Aos 07 de Março de 2015 nasce este blogue que tal como o seu antecessor TocadosCoelhos pretende apenas ser um ponto de encontro e de entretenimento pautando-se sempre pelas regras da isenção, da boa educação e do civismo em geral. Sejam bem-vindos.
segunda-feira, 28 de dezembro de 2020
Na medida do possível, Boas Festas
Embora não haja muito para brindar neste sombrio 2020 finalmente prestes a terminar, não deixemos que a nossa coragem, força e fé, nos abandonem. Por isso, olhemos com renovada esperança para 2021 que está aí, mesmo, mesmo, ao virar da esquina...
José Coelho - 28.12.2020
quarta-feira, 23 de dezembro de 2020
Desculpe estragar a festa, mas o Natal não existe
Há uma ideia
generalizada de que o Natal é a comemoração do nascimento de Jesus. Desculpe
estragar a festa, mas Jesus não nasceu no dia 25 de dezembro nem há 2018 anos
atrás. Então vejamos.
No tempo do Império Romano, havia uma festa dedicada a Saturno (deus grego Cronos/tempo e da agricultura), denominada de Saturnalia, marcando o solstício de inverno. Era uma data muito importante para os povos agrícolas, como o caso dos romanos. Uma festa popular, para agradar os deuses e pedir que o inverno fosse brando e o Sol retornasse ressuscitado, no início da Primavera, o renascimento da vida. O culto solar era celebrado nos dias 24 e 25 de Dezembro, data de nascimento da divindade. Era um período de suspensão do trabalho, de visitar parentes e amigos, de ser generoso, solidário, de oferecer prendas. Isso lembra o Natal, não?
No século IV, o politeísta imperador Constantino converte-se, oficializa o Cristianismo e nasce, assim, a Igreja Católica. Absorveu e ressignificou práticas pagãs diversas; neste caso, o festejo pagão da Saturnalia, transformando-o numa celebração cristã. O Papa Gregório XIII, no século XVI, com a criação do calendário gregoriano, fez o resto. A partir daí, o nascimento de Cristo (que não nasceu no dia 25 e ninguém sabe a data exata) começa a ser celebrado pelos cristãos.
Portanto, o Natal não existe, pelo menos não da forma como a maioria imagina – o nascimento do menino Jesus.
Em que se transformou, hoje, esta antiga data pagã?
Uma cultura do consumo. Capturada pelo comércio, a data é para vender coisas, na sua grande maioria supérfluas. Uma agressiva propaganda na televisão, jornais, revistas, na internet, provoca uma azáfama, planos, listas de compras, centros-comerciais lotados, lojas abarrotadas de gente, ávidas para comprar. As crianças de hoje, exageradamente mimadas, exigem e obtêm, um sem número de prendas. Às vezes, são tantas que não conseguem abri-las todas ou valorizam mais as embalagens do que os próprios brinquedos.
É a época dos políticos e governos, maioritariamente corruptos, que passam o ano a roubar e a esbanjar os impostos e, nesta data, mandam belas mensagens e participam em jantares junto com os pobres, com os sem abrigo, miseráveis estes que os próprios políticos e agentes do governo criaram (ou ajudaram a criar) ao desviar o dinheiro que poderia garantir a comida e o bem-estar deles o ano todo. É lógico que esta ‘solidariedade’ natalina dos políticos deve ser sempre acompanhada por uma ampla cobertura da imprensa.
É a época das pessoas famosas, do jet-set, atores/atrizes, jogadores de futebol, que passam o ano a ganhar milhões e a sonegar impostos (prejudicando os contribuintes e os mais pobres), aparecerem na TV em programas ‘beneficentes’ para dar a entender que são solidários. Ficam sempre bem vistos perante a sociedade.
As autarquias gastam imenso dinheiro com enfeites de Natal e deixam os desabrigados a dormir na rua. Por exemplo, Lisboa gasta todos os anos mais de um milhão de euros, quantia que dava para abrigar/proteger, tirar da rua, definitivamente, todos os moradores de rua da cidade.
