sábado, 3 de agosto de 2019

Não foi pera doce...

Imagem copiada do Google

Até ao dia em que comecei a ser mineiro pensava que o trabalho mais duro e sacrificado que existia no mundo era o trabalho no campo onde cada camponês tem que levantar-se de madrugada e só se deita alta noite se quiser tirar algum resultado do seu esforço. Por tudo quanto conhecia dessa minha anterior vida fiquei pasmado com a dureza do trabalho mineiro, muito mais perigoso sujo e imprevisível do que qualquer serviço agrícola. Nas primeiras semanas quando laborava nas profundezas da terra a mais de três mil metros da boca da mina iluminado apenas pelo pequeno farol encaixado no capacete e alimentado por uma pilha presa ao cinto das calças, mais de uma vez senti o desconforto claustrofóbico comum a todos os principiantes mineiros no meio de tanta humidade e escuridão, habituado ao ar puro dos campos onde eu sempre vivera até então.

Não foi fácil mas acabei por me adaptar e por lá fiquei nos cinco anos seguintes. Obviamente, também não era fácil para quantos lá trabalhavam mesmo já há anos, mas toda a gente acabara por se habituar, salvo raras excepções, pois também acontecia de vez em quando aparecer um ou outro principiante que entrava uma vez na mina e no dia seguinte desistia do emprego não voltando lá mais. Não é por acaso que os mineiros mais velhos morrem quase todos pouco depois dos 50, vítimas de silicose pulmonar. Pela minha parte comecei por ser ajudante do destemido Castelovidense José Maria mais conhecido pela alcunha de “Mocho”. Bom rapaz sem dúvida, mais ou menos da minha idade, marteleiro de chaminés e tão aventureiro que acabou por morrer esmagado em 1980 debaixo de um liso enorme que se desprendeu da abóbada de uma galeria poucos meses depois de eu ter deixado as minas para ingressar na GNR.

E o que eram as ditas chaminés?

Nada mais do que poços abertos de baixo para cima afim de ligarem verticalmente as galerias do nível 3 às do nível 2, ou do nível 2 às do nível 1. As Minas da Panasqueira têm dezenas de quilómetros de galerias em níveis sobrepostos a cada 100 metros de profundidade, o que quer dizer que o nível 3 se encontra à profundidade vertical de 200 metros. Mas depois cada um desses níveis tem uma imensa rede de galerias paralelas ligadas entre si que avançam serras adentro por mais de cinco quilómetros na horizontal.

Marcado pelos topógrafos o local exacto onde era preciso abrir a nova chaminé, começava por se abrir um buraco redondo no tecto da galeria com um martelo pneumático vertical movido a ar comprimido. Depois de todos os buracos feitos com brocas de 1,20 m, eram carregados pelo Zé Maria, ajudado por mim, com velas de dinamite previamente preparadas com detonadores ligados entre si e cujo fio condutor ligávamos depois já longe da chaminé a um sistema eléctrico central que a uma determinada hora iria ser explodido por controle remoto. Assim avançavam, de baixo para cima, aqueles poços ao contrário.

À medida que íamos subindo em direção à galeria superior onde iria certeiramente terminar, 100 metros mais acima, tínhamos que ir também todos os dias chumbando à parede, de um dos lados do poço, umas grades de aço com cremalheira lateral onde encaixavam as rodas dentadas do elevador dobrável movido também a ar comprimido e onde levávamos sempre tudo de uma vez. O martelo e as brocas, mais uma grade para acrescentar outro metro e meio de ascensão ao elevador, a dinamite para depois carregarmos os novos furos, os detonadores e os fios elétricos para os armadilhar. Cada equipa de cada frente trabalhava sempre e só no mesmo sector. Não havia misturas por questões óbvias de segurança.

O pequeno elevador era de plataforma redonda como a chaminé (ou poço) e com o diâmetro adequado para ir subindo sem problemas pelo buraco acima. Tinha um “chapéu” metálico tipo sombrinha que se abria e nos protegia dos calhaus que ficavam suspensos no rebentamento dos explosaivos e se iam desprendendo do tecto pela trepidação causada pelo elevador à medida que este ia subindo. O estrépido dos calhaus a baterem na chapa de ferro a um palmo das nossas cabeças era ensurdecedor. E atemorizante também, apesar de todo aquele equipamento ter sido pensado para proteger quem lá tinha que trabalhar.

Chegados finalmente lá acima, a primeira coisa que tínhamos que fazer era chumbar a nova grade do elevador à parede para ele poder subir e aproximar-nos mais do tecto afim de conseguirmos escombrar convenientemente as pedras ainda soltas até ficar só rocha firme para furar de novo e voltar a carregar. Confesso que pensei algumas vezes que não tendo “cascado” no Maiombe ainda iria acabar os meus dias ali nas entranhas da terra. Pelo sim pelo não era meu hábito proteger sempre com o corpo a dinamite e os detonadores agachando-me sobre eles não fosse alguma pedra ao soltar-se do tecto fazer ricochete na parede do poço e cair-lhes em cima provocando o seu rebentamento. Já dizia a minha avó que cautela e caldos de galinha, nunca fizeram mal a ninguém…

O Zé Maria ria, ria, divertidíssimo com os meus receios pois andava naquilo há 3 ou 4 anos e tratava as pedras, os explosivos e o perigo por tu. Por isso se calhar morreu, coitado! Por excesso de confiança menosprezou a sua segurança. O nosso capataz era, por sua vez, um ilustre Marvanense. Do Jardim. Grande homem e mineiro de mão cheia. Tão audaz e aventureiro que um dia ia ficando sem um braço. Ao accionar um daqueles tais elevadores das chaminés, inadvertidamente deixou prender a manga do casaco nos dentes mecânicos. E até conseguir parar o elevador, este quase lhe arrancou o braço. Teve que ser submetido a várias intervenções cirúrgicas e a parte do braço que o elevador lhe arrancou teve que ser substituída por um enxerto retirado de outra parte do seu corpo.

Mal tomou conhecimento que eu era também de Marvão logo tratou de me tirar do perigoso serviço das chaminés para me nomear escriturário para fazer o ponto escrito dos mineiros de cada turno naquele sector à sua responsabilidade. Era o Sector das Preparações que consistia em avançar com os túneis serra dentro para preparar o acesso à exploração do volfrâmio que viria atrás, transformando os nossos primeiros pequenos túneis em autênticas catedrais abobadadas, imensas galerias de onde era extraído o minério. Suponho que ainda hoje será assim embora provavelmente com métodos mais sofisticados e menos perigosos dos de então.

Era também o meu chefe um Marvanense muito famoso pela sua experiência profissional dentro da mina. Dizia-se por lá naquele tempo que ele, juntamente com o meu primo João Gaspar – o que me levou para lá e já faleceu - os dois melhores mineiros das Minas da Panasqueira. Tinham, por isso mesmo, um estatuto muito particular junto dos engenheiros e de todo o staff da administração do couto mineiro. Foi pela mão de ambos que eu também consegui vingar e adaptar-me àquela vida ao ponto de ter decidido pouco depois casar e procurar casa para me estabelecer ali definitivamente com a família...

José Coelho 
in Histórias do Cota