Finais
do verão de 1963. Terminada a instrução primária e com o diploma da quarta
classe já acondicionado no baú das roupas de festa onde a tia Florinda Lourenço guardava, numa caixa que fora de uma camisa, todos os papéis importantes da família –
a sua cédula de nascimento e a dos filhos, a cédula de nascimento e a caderneta
militar do seu homem ou a caderneta predial da casa – não havia vagar para brincar mais e chegara
o tempo de começar também a ajudar nas despesas da casa que a vida era dura e o
dinheiro escasso.
Por essa altura já a minha irmã Adelina, a mais velha, trabalhava havia dois ou três anos como aprendiza de alfaiate na Alfaiataria Barradinhas – onde noutro tempo fora a Conservatória do Registo Civil da Beirã e Conservador o senhor Graça – a ganhar cento e cinquenta escudos por mês. E eu não era nem mais, nem menos que ela. Por isso logo no dia seguinte ao do exame que ditou o fim da minha “formação académica” o meu pai “ajustou-me” de pastor na casa do ti Zé Maroco e da ti Olípia, aquele simpático casal de agricultores da casa ao pé da ponte, onde todas as tardes íamos comprar o leite de vaca acabado de ordenhar.
Cento e cinquenta mil réis também. Devia ser com certeza a tabela de vencimentos para aprendizes de qualquer coisa, porque foi a jorna mensal combinada entre o patrão e o meu pai. Exactamente a mesma que a mana Adelina ganhava a costurar fatos de homem no Senhor Barradinhas. Não sendo muito, cinco mil reis por dia dava para comprar um pão e metade de outro pois nessa altura cada um custava três mil réis com trinta centavos (3$30) que toda a gente abreviava dizendo apenas “três mil e trezentos”. O ti Zé Maroco apascentava as vacas turinas, ordenhava-as e cuidava do asseio do estábulo, a ti Olímpia distribuía o leite e cuidava dos seus muitos afazeres domésticos entre os quais a minha merenda.
E eu era o aprendiz de pastor. Pacientemente – porque era muitíssimo boa pessoa – o ti Zé Maroco ensinou-me a mudar o bardo logo à primeira hora da manhã e todos os caminhos e pastagens por onde eu teria de pastorear o rebanho, que, não sendo muito grande, também não era muito pequeno. Seriam umas trinta e tal cabeças, mais coisa menos coisa. E lá ia eu, de bornal às costas com um quarto de pão, uma pequena marmita com toucinho e farinheira fritos, uma fatia de queijo duro e uma córna (recipiente feito de um corno de vaca com tampa de cortiça) com azeitonas, para o almoço e para a merenda.
Já nesse tempo era viciado na leitura e na escrita. À merenda que a ti Olímpia acondicionava no bornal eu juntava sempre algum livro ou caderno para ler ou escrever tranquilo enquanto as ovelhas pastavam. Uma coboiada emprestada pelo Zé Gonçalves ou por outro amigalhaço qualquer da minha idade, ou algum calhamaço mais avultado dos que me emprestava a biblioteca itinerante Calouste Gulbenkian que vinha todos os meses à Beirã para esse efeito. Tudo correu muito bem até um final de tarde em que estávamos, rebanho e pastor, nos confins do isolado Monte Velho, bastante longe da aldeia.
A meio da tarde começaram a surgir do lado dos Carvalhos de Roque uns limbos negros e ameaçadores de trovoada que depressa cobriram todo o céu. Não sei porquê, sempre tive – e tenho ainda – pavor das trovoadas. Bem comecei logo a rezar a “Santa Bárbara bendita que no céu está escrita com papel e água benta” ensinada pela minha avó Amélia. Mas não me tranquilizou nada. Normalmente sentado no cimo de um pedregulho a ler enquanto ia vigiando o rebanho, naquela tarde fui imediatamente para junto das ovelhas para me sentir mais acompanhado.
Não tardou que os relâmpagos se sucedessem ininterruptamente com o consequente e aterrador ribombar dos trovões. E eu quase a chorar já aterrorizado sem saber o que fazer. De súbito um raio atingiu um enorme sobreiro no alto do caminho, rasgando-o de alto a baixo. O estrondo do impacto elétrico com a portentosa árvore e o trovão ensurdecedor imediato foram medonhos. Mijei-me de medo. Não havia mais que pensar. Reuni atabalhoadamente o rebanho e obriguei-o a fazer o percurso todo a correr desde o Monte Velho até ao bardo que estava montado na tapada do ribeiro junto à ponte da Murta. Eram quatro horas da tarde, mas parecia noite.
Fechei o bardo com as ovelhas lá dentro e corri para casa onde a essa hora não estava ninguém porque os pais estavam no seu trabalho, a irmã mais velha na alfaiataria e as mais novas na mestra. Sei que me escondi debaixo da cama e só de lá saí quando deixou de trovejar. Claro que não contei nada a ninguém. O pior foi que o ti Zé Maroco passou no caminho com as vacas turinas a caminho da ordenha e viu o rebanho já fechado no bardo a meio da tarde. A trovoada já soava longe e as ovelhas precisavam de pastorear até ao anoitecer. Como nos outros dias, obviamente.
No dia seguinte, muito enxuto e comprometido, apresentei-me ao serviço ao romper da manhã. Tinha à minha espera, com cara de poucos amigos, um zangado ti Zé Maroco que na véspera tivera de deixar a ordenha das vacas a cargo da ti Olímpia para ir soltar e guardar as ovelhas até ao anoitecer, enquanto eu me escondia da trovoada debaixo da cama.
E
perguntou:
-
Aonde foste ontem Zé Manel?
-
Fui para a minha casa com medo da trovoada. Respondi.
-
Pois agora volta lá para casa que aqui não tens já mais que fazer!
Desolado e com medo da reação do ti Pixorra (alcunha do meu pai) mais da ti Florinda que tinha uma mãozinha muito leve e contundente para acerto de contas, entreguei o bornal da merenda. Tinha apenas onze anos, mas naquele tempo a pouca idade não era motivo para desculpar o que quer que fosse.
Testemunha muda, ainda hoje lá continua no mesmo sítio o velho toco que resta do enorme sobreiro atingido pelo raio naquela tarde, que por cauda disso secou…
José
Coelho
(Texto já publicado em 16 julho'19)