Todos, decisores políticos ou não, deviam assistir ao emocionante filme Cardboard Boxer (2016) para ter uma ideia da vida miserável destes excluídos da sociedade. Mas há outros filmes do género marcantes: deixem para lá o já cansativo Sozinho em Casa (1990), que repete todos os anos e assistam The Saint of Fort Washington (1993), Accidental Friendship (2008), The Soloist (2009), Time Out of Mind (2014), alguns baseados em dramáticos factos reais e todos expondo, de maneira super realista, a extrema dureza da vida de uma pessoa sem um lar para chamar de seu e sem um Shelter (2014), um endereço fixo, para mandar uma carta ao Pai Natal.
O que podemos fazer então para celebrar o Natal? Simples: é ser (genuinamente) solidário com os mais necessitados e, seguindo os verdadeiros ensinamentos de Cristo, respeitar e amar uns aos outros. E, se pensarmos bem, por que é que temos de esperar pelo Natal para fazermos isso? Ah, e o mais importante de tudo: não precisamos de dizer a toda a gente e postar no Facebook as fotos da generosidade. Não se esqueçam da lição de Antoine Saint Exupéry, no Principezinho: “o essencial é invisível aos olhos”.
Donizete Rodrigues, Professor de Sociologia, Universidade da Beira Interior, in Observador.pt - 22.12.2018
terça-feira, 3 de novembro de 2020
A dignidade de chegar a velho
Quando
nasci, o meu pai contava já 42 anos. Casou tarde, aos 36, pese embora a minha mãe
tivesse apenas 20. Tão mais jovem do que ele, deduzo que se terá deixado
encantar por aquele modo meigo e afável que o caracterizavam e com o qual
conquistava a amizade de quase toda a gente que com ele lidava. Cresci por isso
a ver surgirem no seu rosto as primeiras rugas e no seu farto cabelo os
primeiros fios prateados.
Treze anos mais tarde fui integrar a sua equipa de trabalho na pedreira da Lajem do Sapato da qual ele era subempreiteiro por conta do Engº Ventura e também ali todos os seus camaradas eram cinquentões como ele. Foi com esses dignos mestres que aprendi o ofício de cabouqueiro e foi também seguramente entre eles que colhi muitos dos ensinamentos que me moldaram para a vida adulta.
Influenciado pela sã vivência com essa geração grisalha e de muito bom senso, habituei-me a ver o mundo pelo prisma deles, mas, sobretudo, a estimar e respeitar os mais velhos, aqueles a quem, por ser mais fino ou – dizem – menos agressivo, se definem agora como idosos. Mas eu continuo a chamar-lhes velhos como sempre chamei porque entendo que a velhice não é uma vergonha nem um castigo e não deve por isso ser maquilhada com brandas denominações para ser mais bem aceite. Em meu entender, chegar a velho é um privilégio, uma recompensa da Vida, uma bênção para quem conseguiu alcançá-la.
Os rostos enrugados dos anciãos, os cabelos prateados e a sabedoria adquirida no decurso das suas vidas merecem de mim todo o respeito e consideração. Admiro a sua inquestionável dignidade, paciência e conformismo, mas, sobretudo, a enorme generosidade com que aceitam ser esquecidos e a nobreza com que ainda por cima desculpam os filhos que passam meses sem os visitar nos lares onde por conveniência própria os depositaram para lá ficarem o resto dos seus dias.
É vulgar ouvir os gentis argumentos com que ainda quase defendem o indesculpável abandono:
- Coitados! Eles não podem cá vir, têm lá as suas vidas…
Na sua imensa bondade não só aceitam como perdoam e ainda acham que coitados são os que, por absoluto desamor, se esquecem que eles ainda estão vivos. Haverá porventura outras tristes histórias de vida de que todos já ouvimos falar em que os enjeitados foram os filhos por razões mais ou menos censuráveis e é natural que esses infelizes não sintam qualquer compaixão por quem os enjeitou, mas de um modo geral é meu entender que abandonar mãe ou pai, irmãos incapacitados, avós ou outros parentes próximos é uma vergonha, um desmazelo, uma injustiça, uma falta de compaixão, de solidariedade, de respeito e de carácter.
