Não tenho conseguido tempo
para escrever como gosto, ocupado que ando noutros afazeres. Assim que o outono
"amaciou" e vieram os primeiros pingos de chuva imediatamente meti
mãos à terra para fazer a horta de inverno, a única que posso fazer pois não
tenho poço nem furo no quintal, e, cá neste alto das pedras onde moro na Beirã,
nem merece a pena pensar fazê-los porque seguramente não dariam água senão a
grande profundidade. E mesmo assim, não sei.
Fazer uma horta de verão a regar
da rede pública é de todo impensável quer pela insensatez de esbanjar o
precioso líquido potável quer porque seria incomportável em termos de custo.
Depois, apesar de não ser demasiado grande o quintal, ainda dá bastante
trabalho porque não possuo também nenhum motocultivador e não é pelo seu custo
mas porque prefiro fazer como o meu pai fazia e com tanto empenho me ensinou; cavar
a terra à enxada, embelgar, semear primeiro, transplantar depois, "acarinhar"
continuamente o plantio para eliminar ervas daninhas e precaver pragas.
Além disso adoro mexer na
terra com as mãos para sentir o seu odor bendito, ver as frágeis sementes brotar e transformarem-se
em robustas plantas, entreter-me dias inteiros sem quase dar pelo
correr das horas. Não há nada para mim mais saudável, pacífico e relaxante. Um grande
amigo meu e doutor de leis que comprou uma propriedade por estas redondezas, diz,
com muita convicção que “um dia na quinta é mais relaxante do que uma ida
ao psicólogo”. Concordo. O contacto com a natureza e a paz que naturalmente dela
emana são seguramente mais benfazejos que muitos medicamentos.
Como escreveu uma escritora
que leio amiúde “nasci em tempos rudes” e neles “aprendi a viver”. Não tenho
qualquer dúvida que foi essa rudeza que fez de mim a pessoa que sou porque rudes
eram também as gentes desse tempo. Não uma rudeza que maltratasse, muito
pelo contrário, eram rudes no trato pela aspereza da vida mas no carácter e nos
princípios eram mais puros e cristalinos que os diamantes. São inexplicáveis as
saudades que sinto cada dia e cada vez mais deles e de tudo o resto.
Além de conseguir fartura de
verduras para consumo familiar todo o inverno com a minha hortazinha, as
alfaias agrícolas que herdei do meu pai – enxadas, sachos, forquilhas, ancinhos,
rodos, pás e picaretas entre outros – levam-me sem qualquer esforço mental até
junto dele quase sempre. Tento imitar o seu modo de fazer, a perfeição do seu
trabalho, os toques e retoques para que cada rego ficasse perfeito, retilíneo
como feito à régua e esquadro, o modo de plantar, de cuidar, de amanhar
tudo, tratando as plantas com o mesmo cuidado e esmero com que sempre tratava
as pessoas e os animais, no ingénuo carinho e doce trato que tanto o
caracterizavam, fazendo com que toda a gente o estimasse e respeitasse também.
Não é a primeira vez que
escrevo isto, mas vou escrevê-lo de novo sem qualquer pudor. A sua presença na
minha saudade é tão forte que muitas vezes me parece sentir no quintal e perto de mim o seu odor,
do tabaco de onça e mortalha que sempre o acompanhavam e nunca lhe fizeram mal
já que até o vício de fumar dele era também diferente de todos os outros que eu
conhecia. Não aspirava o fumo para dentro dos pulmões. Limitava-se a queimar o
cigarro entre os lábios e a saboreá-lo apenas na boca. Assim viveu tranquilamente comigo
até aos 83 anos e foi um tumor na próstata que o venceu.
Suponho que três quartos do
meu ADN são dele – até a minha cara hoje é quase uma cópia fiel da sua – e só
um quarto é da minha mãe, apesar de também ter sido abençoado com o seu incondicional
e profundo amor desde que nasci, até que a perdi. Nunca na minha vida por isso me
senti pobre ou carente. O dinheiro sempre foi à conta, algumas vezes a esticar
mais que a conta, mas acabou sempre, mais sacrifício, menos esticadela, por
chegar. De afectos porém, de amor fraterno, de educação, de respeito e honradez,
na nossa casa e família fomos sempre milionários.
Tento, desde que comecei a
ser responsável, imitar os meus queridos progenitores e competentes mestres em
tudo o que me foi por eles ensinado. Dando como eles o exemplo. Creio
que consegui pois os meus filhos e a vida que fazem são indubitavelmente a minha maior felicidade e orgulho. Nem sequer me incomoda nada o facto de
nenhum deles ter aprendido o que o pai aprendeu com o avô. A cavar a terra, a semear e plantar nabiças ou couves. Cada geração tem a sua particularidade e
nenhuma é melhor ou pior que a anterior, assim como as vindouras não o serão em
relação à actual.
Mudam-se os tempos mudam-se
as vontades. Mas há uma coisa que nunca mudará venham os tempos que vierem. Quem
quiser colher terá que saber semear. Na horta ou na vida.
José Coelho
29.10.2019