Foto Pedro Coelho
No acelerado processo de degradação
física e mental a que assisti nas últimas semanas de vida da minha mãe, sucedeu
um episódio que me espantou e marcou profundamente. Obviamente eu sabia que ela
estava a ir-se embora, a caminhar para o fim do seu percurso terreno e que nada
neste mundo poderia reverter a situação. Sentado à cabeceira da cama dela ouvindo-a
gemer em surdina uma tarde, perguntei-lhe:
- Mãe, o que tem?
E ela, com a tranquilidade que sempre
lhe conheci, respondeu simplesmente:
- Tenho já vontade de ir para junto do teu
pai, filho.
Foram dias e semanas muito complicados.
Ainda que cientes da inevitabilidade da morte não é nada fácil sentirmos que vamos perder quem mais amamos na vida. E por mais que no nosso íntimo
tentemos aceitar que a solução mais justa para essa pessoa que assim está é vê-la
partir em paz para ela finalmente descansar, ainda que num cenário de enorme sofrimento jamais estaremos preparados para a sua perda.
Certo dia, inesperadamente, ao final da tarde
de um dos seus últimos dias em minha casa, a doentinha desatou a conversar alto não
sei para quem, feliz como um passarito que de repente se atreve a saltar do
ninho e voa em liberdade. E ria, ria, ria. Primeiro conversou com um João
Roma e depois uma MariNeves, moços da sua criação mas já falecidos há muitos anos.
E por entre cristalinas gargalhadas várias vezes chamou também pela Ribeira, a
cadela rafeira que guardava o Monte do Matinho quando ela era moça.
E o seu rosto resplandecia de alegria
como se de facto estivesse no meio de toda aquela gente! Deixando-a prostrada na cama onde jazia há semanas, a sua mente –
ou se calhar a saudade, não sei – levou-a para os lugares onde nasceu, onde cresceu
e se fez mulher, onde trabalhou, conheceu o meu pai e com ele casou. Nunca, em toda a
minha vida, tinha visto a minha mãe tão profundamente feliz a conversar
animadamente com pessoas que só ela podia ver e ouvir, provavelmente gente
muito boa e a quem quisera muito bem na sua juventude.
Mais de uma vez tentei interromper tão estranha euforia tocando-lhe na cara, nos ombros, segurando-lhe as mãos, fazendo-lhe
perguntas:
- Mãe, mãe, está a falar com quem?
Mas ela nunca me ouviu e nunca respondeu. Era como se eu nem ali estivesse, pois continuava a conversar ininterruptamente, deslumbrada com tudo o que inundava a sua
memória e assim inopinadamente viera ter com ela, deixando-a tão manifestamente feliz.
Mais estranho ainda foi o tempo que o inusitado êxtase durou. A minha mãe falou, falou, falou, riu, riu, riu, toda essa noite e manhã do dia seguinte perante a minha mais
profunda inquietação que nunca me permitiu deixá-la sozinha. Não pronunciou nem
uma só vez o nome do meu pai de quem ela tanto gostava, nem o de nenhum de nós, seus filhos e netos, que ela também sempre adorou. Aquela inusitada felicidade que durou dezasseis ou dezassete horas consecutivas era anterior
a todos nós, vinha da sua meninice e juventude.
Nem as interrupções necessárias para dela cuidar, tentando minimamente alimentá-la e medicá-la, suspendiam por um segundo que
fosse o seu eufórico estado de espírito. Quem passou pela rua, porque o seu
quarto – o mesmo onde eu nasci – dá para lá, decerto ouviu a sua alegre voz e sonoras gargalhadas. A minha surpresa e inquietação eram enormes porque nunca
tinha assistido a nada semelhante. Mais de uma vez pensei que o pior
aconteceria a qualquer instante e quase receava que ela se calasse. Porém, ao início da tarde do dia seguinte, tal
como tinha começado, calou-se subitamente. Como um rádio que tivesse sido
desligado. E a seguir adormeceu profundamente, num sono de quase tantas horas
como as que estivera a conversar e a rir com a rapaziada do seu tempo. Tinha de
estar completamente exausta.
Dali a poucos dias começou a ser
acometida de violentas convulsões e teve de ser internada de urgência primeiro no hospital
distrital, a seguir nos cuidados continuados da nossa aldeia. E dali partiu ao encontro do seu António breves dias depois, agarrada a uma das minhas mãos e também
a uma das mãos da minha irmã Joaquina porque estávamos à sua cabeceira a confortá-la na hora da partida. Passado todo este tempo – mais de 5
anos – dou por mim muitas vezes a pensar ainda no insólito episódio que
antecedeu em poucos dias o seu adeus definitivo.
José Coelho in Histórias do Cota
(Adaptado)