Quantos desses velhinhos sacrificaram toda a sua vida e juventude para darem o que podiam, quantas vezes mais do que aquilo que podiam, para que nada faltasse a quem agora os ignora?
José
Coelho in Histórias do Cota
*Excerto
segunda-feira, 2 de novembro de 2020
sábado, 31 de outubro de 2020
Estórias de roda do lume
Andávamos, havia já dois meses,
de segunda a sexta, a caminho do Centro de Saúde de Castelo de Vide a tratar
uma tendinite do ombro da minha companheira e mãe dos meus filhos. Chegávamos
por volta das onze para só nos despacharmos depois da uma da tarde, o tempo que durava
a fisioterapia. No dia que sucedeu a “estória” que vou hoje escrever, deixei-a no gabinete da fisioterapeuta e fui à farmácia tratar duma receita.
Vi, assim que entrei, sentada
num dos ângulos da farmácia a medir a tensão, a prima-irmã Antonieta, nos seus
bem conservados 83 anos. Fui dar-lhe o beijinho obrigatório porque sou do tempo
em que os nossos pais nos ensinavam a distinguir dessa forma a família mais
chegada. A eles e aos avós pedia-se a bênção dando-lhes um beijinho nas costas da
mão que eles prontamente nos estendiam e a dar dois beijinhos na face aos tios e primos.
Resolvido o que havia a fazer na
farmácia Freixedas convidei-a para tomarmos um café, dado que eu dispunha de mais
de uma hora pela frente. Chuviscava. A prima ainda não tinha tomado o pequeno
almoço por isso foi só atravessarmos a passadeira e instalarmo-nos comodamente
na pastelaria Sol Nascente do outro lado da rua. Inevitavelmente, a conversa
caminhou para as muitas e boas recordações dos nossos entes queridos que já partiram. Depois para os poucos que por cá já restamos, a começar por ela que estava sozinha no
mundo há um par de anos.
Os tios Ciro e Maria d’Alegria seus pais, haviam partido há mais de duas décadas. De velhice. O seu único
irmão o Joaquim, suicidou-se ainda na meia idade, só Deus saberá porquê. O
marido, excelente pessoa o Fernando, finou-se de doença maligna. E ela, embora
lisboeta de toda a sua vida, nunca esqueceu as suas raízes castelovidenses, tendo
comprado uma casa na vila para onde vinha passar longos períodos de repouso e
sossego. Estava agora quase de abalada para a capital porque os invernos lá
são muito mais amenos do que neste serrano Alto Alentejo.
De súbito perguntou-me se costumava
ver o nosso comum primo-irmão Augusto, com quem estava desavinda há vários anos.
E desatou a contar uma estória que eu não conhecia acerca dele. Estória triste
por sinal, coisas de que eu ouvira falar muito pela rama e não havia entendido bem.
Fiquei triste com o que ouvi. Nem a propósito, vimo-lo subitamente a aproximar-se
da pastelaria. Quase cego, ar abatido e muito velhinho para os seus 73 anos.
Levantei-me imediatamente e fui ao seu encontro para lhe dar um beijo como dava sempre que nos encontrávamos e convidá-lo a fazer-nos companhia.
Conheceu-me logo. E vinha chateadíssimo:
- Porra, Zé Manel. Já fiz merda!
- Então, o que aconteceu?
Perguntei surpreso.
- Tratei mal a rapariga do Centro
de Dia e ela não merecia. Se tivesse uma pistola dava um tiro na cabeça!
Retrucou, com manifesta amargura.
Acalmei-o como pude:
- Vá, esquece lá isso. Todos
cometemos erros…
Especada à porta da pastelaria a
equilibrar-se nas duas canadianas, a prima Antonieta olhava-nos atentamente. Não
sei se decidira sair por ver que o Augusto ia entrar, ou se fora só curiosidade. Continuava a chover
aquele molha-parvos miudinho. O Augusto olhou para a Antonieta. A Antonieta
olhou para o Augusto, ambos pouco à vontade mas era visível que algo os unia. Então ela perguntou-lhe:
- Conheces-me? Sabes quem eu sou?
