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Até ao dia em que comecei a ser
mineiro pensava que o trabalho mais duro e sacrificado que existia no mundo era
o trabalho no campo onde cada camponês tem que levantar-se de madrugada e só se
deita alta noite se quiser tirar algum resultado do seu esforço. Por tudo quanto
conhecia dessa minha anterior vida fiquei pasmado com a dureza do trabalho mineiro,
muito mais perigoso sujo e imprevisível do que qualquer serviço agrícola. Nas
primeiras semanas quando laborava nas profundezas da terra a mais de três mil
metros da boca da mina iluminado apenas pelo pequeno farol encaixado no
capacete e alimentado por uma pilha presa ao cinto das calças, mais de uma vez
senti o desconforto claustrofóbico comum a todos os principiantes mineiros no meio de tanta
humidade e escuridão, habituado ao ar puro dos campos onde eu sempre
vivera até então.
Não foi fácil mas acabei por me
adaptar e por lá fiquei nos cinco anos seguintes. Obviamente, também não era fácil
para quantos lá trabalhavam mesmo já há anos, mas toda a gente acabara por se habituar, salvo raras excepções, pois também acontecia de vez em quando aparecer um ou outro
principiante que entrava uma vez na mina e no dia seguinte desistia do
emprego não voltando lá mais. Não é por acaso que os mineiros mais velhos morrem quase
todos pouco depois dos 50, vítimas de silicose pulmonar. Pela minha parte comecei
por ser ajudante do destemido Castelovidense José Maria mais conhecido pela
alcunha de “Mocho”. Bom rapaz sem dúvida, mais ou menos da minha idade,
marteleiro de chaminés e tão aventureiro que acabou por morrer esmagado em 1980
debaixo de um liso enorme que se desprendeu da abóbada de uma galeria poucos
meses depois de eu ter deixado as minas para ingressar na GNR.
E o que eram as ditas chaminés?
Nada mais do que poços abertos de
baixo para cima afim de ligarem verticalmente as galerias do nível 3 às do nível
2, ou do nível 2 às do nível 1. As Minas da Panasqueira têm dezenas de
quilómetros de galerias em níveis sobrepostos a cada 100 metros de
profundidade, o que quer dizer que o nível 3 se encontra à profundidade
vertical de 200 metros. Mas depois cada um desses níveis tem uma imensa
rede de galerias paralelas ligadas entre si que avançam serras adentro por mais
de cinco quilómetros na horizontal.
Marcado pelos topógrafos o local
exacto onde era preciso abrir a nova chaminé, começava por se abrir um buraco
redondo no tecto da galeria com um martelo pneumático vertical movido a ar
comprimido. Depois de todos os buracos feitos com brocas de 1,20 m, eram
carregados pelo Zé Maria, ajudado por mim, com velas de dinamite previamente
preparadas com detonadores ligados entre si e cujo fio condutor ligávamos
depois já longe da chaminé a um sistema eléctrico central que a uma determinada hora
iria ser explodido por controle remoto. Assim avançavam, de baixo para cima, aqueles
poços ao contrário.
À medida que íamos subindo em
direção à galeria superior onde iria certeiramente terminar, 100 metros mais acima,
tínhamos que ir também todos os dias chumbando à parede, de um dos lados do poço, umas grades de aço com cremalheira lateral onde encaixavam as rodas dentadas do elevador dobrável movido
também a ar comprimido e onde levávamos sempre tudo de uma vez. O martelo e as
brocas, mais uma grade para acrescentar outro metro e meio de ascensão ao elevador,
a dinamite para depois carregarmos os novos furos, os detonadores e os fios elétricos
para os armadilhar. Cada equipa de cada frente trabalhava sempre e só no mesmo
sector. Não havia misturas por questões óbvias de segurança.
O pequeno elevador era de plataforma
redonda como a chaminé (ou poço) e com o diâmetro adequado para ir subindo sem
problemas pelo buraco acima. Tinha um “chapéu” metálico tipo sombrinha que se
abria e nos protegia dos calhaus que ficavam suspensos no rebentamento dos
explosaivos e se iam desprendendo do tecto pela trepidação causada pelo
elevador à medida que este ia subindo. O estrépido dos calhaus a baterem na
chapa de ferro a um palmo das nossas cabeças era ensurdecedor. E atemorizante
também, apesar de todo aquele equipamento ter sido pensado para proteger quem
lá tinha que trabalhar.
Chegados finalmente lá acima, a
primeira coisa que tínhamos que fazer era chumbar a nova grade do elevador à parede para
ele poder subir e aproximar-nos mais do tecto afim de conseguirmos
escombrar convenientemente as pedras ainda soltas até ficar só rocha firme
para furar de novo e voltar a carregar. Confesso que pensei algumas vezes que
não tendo “cascado” no Maiombe ainda iria acabar os meus dias ali nas entranhas da
terra. Pelo sim pelo não era meu hábito proteger sempre com o corpo a dinamite e os detonadores agachando-me sobre eles não fosse alguma
pedra ao soltar-se do tecto fazer ricochete na parede do poço e cair-lhes em
cima provocando o seu rebentamento. Já dizia a minha avó que cautela e caldos
de galinha, nunca fizeram mal a ninguém…
O Zé Maria ria, ria, divertidíssimo com os meus receios pois andava naquilo há 3 ou 4 anos e tratava
as pedras, os explosivos e o perigo por tu. Por isso se calhar morreu,
coitado! Por excesso de confiança menosprezou a sua segurança. O nosso capataz
era, por sua vez, um ilustre Marvanense. Do Jardim. Grande homem e mineiro de mão
cheia. Tão audaz e aventureiro que um dia ia ficando sem um braço. Ao accionar
um daqueles tais elevadores das chaminés, inadvertidamente deixou prender a manga
do casaco nos dentes mecânicos. E até conseguir parar o elevador, este quase lhe arrancou o braço. Teve
que ser submetido a várias intervenções cirúrgicas e a parte do braço que o elevador lhe
arrancou teve que ser substituída por um enxerto retirado de outra parte do seu
corpo.
Mal tomou conhecimento que eu era também de Marvão logo tratou de me tirar do perigoso serviço das chaminés para me nomear escriturário para fazer o ponto escrito dos mineiros de cada turno naquele sector à sua responsabilidade. Era o Sector das Preparações que
consistia em avançar com os túneis serra dentro para preparar o acesso à
exploração do volfrâmio que viria atrás, transformando os nossos primeiros pequenos
túneis em autênticas catedrais abobadadas, imensas galerias de onde era extraído
o minério. Suponho que ainda hoje será assim embora provavelmente com métodos mais
sofisticados e menos perigosos dos de então.
Era também o meu chefe um Marvanense muito famoso pela sua experiência profissional dentro da mina.
Dizia-se por lá naquele tempo que ele, juntamente com o meu primo João Gaspar – o
que me levou para lá e já faleceu - os dois melhores mineiros das Minas da Panasqueira.
Tinham, por isso mesmo, um estatuto muito particular junto dos engenheiros e de
todo o staff da administração do couto mineiro. Foi pela mão de ambos que eu
também consegui vingar e adaptar-me àquela vida ao ponto de ter decidido pouco
depois casar e procurar casa para me estabelecer ali definitivamente com a
família...
José Coelho
in Histórias do Cota