domingo, 11 de agosto de 2019

O doutor...

1974

Foi colocado em meados desse ano de 1974 a chefiar a Alfândega da Estação da Beirã. Era um grande senhor e ainda melhor amigo. De seu nome, Teixeira Alves. Conhece-mo-nos no Clube Recreativo quando a malta por lá se reunia aos serões. Apesar do cargo importante que já exercia era um jovem pouco mais velho que eu. Tinha apetência para a política e nas suas horas livres ensinava e explicava muitas coisas sobre o recente golpe de estado que acabara com a ditadura, bem como tudo o que viria a seguir. Simpatizava com o MDP/CDE, um partido, dizia-se em surdina, filho do PCP. Era uma pessoa de linguagem tão simples que até os mais iletrados ouvintes a entendiam. E manifestava em todas as suas atitudes, uma postura simples e extremamente descomplicada.

Foi por acaso que nos tornámos amigos. Eu continuava sem conseguir ingressar em qualquer empresa pública em virtude das convulsões políticas dessa época e ia fazendo um ou dois meses de trabalho precário aqui ou ali, a “féga” da azeitona de novembro a fevereiro e pouco mais. Por isso o doutor pedia-me para o acompanhar quando ia fazer sessões de esclarecimento pelas localidades da freguesia em virtude de eu conhecer melhor a zona e inclusivamente as pessoas, as quais, muitas vezes, por terem mais confiança comigo do que com ele, me punham as questões e as dúvidas a mim para eu lhas transmitir e ele oportunamente esclarecer.

Foi este excelentíssimo senhor que incentivou a criação dos primeiros sindicatos que começavam também por aqui a surgir. Aquele que teve mais impacto e adesão imediata foi o sindicato dos trabalhadores rurais. Havia no entanto um enorme senão que era o analfabetismo em quase cem por cento desses trabalhadores. Sob a orientação do doutor foi alugada uma casa à entrada da aldeia, depois precariamente mobilada com móveis usados e oferecidos por algumas pessoas. Ali se fundou a primeira sede oficial desse sindicato. 

Procedeu-se depois a eleições entre os sindicalizados e foram eleitos três representantes. Nenhum deles sabia ler nem escrever. Em virtude disso, pediu-me o doutor se não me importava de passar diariamente pela sede do recém-criado sindicato para lhes fazer a escrita necessária que se limitava ao preenchimento das fichas individuais dos novos aderentes, escriturar as quotas mensais e receber o seu pagamento que posteriormente entregava aos elementos eleitos da Direcção.

Nunca auferi pagamento algum pelo que fazia assim como nunca assumi qualquer vínculo partidário. Não tinha pressa em me filiar em nenhum partido porquanto desconhecia completamente o que representavam, ou se aquilo que defendiam me interessava e convinha. Andava naquela fase de ver, ouvir e entender, para só depois decidir. Fui muitas vezes a Portalegre com o doutor, conheci e convivi de perto com algumas individualidades que mais tarde chegaram a deputados da Assembleia da República, mas nunca fui além de mero observador dessas “lides” políticas em que andavam envolvidas todas aquelas personalidades.

De nada me valeram contudo as minhas reservas porque, entretanto, adquiri sem me dar conta disso, o estatuto de “comuna”. E passei a ser olhado com maus olhos por muito boa gente que julgava minha amiga. Ao doutor faziam vénias e lambiam as botas. A mim atiravam pedras. Pudera! Ele era o “senhor doutor”. Tornava-se por isso muito mais fácil dizer de mim o que ninguém se atrevia a dizer dele, não fosse o diabo tecê-las. Porém, como quem não deve não teme, nunca me preocupei muito com isso, apesar de, obviamente, me causarem alguma estranheza, tais atitudes.

Na continuação da autêntica saga que foi a minha vida depois de vir da tropa nesses meses pós 25 de Abril, houve necessidade de nomear provisoriamente três elementos para a Junta de Freguesia da Beirã com o fim de assegurar o funcionamento da mesma até às eleições livres que entretanto estavam a ser preparadas, uma vez que os anteriores membros foram tacitamente destituídos no momento em que o governo de Marcelo Caetano caiu.

Para a Câmara Municipal de Marvão sucedeu exactamente o mesmo, e, do seu elenco provisório, fazia parte um velho e querido conterrâneo, o nosso João Forte – o Barbas – amigo de toda a vida do meu pai. Foi este senhor que me pediu para integrar o elenco provisório da Junta de Freguesia da Beirã enquanto fosse necessário.

Confiadamente, aceitei. Sem hesitar. Dias depois fomos empossados oficialmente em Acta pública na Câmara Municipal de Marvão. Já não recordo a data mas decerto por lá estará registada, em livro próprio, essa nossa tomada de posse. Os nomes dos outros dois elementos não os vou mencionar porque já não se encontram entre nós. Um deles foi então nomeado para Presidente (provisório), eu fui nomeado Secretário (provisório) e o terceiro elemento Tesoureiro (provisório).

Pena que, quase sempre, essa minha permanente disponibilidade para colaborar em tudo o que me é solicitado, só me tem, quase sempre também, trazido enormes decepções. Nunca procurei quaisquer protagonismos, quaisquer vantagens pessoais ou pelouros (vulgo tachos) para os meus. Apenas me interessou sempre e só, o bem comum desta comunidade da qual faço parte e que muito prezo...

José Coelho in Histórias do Cota