segunda-feira, 2 de março de 2020

A saudade é um mistério inexplicável

Foto Pedro Coelho

No acelerado processo de degradação física e mental a que assisti nas últimas semanas de vida da minha mãe, sucedeu um episódio que me espantou e marcou profundamente. Obviamente eu sabia que ela estava a ir-se embora, a caminhar para o fim do seu percurso terreno e que nada neste mundo poderia reverter a situação. Sentado à cabeceira da cama dela ouvindo-a gemer em surdina uma tarde, perguntei-lhe:

- Mãe, o que tem?

E ela, com a tranquilidade que sempre lhe conheci, respondeu simplesmente:

- Tenho já vontade de ir para junto do teu pai, filho.

Foram dias e semanas muito complicados. Ainda que cientes da inevitabilidade da morte não é nada fácil sentirmos que vamos perder quem mais amamos na vida. E por mais que no nosso íntimo tentemos aceitar que a solução mais justa para essa pessoa que assim está é vê-la partir em paz para ela finalmente descansar, ainda que num cenário de enorme sofrimento jamais estaremos preparados para a sua perda.

Certo dia, inesperadamente, ao final da tarde de um dos seus últimos dias em minha casa, a doentinha desatou a conversar alto não sei para quem, feliz como um passarito que de repente se atreve a saltar do ninho e voa em liberdade. E ria, ria, ria. Primeiro conversou com um João Roma e depois uma MariNeves, moços da sua criação mas já falecidos há muitos anos. E por entre cristalinas gargalhadas várias vezes chamou também pela Ribeira, a cadela rafeira que guardava o Monte do Matinho quando ela era moça.

E o seu rosto resplandecia de alegria como se de facto estivesse no meio de toda aquela gente! Deixando-a prostrada na cama onde jazia há semanas, a sua mente – ou se calhar a saudade, não sei – levou-a para os lugares onde nasceu, onde cresceu e se fez mulher, onde trabalhou, conheceu o meu pai e com ele casou. Nunca, em toda a minha vida, tinha visto a minha mãe tão profundamente feliz a conversar animadamente com pessoas que só ela podia ver e ouvir, provavelmente gente muito boa e a quem quisera muito bem na sua juventude.

Mais de uma vez tentei interromper tão estranha euforia tocando-lhe na cara, nos ombros, segurando-lhe as mãos, fazendo-lhe perguntas:

- Mãe, mãe, está a falar com quem?

Mas ela nunca me ouviu e nunca respondeu. Era como se eu nem ali estivesse, pois continuava a conversar ininterruptamente, deslumbrada com tudo o que inundava a sua memória e assim inopinadamente viera ter com ela, deixando-a tão manifestamente feliz.

Mais estranho ainda foi o tempo que o inusitado êxtase durou. A minha mãe falou, falou, falou, riu, riu, riu, toda essa noite e manhã do dia seguinte perante a minha mais profunda inquietação que nunca me permitiu deixá-la sozinha. Não pronunciou nem uma só vez o nome do meu pai de quem ela tanto gostava, nem o de nenhum de nós, seus filhos e netos, que ela também sempre adorou. Aquela inusitada felicidade que durou dezasseis ou dezassete horas consecutivas era anterior a todos nós, vinha da sua meninice e juventude.

Nem as interrupções necessárias para dela cuidar, tentando minimamente alimentá-la e medicá-la, suspendiam por um segundo que fosse o seu eufórico estado de espírito. Quem passou pela rua, porque o seu quarto – o mesmo onde eu nasci – dá para lá, decerto ouviu a sua alegre voz e sonoras gargalhadas. A minha surpresa e inquietação eram enormes porque nunca tinha assistido a nada semelhante. Mais de uma vez pensei que o pior aconteceria a qualquer instante e quase receava que ela se calasse. Porém, ao início da tarde do dia seguinte, tal como tinha começado, calou-se subitamente. Como um rádio que tivesse sido desligado. E a seguir adormeceu profundamente, num sono de quase tantas horas como as que estivera a conversar e a rir com a rapaziada do seu tempo. Tinha de estar completamente exausta.

Dali a poucos dias começou a ser acometida de violentas convulsões e teve de ser internada de urgência primeiro no hospital distrital, a seguir nos cuidados continuados da nossa aldeia. E dali partiu ao encontro do seu António breves dias depois, agarrada a uma das minhas mãos e também a uma das mãos da minha irmã Joaquina porque estávamos à sua cabeceira a confortá-la na hora da partida. Passado todo este tempo – mais de 5 anos – dou por mim muitas vezes a pensar ainda no insólito episódio que antecedeu em poucos dias o seu adeus definitivo.

José Coelho in Histórias do Cota
(Adaptado)