Ano de 1979
Um
dos meus predicados favoritos foi, desde sempre, a pontualidade. E embora tivesse
todo o dia 22 de Janeiro de 1979 para fazer a minha apresentação no Comando da
Companhia Rural da Guarda Nacional Republicana de Portalegre - assim se
designava aquele comando nessa época - marchei logo na véspera dia 21 para a
cidade, indo pernoitar em casa da minha irmã Adelina que morava na Rua do Canto
da Fava e distava apenas uns escassos cem metros do meu futuro "emprego".
Às
nove horas em ponto do dia aprazado apresentei a guia de marcha que tinha
recebido em Lisboa a um circunspecto e mal-encarado plantão ao posto que se
encontrava num também escuro e feio gabinete logo à entrada da porta onde
estavam já outros camaradas “maçaricos” como eu a efectuarem a sua apresentação.
Nunca
na minha vida tinha entrado num quartel da GNR e a impressão primeira foi de
admiração pelo ar carrancudo de toda aquela gente que se dirigia a nós ou nos
olhava de lado, o intenso cheiro a cavalos que emanava do interior do edifício e,
embora muito limpo e arrumado, o ar envelhecido de tudo aquilo; o edifício, as
paredes, os arcos do corredor, os azulejos, as mobílias.
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Deve ter sido um convento ou uma igreja, pensava de mim para mim, enquanto
éramos encaminhados para uma pequena parada no interior do quartel.
Todo
esse dia foi passado a receber o fardamento, o alojamento e instruções
diversas. Quando finalmente recolhemos à caserna para dormir já o serão ia
adiantado e não se ouvia um murmúrio sequer. O meu estado de espírito estava
por terra, habituado ao bulício das minas, à excelente amizade e camaradagem que
ali tinha vivido até há poucos dias atrás, e, bem cá no fundo, a sombra da
saudade e do arrependimento por ter deixado tudo aquilo perturbava-me
involuntariamente, roubando-me o sono e a vontade de conversar fosse com quem fosse.
Além disso, os
meus 40 camaradas de “escola” não denotavam muito mais ânimo que o meu. Calados e
sorumbáticos todos, cada um recolheu ao seu beliche quase em silêncio sem
denotar grande apetência para início de confianças.
Por essa altura euforia da Revolução de 25 de Abril de 1974 ficara algures já muito lá para trás, porque iam passados quase cinco anos desde a sua célebre “Madrugada”.
Perdido
pelas aldeias dos contrafortes da Serra da Estrela e ocupado nos meus
afazeres de mineiro desde o início de 1975, nunca mais tivera qualquer contacto
com as politiquices da minha Beirã ou de quaisquer outras, ressalvando o insólito
facto de, certa vez, numa assembleia de eleição para a direcção do núcleo local
do sindicato dos mineiros, o meu nome ter sido votado por alguns anónimos,
decerto meus conterrâneos Marvanenses, mas, como o voto fora secreto, nunca
cheguei a saber quem votara em mim.
O
Doutor Teixeira Alves, entretanto, tinha partido definitivamente para Lisboa e
os trabalhadores rurais tinham-se organizado sozinhos
também no seu sindicato sendo apoiados apenas pela estrutura sindical de
Portalegre. Em resumo, eu tinha seguido a minha vida em paz e harmonia e cá
pela terra as coisas tinham também seguido o seu rumo normal sem grandes
sobressaltos.
O
que eu não sabia era que a Reforma Agrária se tinha desenvolvido por todo o
Alentejo durante esses anos em que estive ausente. O meu conhecimento sobre
isso resumia-se ao que ouvia por lá de vez em quando nos noticiários da tv mas aos quais não prestava a menor atenção, pelo simples facto de “aquilo” não me
dizer nada e de não entender “um boi” do seu significado. E ainda também porque andava demasiado ocupado a organizar a minha vida num trabalho que não sendo o melhor do mundo era muito bem pago, com amigos extraordinários que tanto me tinham ajudado a integrar nele, com o meu casamento, com o
nascimento do meu primeiro filho, enfim, coisas normais do
dia-a-dia de qualquer um.
Por tudo isso, a política era, para mim, muito
sinceramente, um absoluto zero.
Só
ao entrar na GNR como Soldado Provisório tomei da pior forma conhecimento de
tudo isso e foi ali que soube como o Alentejo fora palco de ocupações
selvagens de muitas herdades, e que, instigados por determinadas forças,
os trabalhadores rurais que toda a sua vida foram explorados pelos
latifundiários e donos das terras, ali viram a oportunidade de se vingarem dos anos e anos de miséria.
Não
perceberam ou não quiseram perceber que talvez não fosse aquele o caminho
certo, que as ocupações que assim levavam por diante serviam principalmente e sobretudo interesses partidários.
Mas não
pensem vocês também que a “informação” que fomos recolhendo aos poucos nestas primeiras
semanas de alistamento sobre ocupantes e ocupações de herdades por esse
Alentejo fora, tinha alguma intenção formativa para nós, meros projectos-inacabados-de-futuros-guardas-se-acabássemos-o-curso-com-aproveitamento
como diária e pomposamente éramos apelidados pelo oficial e sargento
instrutores, para que o tivéssemos em conta e nunca o esquecêssemos. Não! Não
tinha qualquer intenção formativa. Muito pelo contrário, era eivada de segundas
e perversas intenções. Para
a maior percentagem dos quadros da Guarda do Alentejo, nós, os novos instruendos,
éramos potenciais suspeitos de sermos "comunas".
“Comuna” era um termo
depreciativo usado para apelidar os militantes ou simpatizantes do Partido Comunista Português. E ser comuna em 1979 no entender
de quase todas as patentes da guarda por estas bandas, era ser literalmente comparado a um perverso criminoso. Não havia nada mais grave. E, como a maior parte dos meus camaradas instruendos eram oriundos da zona vermelha do conflito – Ponte de Sor, Montargil, Cano,
Elvas, Monforte, Galveias – se não fossem comunistas eram com toda a certeza filhos, netos, sobrinhos ou primos deles. E por isso mesmo um
potencial perigo de infecção ou contágio para as puríssimas e santíssimas hostes da velha Guarda...
José
Coelho
in Histórias do Cota