terça-feira, 29 de outubro de 2019

Só quem semeia, colhe...


























Não tenho conseguido tempo para escrever como gosto, ocupado que ando noutros afazeres. Assim que o outono "amaciou" e vieram os primeiros pingos de chuva imediatamente meti mãos à terra para fazer a horta de inverno, a única que posso fazer pois não tenho poço nem furo no quintal, e, cá neste alto das pedras onde moro na Beirã, nem merece a pena pensar fazê-los porque seguramente não dariam água senão a grande profundidade. E mesmo assim, não sei.

Fazer uma horta de verão a regar da rede pública é de todo impensável quer pela insensatez de esbanjar o precioso líquido potável quer porque seria incomportável em termos de custo. Depois, apesar de não ser demasiado grande o quintal, ainda dá bastante trabalho porque não possuo também nenhum motocultivador e não é pelo seu custo mas porque prefiro fazer como o meu pai fazia e com tanto empenho me ensinou; cavar a terra à enxada, embelgar, semear primeiro, transplantar depois, "acarinhar" continuamente o plantio para eliminar ervas daninhas e precaver pragas.

Além disso adoro mexer na terra com as mãos para sentir o seu odor bendito, ver as frágeis sementes brotar e transformarem-se em robustas plantas, entreter-me dias inteiros sem quase dar pelo correr das horas. Não há nada para mim mais saudável, pacífico e relaxante. Um grande amigo meu e doutor de leis que comprou uma propriedade por estas redondezas, diz, com muita convicção que “um dia na quinta é mais relaxante do que uma ida ao psicólogo”. Concordo. O contacto com a natureza e a paz que naturalmente dela emana são seguramente mais benfazejos que muitos medicamentos.

Como escreveu uma escritora que leio amiúde “nasci em tempos rudes” e neles “aprendi a viver”. Não tenho qualquer dúvida que foi essa rudeza que fez de mim a pessoa que sou porque rudes eram também as gentes desse tempo. Não uma rudeza que maltratasse, muito pelo contrário, eram rudes no trato pela aspereza da vida mas no carácter e nos princípios eram mais puros e cristalinos que os diamantes. São inexplicáveis as saudades que sinto cada dia e cada vez mais deles e de tudo o resto.

Além de conseguir fartura de verduras para consumo familiar todo o inverno com a minha hortazinha, as alfaias agrícolas que herdei do meu pai – enxadas, sachos, forquilhas, ancinhos, rodos, pás e picaretas entre outros – levam-me sem qualquer esforço mental até junto dele quase sempre. Tento imitar o seu modo de fazer, a perfeição do seu trabalho, os toques e retoques para que cada rego ficasse perfeito, retilíneo como feito à régua e esquadro, o modo de plantar, de cuidar, de amanhar tudo, tratando as plantas com o mesmo cuidado e esmero com que sempre tratava as pessoas e os animais, no ingénuo carinho e doce trato que tanto o caracterizavam, fazendo com que toda a gente o estimasse e respeitasse também.

Não é a primeira vez que escrevo isto, mas vou escrevê-lo de novo sem qualquer pudor. A sua presença na minha saudade é tão forte que muitas vezes me parece sentir no quintal e perto de mim o seu odor, do tabaco de onça e mortalha que sempre o acompanhavam e nunca lhe fizeram mal já que até o vício de fumar dele era também diferente de todos os outros que eu conhecia. Não aspirava o fumo para dentro dos pulmões. Limitava-se a queimar o cigarro entre os lábios e a saboreá-lo apenas na boca. Assim viveu tranquilamente comigo até aos 83 anos e foi um tumor na próstata que o venceu.

Suponho que três quartos do meu ADN são dele – até a minha cara hoje é quase uma cópia fiel da sua – e só um quarto é da minha mãe, apesar de também ter sido abençoado com o seu incondicional e profundo amor desde que nasci, até que a perdi. Nunca na minha vida por isso me senti pobre ou carente. O dinheiro sempre foi à conta, algumas vezes a esticar mais que a conta, mas acabou sempre, mais sacrifício, menos esticadela, por chegar. De afectos porém, de amor fraterno, de educação, de respeito e honradez, na nossa casa e família fomos sempre milionários.

Tento, desde que comecei a ser responsável, imitar os meus queridos progenitores e competentes mestres em tudo o que me foi por eles ensinado. Dando como eles o exemplo. Creio que consegui pois os meus filhos e a vida que fazem são indubitavelmente a minha maior felicidade e orgulho. Nem sequer me incomoda nada o facto de nenhum deles ter aprendido o que o pai aprendeu com o avô. A cavar a terra, a semear e plantar nabiças ou couves. Cada geração tem a sua particularidade e nenhuma é melhor ou pior que a anterior, assim como as vindouras não o serão em relação à actual.

Mudam-se os tempos mudam-se as vontades. Mas há uma coisa que nunca mudará venham os tempos que vierem. Quem quiser colher terá que saber semear. Na horta ou na vida.

José Coelho
29.10.2019