terça-feira, 6 de agosto de 2019

O aprendiz de xico-esperto...

Imagem copiada do Google

Teria oito ou nove anos. Era por isso já um franganote algo sabido – ou pensava que era – quando certa tarde a professora da Escola Masculina da Beirã a D. Clarisse Quezada me chamou e me mandou ir à Virgínia, da loja da ti Zabel no Largo da Fonte, com uma nota de 50 escudos para a trocar por pesetas. Era vulgar, naquela época, as senhoras finas da Beirã irem às compras a Valência de Alcântara. Bastava para isso pedirem autorização verbal ao senhor Doutor da Alfândega que por norma não se opunha e em seguida apanharem um dos muitos comboios que nesse tempo circulavam de dia e de noite numa ida e volta constantes entre as estações dos dois países.

E lá fui eu contente e todo lampeiro fazer o recado. A Virgínia – muita gente se deve ainda lembrar dela – era a empregada da ti Zabel que atendia ao balcão da loja. Foi ela que fez as contas ao câmbio trocando a nota de cinquenta escudos portugueses por notas e moedas de pesetas espanholas que me entregou.

Um escudo valia mais ou menos duas pesetas “grosso modo” nesse tempo. Assim sendo e segundo o meu iluminado raciocínio, deveria ter recebido em troca, 100 pesetas. Porém e porque o câmbio sem que eu disso soubesse estava umas décimas mais favorável ao escudo, a Virgínia deu-me 105 pesetas e não apenas as 100 que eu havia calculado.

- Enganou-se! Pensei eu. Ora! Ainda bem…

Sem pensar duas vezes meti ao bolso as cinco pesetas que julgava virem em excesso por engano da Virgínia e entreguei apenas 100 à menina Júlia, a criada da D. Clarisse que, entretanto, foi quem veio atender-me quando bati de novo à porta. Não imaginava eu, fatela xico-esperto de meia tijela, que a transação estava corretíssima porque a peseta tinha desvalorizado e por isso o câmbio dava as 105 que me foram entregues.

Não vendo quase nunca a cor do dinheiro, aquelas preciosas cinco pesetas fizeram com que me sentisse milionário. E não perdi tempo em investir tão inesperada fortuna. Corri à taberna do senhor Joaquim Batista onde comprei um pacote de tremoços. Porém, como ainda sobraram umas perras-chicas daquelas que tinham um buraco no meio mas davam para uma gasosa, passei pela taberna do Senhor João Viegas para a comprar. E em seguida, não fosse algum amigo aparecer de improviso e eu ter que dividir com ele o meu inesperado “banquete”, marchei sozinho para as acácias à volta do cancho da cegonha no Penedo da Rainha para me alambazar.

Quando ao fim de quase duas horas de lá vim, qual não foi o meu espanto ao saber que o meu pai, coisa inédita, andava á minha procura! A D. Clarisse, conhecendo o câmbio da moeda, mal a criada lhe entregou apenas 100 pesetas, logo terá exclamado: “Isto está mal”… E mandou-a ir à loja da Virgínia reclamar. Como é lógico, a Virgínia, pessoa séria e de muito boas contas, explicou que tinha entregue ao portador 105 e não apenas 100 pesetas! Claro que, sem grandes dificuldades, deduziram a minha marosca.

O meu pai, para mal dos meus pecados, estava, entretanto, na taberna ao lado da mercearia da ti Zabel onde logo foi informado da minha xico-espertice. Escusado seria dizer que no momento seguinte andava ele à minha procura para me obrigar a devolver aquilo de que eu me tinha apropriado indevidamente, mas também para me “untar o faval” coisa que até esse dia, nunca tinha acontecido.

Verdade! Foi a única sova que o meu pai me deu, que eu me lembre.

Bem a mereci!

Assim que me viu aparecer ainda a lamber os beiços do sal dos tremoços e das borbulhas da gasosa, chamou-me e vociferou furibundo: 
- Anda lá a casa comigo que temos que fazer umas contas…
- Mau Maria… Pensei.

Nunca o tinha visto tão zangado! Mas logo comecei a cogitar como me havia de safar. Assim, ao cimo da ladeira do tanque antes de chegar à porta da nossa casa, larguei a correr rua abaixo dizendo-lhe:

- Vou à frente pai, vou ver de um lápis para fazermos as contas…

Xico-esperto de novo hein?!...

Eheheh…

Não me valeu a esperteza!

Em três grandes passadas entrou atrás de mim e antes de eu poder fazer mais qualquer coisa agarrou-me pela blusa e jogou-me um chapadão tão grande que fui arremessado contra a parede do corredor. Ainda não me tinha sequer refeito da surpresa e… bumba! Outro chapadão ainda mais valente que o primeiro com aquela mãozorra calejada que mais parecia uma tábua. E os meus ouvidos a zunirem que pareciam duas campainhas… 

- Tziiiiiiiiiing!

- Caraças que isto doeu…

Como em toda a minha ainda curta vida e até àquele momento nunca o meu pai me tinha tocado nem com um só dedo – e nunca mais tocou no resto da sua vida – fiquei deveras acagaçado e só ali é que comecei a perceber que tinha metido a pata na poça até ao joelho…

- Seu cabrão! Vociferava de dentes cerrados completamente danado! Na nossa casa somos muito pobres mas nunca cá houve gatunos… Onde é que estão as pesetas que roubaste à professora?

- Ai agora!  Pensei eu, ainda mais apavorado!

E lá tive que explicar como as tinha gasto e que por isso já não as poderia devolver.

- Muito bem – respondeu ele – vou à Virgínia comprar as cinco pesetas mas quem as vai levar à professora na minha frente e pedir-lhe desculpa, és tu, agora mesmo!

Dito e feito, lá tive que ir atrás do ti Antónho Coelho, de rabinho entre as pernas, envergonhadíssimo e sem saber como encarar a Virgínia, a menina Júlia e, pior um pouco, a professora, a qual, como vocês todos se devem ainda lembrar, não era nada dada a meiguices e tinha umas mãozinhas muitíssimo duras e lampeiras.

- Vou papá-las dela também, pensei com mau agoiro.

Porém, enganei-me. A professora, talvez pela presença do meu pai, não me tocou nem com um só dedo. Apenas me disse muito carrancuda:
- Fizeste uma coisa muito feia José Manuel e eu agora já não quero as cinco pesetas. Mas vais ter que ir entregá-las no próximo domingo na missa ao senhor padre à frente de toda a gente para a Beirã ficar a saber o que tu fizeste…

- Jesus credo, “amalssoadas” pesetas… Pensei em pânico.

Mas assim teve mesmo que ser. Foi um vexame… O maior – felizmente o único – em toda a minha vida. Foi também, disso tenho absoluta certeza, a melhor e mais dura lição que aprendi. Nunca mais tive tentações de repetir esperteza semelhante.

Era assim que naquele tempo educavam a gente. E que eficácia tinha!

Coitado do meu pai que toda a sua vida se culpou por me ter dado aquelas valentes “orelhadas”. Vezes sem conta se arrependeu de me ter agredido daquela maneira porque não era mesmo nada dado a violências – quem o conheceu sabe que ele era a bondade em pessoa e incapaz de ser agressivo fosse com quem fosse, fosse pelo que fosse. Obrigado Pai. Eu precisava delas e aprendi a lição…

José Coelho
in Histórias do Cota