E ele, pouco entusiasmado:
- Conheço! Sei…
Fazia-se já tarde para virmos almoçar
a casa e de súbito pensei de mim para comigo:
- Porque não tentar harmonizar
estes dois? E sem pensar duas vezes, convidei-os:
- Vamos todos almoçar ao Djony?
Não resultou!
A prima Antonieta respondeu
prontamente que havia acabado de tomar o pequeno almoço e já não iria almoçar. E
o Augusto havia já almoçado um arroz de frango no Centro de dia onde tinha
tratado mal a rapariga, aquilo que tanto o apoquentava. Acompanhei-o ao
interior da pastelaria, e, ao passarmos pela prima Antonieta, ela sussurrou-me:
- Paga-lhe lá o café e um bolinho
que eu depois dou-te o dinheiro…
Quem pagou – como fazia sempre – sem
querer ser ressarcido, fui obviamente eu. O primo Augusto quis apenas um carioca
e um copo com água para se acalmar. Despedimo-nos pouco depois do
Augusto que ficou a tomar o seu carioca e da Antonieta que nos aguardava para rumar à sua casa na Carreira de Cima. E fomos mesmo almoçar ao Restaurante
do Djony só os dois eu e a minha Maria, porque, entretanto, já passava das duas da tarde.
Algumas horas depois já em casa,
recebi um telefonema da prima Antonieta muito comovida para me dizer que tinha
passado a tarde inteira a pensar naquele encontro.
E acrescentou:
- Hoje é um dia memorável para nós,
Zé Manel. Foi a primeira vez na nossa vida que nos juntámos, os três primos-irmãos!
Eu, o Augusto e tu…
- É verdade! Não tinha pensado
nisso! Respondi, algo perplexo também.
A Antonieta com 83 anos, o
Augusto com 73 e o Zé Manel com 63.
Ele há coisas!
A Antonieta, nascida e criada em Lisboa. O Augusto, em Luanda, e o Zé Manel na Beirã. Tão longe
sempre uns dos outros. Que destino teria providenciado este raro e imprevisível
encontro naquele dia e hora, na terra que viu nascer a mãe da prima Antonieta,
a mãe e o pai do primo Augusto, assim como o meu saudoso António Coelho, o mais
velho daqueles três irmãos?
Lamentável foi a casmurrice do Augusto e da Antonieta que não deixou que ambos pusessem de parte as suas diferenças e se reconciliassem, como notoriamente devem ter desejado no seu
íntimo, deixando o orgulho falar mais alto de novo. A Vida não lhes permitiu que se voltassem a ver. Esta “estória” aconteceu numa tarde do outono de 2015. Cinco
anos volvidos, nenhum dos dois se encontra já entre nós…
José Coelho in Histórias do Cota
*Excerto
domingo, 25 de outubro de 2020
Porque sim...
Desculpem-me, mas vou explicar porque hoje, 25 de outubro de 2020, decido continuar a usar máscara conforme está determinado, porque, a sério, não entendo tanta revolta pela obrigatoriedade no seu uso:
Cada um tem sua opinião e
esta é a minha:
- Usa cinto no carro?
- Usa capacete na moto?
- Usa o colete salva-vidas
no barco?
- Nos restaurantes pode
fumar?
- Aperta o cinto no avião?
Tudo isso é também
obrigatório!
Então só o uso da máscara é
que é uma ditadura?
Quando eu uso uma máscara,
faço-o porque:
- Sou educado o suficiente
para saber que posso ser assintomático e passar o vírus.
- Não, não vivo
aterrorizado pelo vírus, só quero fazer parte da solução e não do problema.
- Não sinto que o governo
me esteja a querer controlar, sinto-me um adulto que contribui para a segurança
da sociedade em que vivo e a tentar dar o exemplo.
- Se todos pudéssemos dar
mais alguma atenção aos outros, o mundo seria seguramente um lugar bem melhor.
- Usar uma máscara não faz
de mim um fraco, assustado, parvo, ou
"controlado". Faz de mim um cidadão atento à situação
pandémica, responsável para comigo próprio e para com os meus semelhantes.
