sábado, 31 de outubro de 2020

Estórias de roda do lume


A lareira cá de casa, numa foto de José Coelho

Andávamos, havia já dois meses, de segunda a sexta, a caminho do Centro de Saúde de Castelo de Vide a tratar uma tendinite do ombro da minha companheira e mãe dos meus filhos. Chegávamos por volta das onze para só nos despacharmos depois da uma da tarde, o tempo que durava a fisioterapia. No dia que sucedeu a “estória” que vou hoje escrever, deixei-a no gabinete da fisioterapeuta e fui à farmácia tratar duma receita.  

Vi, assim que entrei, sentada num dos ângulos da farmácia a medir a tensão, a prima-irmã Antonieta, nos seus bem conservados 83 anos. Fui dar-lhe o beijinho obrigatório porque sou do tempo em que os nossos pais nos ensinavam a distinguir dessa forma a família mais chegada. A eles e aos avós pedia-se a bênção dando-lhes um beijinho nas costas da mão que eles prontamente nos estendiam e a dar dois beijinhos na face aos tios e primos.

Resolvido o que havia a fazer na farmácia Freixedas convidei-a para tomarmos um café, dado que eu dispunha de mais de uma hora pela frente. Chuviscava. A prima ainda não tinha tomado o pequeno almoço por isso foi só atravessarmos a passadeira e instalarmo-nos comodamente na pastelaria Sol Nascente do outro lado da rua. Inevitavelmente, a conversa caminhou para as muitas e boas recordações dos nossos entes queridos que já partiram. Depois para os poucos que por cá já restamos, a começar por ela que estava sozinha no mundo há um par de anos.

Os tios Ciro e Maria d’Alegria seus pais, haviam partido há mais de duas décadas. De velhice. O seu único irmão o Joaquim, suicidou-se ainda na meia idade, só Deus saberá porquê. O marido, excelente pessoa o Fernando, finou-se de doença maligna. E ela, embora lisboeta de toda a sua vida, nunca esqueceu as suas raízes castelovidenses, tendo comprado uma casa na vila para onde vinha passar longos períodos de repouso e sossego. Estava agora quase de abalada para a capital porque os invernos lá são muito mais amenos do que neste serrano Alto Alentejo.

De súbito perguntou-me se costumava ver o nosso comum primo-irmão Augusto, com quem estava desavinda há vários anos. E desatou a contar uma estória que eu não conhecia acerca dele. Estória triste por sinal, coisas de que eu ouvira falar muito pela rama e não havia entendido bem. Fiquei triste com o que ouvi. Nem a propósito, vimo-lo subitamente a aproximar-se da pastelaria. Quase cego, ar abatido e muito velhinho para os seus 73 anos. Levantei-me imediatamente e fui ao seu encontro para lhe dar um beijo como dava sempre que nos encontrávamos e convidá-lo a fazer-nos companhia.

Conheceu-me logo. E vinha chateadíssimo:

 - Porra, Zé Manel. Já fiz merda!

- Então, o que aconteceu? Perguntei surpreso.

- Tratei mal a rapariga do Centro de Dia e ela não merecia. Se tivesse uma pistola dava um tiro na cabeça! Retrucou, com manifesta amargura.

Acalmei-o como pude:

- Vá, esquece lá isso. Todos cometemos erros…

Especada à porta da pastelaria a equilibrar-se nas duas canadianas, a prima Antonieta olhava-nos atentamente. Não sei se decidira sair por ver que o Augusto ia entrar, ou se fora só curiosidade. Continuava a chover aquele molha-parvos miudinho. O Augusto olhou para a Antonieta. A Antonieta olhou para o Augusto, ambos pouco à vontade mas era visível que algo os unia. Então ela perguntou-lhe:

- Conheces-me? Sabes quem eu sou?

E ele, pouco entusiasmado:

- Conheço! Sei…

Fazia-se já tarde para virmos almoçar a casa e de súbito pensei de mim para comigo:

- Porque não tentar harmonizar estes dois? E sem pensar duas vezes, convidei-os:

- Vamos todos almoçar ao Djony?

Não resultou!

A prima Antonieta respondeu prontamente que havia acabado de tomar o pequeno almoço e já não iria almoçar. E o Augusto havia já almoçado um arroz de frango no Centro de dia onde tinha tratado mal a rapariga, aquilo que tanto o apoquentava. Acompanhei-o ao interior da pastelaria, e, ao passarmos pela prima Antonieta, ela sussurrou-me:

- Paga-lhe lá o café e um bolinho que eu depois dou-te o dinheiro…

Quem pagou – como fazia sempre – sem querer ser ressarcido, fui obviamente eu. O primo Augusto quis apenas um carioca e um copo com água para se acalmar. Despedimo-nos pouco depois do Augusto que ficou a tomar o seu carioca e da Antonieta que nos aguardava para rumar à sua casa na Carreira de Cima. E fomos mesmo almoçar ao Restaurante do Djony só os dois eu e a minha Maria, porque, entretanto, já passava das duas da tarde.

Algumas horas depois já em casa, recebi um telefonema da prima Antonieta muito comovida para me dizer que tinha passado a tarde inteira a pensar naquele encontro.

E acrescentou:

- Hoje é um dia memorável para nós, Zé Manel. Foi a primeira vez na nossa vida que nos juntámos, os três primos-irmãos! Eu, o Augusto e tu…

- É verdade! Não tinha pensado nisso! Respondi, algo perplexo também.

A Antonieta com 83 anos, o Augusto com 73 e o Zé Manel com 63.

Ele há coisas!

A Antonieta, nascida e criada em Lisboa. O Augusto, em Luanda, e o Zé Manel na Beirã. Tão longe sempre uns dos outros. Que destino teria providenciado este raro e imprevisível encontro naquele dia e hora, na terra que viu nascer a mãe da prima Antonieta, a mãe e o pai do primo Augusto, assim como o meu saudoso António Coelho, o mais velho daqueles três irmãos?

Lamentável foi a casmurrice do Augusto e da Antonieta que não deixou que ambos pusessem de parte as suas diferenças e se reconciliassem, como notoriamente devem ter desejado no seu íntimo, deixando o orgulho falar mais alto de novo. A Vida não lhes permitiu que se voltassem a ver. Esta “estória” aconteceu numa tarde do outono de 2015. Cinco anos volvidos, nenhum dos dois se encontra já entre nós…

 

José Coelho in Histórias do Cota 

*Excerto