Foto Pedro Coelho - Beirã, 10-03-18
Era
aquele Senhor Guarda um beirão dos sete costados, oriundo de uma aldeia muito
conhecida das cercanias de Monsanto, na Beira Baixa. Tendo sido colocado no
Algarve muitíssimo longe de casa e da sua família quando terminou o
alistamento e porque naquele tempo mudar do batalhão do
Alentejo para o batalhão das Beiras demorava sempre uma boa
dúzia de anos, muitos desses “ratinhos” optavam por pedir transferência dos postos mais a sul para outros postos do mesmo batalhão mais a norte como era o caso do posto de Nisa, por fazer “fronteira” com a Beira Baixa.
Por isso os efectivos daquele posto, na
sua esmagadora maioria, eram militares oriundos das cercanias beirãs. Castelo
Branco, Cebolais, Idanha-a-Nova, Monsanto, Sertã, Covilhã, Fundão, Vila Velha
de Ródão, ou de muitas outras localidades vizinhas. E por ali permaneciam o tempo
necessário até serem finalmente transferidos de batalhão e colocados mais perto
das suas terras de origem. Casos houve em que alguns desses beirões acabaram por
se estabelecer. Ou porque trouxeram a família compraram casa e criaram raízes, ou por serem solteiros, conhecerem,
namorarem e acabarem por casar com raparigas de Nisa e arredores, fundando por ali a sua nova família e optando por ficarem definitivamente no Alentejo.
Não era porém o caso deste militar a que me refiro hoje. Mas era de facto uma pessoa excelente. Bom camarada, de uma educação exemplar,
muitíssimo atento aos seus deveres e nunca se escusando em caso algum a tomar
conta de um serviço, por mais bicudo que pudesse ser. E
era também um tudo-nada gago de nascença. Em situações tranquilas quase nem se
dava por isso. Mas se o faziam irritar ficava tão excitado que inconscientemente gaguejava mais.
Como
humanos que somos e com inúmeros defeitos que temos, gostamos por vezes de nos rir à custa dos
outros. Por isso os camaradas o faziam algumas vezes zangar deliberadamente. Fosse por o Benfica ter perdido um jogo e ele ser benfiquista ferrenho, fosse por outro motivo
qualquer, daqui que dali lá o ouvia eu a estrebuchar fulo sem conseguir
expressar-se tão rapidamente como desejava nos seus irados desabafos.
Certo
dia foi o dito cujo militar requisitado pelo tribunal local para depor no
julgamento de um crime de desobediência em que ele e outro camarada tinham
sido intervenientes. O militar mais antigo fora o participante e ele era a
testemunha. Nada de grave nem de transcendente. Apenas um daqueles processos
vulgaríssimos em que a patrulha detectava algo errado e dava uma ordem legal
mas que não era obedecida, o que levava, nesse tempo, à imediata constituição de
arguido do desobediente depois de lhe ter sido correctamente
explicitado que se persistisse na sua atitude estaria a incorrer num crime
previsto e punido por Lei.
Naturalmente, depois da asneira feita, o desobediente quando se via “entalado” num
processo-crime, tratava logo de arranjar um advogado para o defender e
representar. E foi o que aconteceu neste caso também. Ao
longo da minha carreira profissional tive alguns “embates” com esses
excelentíssimos profissionais mas ficámos amigos na mesma porquanto sempre entendi que dentro da sala de audiências eu representava a minha parte de acusar e provar o ilícito criminal que me tinha levado a deter o arguido,
enquanto os senhores doutores advogados cumpriam a parte que lhes competia e
para a qual eram contratados de tentarem atenuar o dolo ou culpa dos seus
clientes usando de todas as estratégias legais para conseguirem a sua absolvição ou pelo menos uma pena mais leve.
Sem
qualquer intento de vangloriar-me mas apenas com profissional satisfação,
posso ainda hoje afirmar que nos muitos processos judiciais e consequentes
audiências de julgamento em que fui interveniente como participante, nenhum
detido por mim foi absolvido alguma vez. Quer isso dizer apenas que só apresentei em tribunal os casos em que não tive qualquer dúvida do ilícito
criminal cometido, pois que, na dúvida, nunca avancei para esse procedimento
Talvez
por isso mesmo sempre senti da parte dos meritíssimos juízes e também dos
excelentíssimos advogados a grata consideração de raramente porem em causa a licitude
das minhas actuações enquanto Órgão de Polícia Criminal. E
era nesse sentido que instruía e orientava também os meus subordinados. Na
dúvida, não se fazer nada. Se dúvidas houvesse quanto à licitude de um
procedimento ou se não fosse imediatamente deduzível o ilícito criminal, essas dúvidas tinham sempre que reverter a favor do suspeito. Em processo penal mais
vale pecar por defeito do que por excesso porque o defeito pode não ser condenável
mas o excesso pode configurar imediatamente o crime de abuso de autoridade e não só.
Não foi o caso do julgamento que aqui estou a relatar hoje. A patrulha tinha agido
em conformidade. Porém e muito naturalmente, durante o decorrer da audiência de
julgamento o senhor doutor advogado de defesa do arguido interrogou os guardas
com aparente animosidade. Actuação normalíssima e própria do calor do debate. Até que, a
dado momento, interpelou a única testemunha, o nosso militar meio-gago, com algumas
perguntas acutilantes, conseguindo enervá-lo.
Em consequência desse nervosismo,
começou o digníssimo Guarda a gaguejar inadvertidamente com maior evidência.
Provavelmente por pensar tê-lo atrapalhado porque isso convinha aos seus
interesses, o senhor doutor insistiu um pouco mais elevando significativamente o tom
da voz. Foi quando, já manifestamente irritado, o nosso militar pediu respeitosamente
licença ao senhor doutor juiz para se dirigir frontalmente ao senhor doutor
advogado, dizendo-lhe na sua mais que justa e irada gaguez:
-
Ó-ó se-se-nh-nhor do-dou-to-tor a-ad-advogado!
O-o-olhe q-q-que e-e-eu n-nã-não t-t-tou a-at-atra-pa-pa-lhado, ne-ne-nem com-com
me-me-medo d-de ssss-ssss-si. Sss-sou-sou, é-é-é ga-ga-go, de-de-de na-na-nas-nascença!...
Não
vos digo, nem vos conto! Quando horas mais tarde no final do julgamento isto foi relatado no posto, chorámos
de tanto rir! E,
muito convicto da justeza da sua valente atitude, o nosso digníssimo camarada retorquia ainda mais convictamente:
-
O-o-o g-ga-ga-jo jj-ju-julgava qq-queu tt-ta-tava co-co-com mm-me-medo d-de-dele…
Não
há muito tempo ainda encontrá-mo-nos no Jumbo de Castelo Branco. Ele
acompanhado pela sua mulher e filhos e eu já só com a minha mulher. Ao reconhecer-nos
dirigiu-se-nos de imediato para nos cumprimentar, e para, em seguida, irmos
todos juntos tomar um café, enquanto recordávamos alegremente esses bons tempos já algo distantes mas fundadores destas recordações tão saborosas, bem como de uma sã amizade para a vida toda…
José
Coelho
In
Historias do Cota