- Quando pensar na sua
aparência, no seu desconforto, ou na opinião que os outros possam ter de si,
imagine que há um vizinho, um filho, pai, mãe, avô, tia, tio ou amigo que está
com respiração assistida todo entubado nos Cuidados Intensivos e a morrer,
completamente sozinho, sem que nenhum membro da sua família se possa sequer
aproximar da cama.
E pergunte-se se poderia
tê-los ajudado de alguma forma, quem sabe se talvez apenas com o uso de uma
máscara.
Copie e poste no seu mural, se pensa como eu.
terça-feira, 20 de outubro de 2020
O pastor de palmo e meio
Finais
do verão de 1963. Terminada a instrução primária e com o diploma da quarta
classe já acondicionado no baú das roupas de festa onde a tia Florinda Lourenço guardava, numa caixa que fora de uma camisa, todos os papéis importantes da família –
a sua cédula de nascimento e a dos filhos, a cédula de nascimento e a caderneta
militar do seu homem ou a caderneta predial da casa – não havia vagar para brincar mais e chegara
o tempo de começar também a ajudar nas despesas da casa que a vida era dura e o
dinheiro escasso.
Por essa altura já a minha irmã Adelina, a mais velha, trabalhava havia dois ou três anos como aprendiza de alfaiate na Alfaiataria Barradinhas – onde noutro tempo fora a Conservatória do Registo Civil da Beirã e Conservador o senhor Graça – a ganhar cento e cinquenta escudos por mês. E eu não era nem mais, nem menos que ela. Por isso logo no dia seguinte ao do exame que ditou o fim da minha “formação académica” o meu pai “ajustou-me” de pastor na casa do ti Zé Maroco e da ti Olípia, aquele simpático casal de agricultores da casa ao pé da ponte, onde todas as tardes íamos comprar o leite de vaca acabado de ordenhar.
Cento e cinquenta mil réis também. Devia ser com certeza a tabela de vencimentos para aprendizes de qualquer coisa, porque foi a jorna mensal combinada entre o patrão e o meu pai. Exactamente a mesma que a mana Adelina ganhava a costurar fatos de homem no Senhor Barradinhas. Não sendo muito, cinco mil reis por dia dava para comprar um pão e metade de outro pois nessa altura cada um custava três mil réis com trinta centavos (3$30) que toda a gente abreviava dizendo apenas “três mil e trezentos”. O ti Zé Maroco apascentava as vacas turinas, ordenhava-as e cuidava do asseio do estábulo, a ti Olímpia distribuía o leite e cuidava dos seus muitos afazeres domésticos entre os quais a minha merenda.
E eu era o aprendiz de pastor. Pacientemente – porque era muitíssimo boa pessoa – o ti Zé Maroco ensinou-me a mudar o bardo logo à primeira hora da manhã e todos os caminhos e pastagens por onde eu teria de pastorear o rebanho, que, não sendo muito grande, também não era muito pequeno. Seriam umas trinta e tal cabeças, mais coisa menos coisa. E lá ia eu, de bornal às costas com um quarto de pão, uma pequena marmita com toucinho e farinheira fritos, uma fatia de queijo duro e uma córna (recipiente feito de um corno de vaca com tampa de cortiça) com azeitonas, para o almoço e para a merenda.
Já nesse tempo era viciado na leitura e na escrita. À merenda que a ti Olímpia acondicionava no bornal eu juntava sempre algum livro ou caderno para ler ou escrever tranquilo enquanto as ovelhas pastavam. Uma coboiada emprestada pelo Zé Gonçalves ou por outro amigalhaço qualquer da minha idade, ou algum calhamaço mais avultado dos que me emprestava a biblioteca itinerante Calouste Gulbenkian que vinha todos os meses à Beirã para esse efeito. Tudo correu muito bem até um final de tarde em que estávamos, rebanho e pastor, nos confins do isolado Monte Velho, bastante longe da aldeia.
A meio da tarde começaram a surgir do lado dos Carvalhos de Roque uns limbos negros e ameaçadores de trovoada que depressa cobriram todo o céu. Não sei porquê, sempre tive – e tenho ainda – pavor das trovoadas. Bem comecei logo a rezar a “Santa Bárbara bendita que no céu está escrita com papel e água benta” ensinada pela minha avó Amélia. Mas não me tranquilizou nada. Normalmente sentado no cimo de um pedregulho a ler enquanto ia vigiando o rebanho, naquela tarde fui imediatamente para junto das ovelhas para me sentir mais acompanhado.
