivesse a anunciar-me a coisa mais simples e banal deste mundo, já que o dia um de Novembro era… 

Dali a dois dias.

(...)

José Coelho in Histórias do Cota
(Não publicadas no livro)