Não tardou que os relâmpagos se sucedessem ininterruptamente com o consequente e aterrador ribombar dos trovões. E eu quase a chorar já aterrorizado sem saber o que fazer. De súbito um raio atingiu um enorme sobreiro no alto do caminho, rasgando-o de alto a baixo. O estrondo do impacto elétrico com a portentosa árvore e o trovão ensurdecedor imediato foram medonhos. Mijei-me de medo. Não havia mais que pensar. Reuni atabalhoadamente o rebanho e obriguei-o a fazer o percurso todo a correr desde o Monte Velho até ao bardo que estava montado na tapada do ribeiro junto à ponte da Murta. Eram quatro horas da tarde, mas parecia noite.
Fechei o bardo com as ovelhas lá dentro e corri para casa onde a essa hora não estava ninguém porque os pais estavam no seu trabalho, a irmã mais velha na alfaiataria e as mais novas na mestra. Sei que me escondi debaixo da cama e só de lá saí quando deixou de trovejar. Claro que não contei nada a ninguém. O pior foi que o ti Zé Maroco passou no caminho com as vacas turinas a caminho da ordenha e viu o rebanho já fechado no bardo a meio da tarde. A trovoada já soava longe e as ovelhas precisavam de pastorear até ao anoitecer. Como nos outros dias, obviamente.
No dia seguinte, muito enxuto e comprometido, apresentei-me ao serviço ao romper da manhã. Tinha à minha espera, com cara de poucos amigos, um zangado ti Zé Maroco que na véspera tivera de deixar a ordenha das vacas a cargo da ti Olímpia para ir soltar e guardar as ovelhas até ao anoitecer, enquanto eu me escondia da trovoada debaixo da cama.
E
perguntou:
-
Aonde foste ontem Zé Manel?
-
Fui para a minha casa com medo da trovoada. Respondi.
-
Pois agora volta lá para casa que aqui não tens já mais que fazer!
Desolado e com medo da reação do ti Pixorra (alcunha do meu pai) mais da ti Florinda que tinha uma mãozinha muito leve e contundente para acerto de contas, entreguei o bornal da merenda. Tinha apenas onze anos, mas naquele tempo a pouca idade não era motivo para desculpar o que quer que fosse.
Testemunha muda, ainda hoje lá continua no mesmo sítio o velho toco que resta do enorme sobreiro atingido pelo raio naquela tarde, que por cauda disso secou…
José
Coelho
(Texto já publicado em 16 julho'19)
sexta-feira, 9 de outubro de 2020
Olá gente boa...
terça-feira, 22 de setembro de 2020
Outono
O sol que secou a face da terra
Fazendo em restolho os verdes mais
belos
Vai-se já cobrindo no vale e na
serra
De limbos de nuvens que imitam castelos
Sentem-se no rosto aragens suaves
As folhas das árvores amarelecendo
Juntas em bandos vão migrando
as aves
Seu trinar nos campos emudecendo
Da árida terra espreitam sementes
Fecundadas já pelas maresias
E os pastos novos aguardam latentes
Crescem as noites, minguam os dias.
Estações do ano são tempo de vida
Que ciclicamente se repetirá
Tal não acontece à criatura parida
Ao findar seu tempo não mais voltará.
Não chores por aquilo que o tempo levou
Muitas vezes agreste, outras vezes bonança
Vive o teu presente que o ontem passou
O amanhã quem sabe se o tem ou alcança?
Sê bem-vindo outono dos dias
amenos
Também já cheguei ao outono da
vida
Que tal como os teus possam ser serenos
Os dias que eu tiver para a levar vencida.
Beirã, outono de 2016
José Coelho
terça-feira, 15 de setembro de 2020
Essa palavra "saudade"...
Saudade é uma das palavras mais presentes na poesia de amor da língua portuguesa e também na música popular, "saudade", só conhecida em galego e português, descreve a mistura dos sentimentos de perda, distância e amor.
A palavra vem do latim
"solitas, solitatis" (solidão), na forma arcaica de "soedade,
soidade e suidade" e sob influência de "saúde" e
"saudar".
Diz a lenda que foi cunhada
na época dos Descobrimentos e no Brasil colónia esteve muito presente para
definir a solidão dos portugueses numa terra estranha, longe dos entes
queridos.
Define, pois, a melancolia
causada pela lembrança; a mágoa que se sente pela ausência ou desaparecimento
de pessoas, coisas, estados ou ações. Provém do latim "solitáte",
solidão.
Uma visão mais especifista
aponta que o termo saudade advém de solitude e saudar, onde quem sofre é o que
fica a esperar o retorno de quem partiu, e não o indivíduo que se foi, o qual
nutriria nostalgia. A génese do vocábulo está directamente ligada à tradição
marítima lusitana.
A origem etimológica das
formas atuais "solidão", mais corrente e "solitude", forma
poética, é o latim "solitudine" declinação de "solitudo,
solitudinis", qualidade de "solus". Já os vocábulos "saúde,
saudar, saudação, salutar, saludar" proveem da família "salute,
salutatione, salutare", por vezes, dependendo do contexto, sinónimos de
"salvar, salva, salvação" oriundos de "salvare,
salvatione".
O que houve na formação do
termo "saudade" foi uma interfluência entre a força do estado de
estar só, sentir-se solitário, oriundo de "solitarius" que por sua
vez advém de "solitas, solitatis", possuidora da forma declinada
"solitate" e suas variações luso-arcaicas como suidade e a associação
com o acto de receber e acalentar este sentimento, traduzidas com os termos
oriundos de "salute e salutare", que na transição do latim para o
português sofrem o fenómeno chamado síncope, onde se perde a letra interna l,
simplesmente abandonada enquanto o t não desaparece, mas passa a ser sonorizado
como um d. E no caso das formas verbais existe a apócope do e final.
O termo saudade acabou por
gerar derivados como a qualidade "saudosismo" e seu adjetivo
"saudosista", apegado a ideias, usos, costumes passados, ou até mesmo
aos princípios de um regime decaído, e o termo adjetivo de forte carga
semântica emocional "saudoso", que é aquele que produz saudades,
podendo ser utilizado para entes falecidos ou até mesmo substantivos abstratos
como em "os saudosos tempos da mocidade", ou ainda, não referente ao
produtor, mas aquele que as sente, que dá mostras de saudades.
Desconheço o autor
terça-feira, 1 de setembro de 2020
Quando eu era poeta...
sábado, 29 de agosto de 2020
Duras verdades...
Colhemos o que semeamos. É verdade. O tempo é a árvore que
nos dará o fruto dos nossos gestos. Esse fruto será doce ou será amargo,
conforme a ternura ou o azedume que deixarmos pelo caminho que formos lavrando,
e virá sempre no tempo certo. O fruto dos nossos gestos nunca vem fora de
época, sabe sempre quando o devemos provar.
Quem não cuidou, não pode esperar ser cuidado. Quem não foi
capaz de apoiar, não pode esperar ser amparado. Quem não teve uma palavra para
quem a aguardava, não pode esperar nada a não ser silêncio. Quem não soube
estar perto, não pode esperar senão distância. Quem não soube abraçar, não pode
esperar senão braços cruzados. Quem não soube estar presente, não pode esperar
ser visitado. O amor não é uma obrigação. Não é algo só porque sim. Quem não
valorizou, não pode esperar ter valor para quem ignorou.
Quem só foi capaz de agredir, não pode esperar carinho. Quem
esperava poder humilhar contando que essa humilhação fosse esquecida,
enganou-se. Às vezes, sim, o tempo enfraquece a memória, mas aquilo que o
coração guarda nunca se perde. Para o bem e para o mal. Os corações nunca
esquecem. Quem nunca mostrou disponibilidade, quem nunca esteve para o que
desse e viesse, não pode esperar receber amor de volta. O amor só regressa a
quem o soube dar, o amor só regressa de livre vontade. Ninguém ama à força.
In lado.a.lado
sexta-feira, 28 de agosto de 2020
Não deveria ser assim
Algumas vezes dou por mim a pensar o quanto suspirei pela reforma, quantas vezes duvidei se algum dia iria lá chegar. Estava tão mas tão longe de imaginar que depois de finalmente a alcançar iria a curto prazo ter saudades das funções profissionais.
O tempo é sem dúvida, o melhor dos mestres.
Quando somos crianças queremos ser adultos, quando somos adultos queremos conquistar o mundo, depois quando atingimos a maturidade, queremos voltar às nossas raízes. E começamos a pensar como vai ser delicioso ter o tempo todo só para nós, longe de todas as ralações. Puro engano!
Alcançado o sonho, ficamos fartos dele em três
tempos.
Os primeiros meses foram de facto um enorme deleite. Deitava-me à hora que me apetecia sem preocupações para o dia seguinte, levantava-me quando me dava na gana sem propositadamente olhar para o relógio numa atitude de enorme desdém, por durante décadas todos os dias da semana ele estridentemente me haver acordado às seis da manhã:
Ah! Mas a vingança foi-lhe servida fria, como mandam as regras! Desde o primeiro dia de aposentação não mais lhe liguei importância. Tomava o pequeno almoço e a seguir ia para o quintal onde nenhuma erva tinha autorização de assomar sequer à superfície da terra, quanto mais de crescer, porque eu andava continuamente a vigiá-las para as arrancar no momento seguinte.
Depressa porém me dei conta do ridículo daquele comportamento porque não se pode impedir a erva de crescer nem os maios de florir. E aos poucos os dias começaram a ser enormes, insípidos, enfadonhos. Que chatice a reforma! Quem dera ter de levantar-me outra vez manhã cedo para ir trabalhar como antes! Vá lá entender “a gente”. Nunca estamos satisfeitos com aquilo que temos.
Verdade
mesmo!
No
decurso dos meus dias vou envelhecendo rodeado por este mundo estranho que jamais imaginei. Como pode a vida dar estas cambalhotas tão grandes? Recebi dos
meus pais um quotidiano totalmente distinto que não era de todo perfeito, mas onde
existia de um modo geral alguma harmonia. Nos tempos que correm sinto que estamos a deixar para os nossos filhos e netos um mundo muito mais perigoso.
Quando era criança eu sabia o que me esperava quando chegasse a adulto. Trabalhar,
trabalhar, trabalhar. No que quisesse. Padeiro ou sapateiro, cavador ou
pastor, pedreiro ou carpinteiro, ferroviário ou carteiro, operário ou o militar que acabei por ser. Que foi feito desses ofícios? Que futuro estamos a construir em substituição daquele que fomos destruindo sistematicamente? Para que
querem os jovens tantos cursos universitários se ao terminá-los ficam com o canudo
debaixo do braço e têm de emigrar ou ir trabalhar para o que mais depressa lhes
aparece e se aparece?
No outono da minha vida não tenho grandes dúvidas que nada do que eu tive espera as novas gerações num mundo tão diverso daquele que me viu nascer. E não deveria ser assim. Deveria ser muito melhor. Sei e tenho plena consciência que fui um lutador e digo-o convictamente porque consegui alcançar todos os meus objetivos sem ajuda de ninguém, guiado apenas pelo meu querer, pela minha força anímica à custa de muito trabalho e outros tantos sacrifícios.
Sozinho da silva. Em vez de ajudas tive quem algumas vezes tentasse tramar-me.
Mas isso são outros quinhentos.
Tenham uma boa noite...
José Coelho
Memórias que me acompanham...
Alentejo
A
luz que te ilumina,
Terra
da cor dos olhos de quem olha!
A
paz que se adivinha
Na
tua solidão
Que
nenhuma mesquinha
Condição
Pode
compreender e povoar!
O
mistério da tua imensidão
Onde
o tempo caminha
Sem
chegar
Miguel Torga
quinta-feira, 27 de agosto de 2020
Indiscutível...
Raul Minh'alma
segunda-feira, 24 de agosto de 2020
segunda-feira, 3 de agosto de 2020
Poetas que leio...
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.