quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Amanhã fico triste, hoje não...

A acolitar o Padre Caetano no casamento do senhor amigo, referido neste texto.


Estávamos em 1958 quando comecei a servir como acólito (ou sacristão) na igreja de Nossa Senhora do Carmo da Beirã. Era pároco recentemente ordenado, o reverendo Joaquim Caetano – hoje de avançada idade mas ainda completamente lúcido a residir já no Lar para Sacerdotes do Seminário de Portalegre – e foi ele que me escolheu para substituir o António Sarzedas que chegado a meio moço não queria continuar. Para além dos meus pais, aquele reverendo sacerdote ensinou-me coisas e transmitiu-me valores tais que também a ele fiquei a dever muito do que fui pela vida fora quer como homem quer na formação do meu carácter e integridade. Por isso guardo até hoje uma amizade, um respeito e uma consideração sem limites, por ele.

Voltemos um bocadinho atrás no tempo. Contava muitas vezes a minha falecida Mãe que desde mui tenra idade, com 2 ou 3 anos apenas, eu desatava a correr rua abaixo mal ouvia repicar os sinos da igreja:

- Zéi, mas onde on’dé q’tu vas a correr tanto? Anda ma'sé p’ráqui antes que leves alguma nalgada…

- Ia à "misha", Mãe. Ia à "misha"…

Tinha que ser assim. Tudo indica que o meu fascínio pelo divino começou logo na inocência da mais tenra idade.

Veio então, dois ou três anos depois, o convite para acólito do padre Caetano que me tratava quase como a um filho. E porque os meus pais não tinham posses para me comprarem roupas novas, era ele quem comprava os tecidos e mandava fazer as minhas vestes domingueiras às costureiras que naquele tempo abundavam na aldeia, para o acolitar devidamente aprumadinho com calções ou calças de terilene, camisas de popeline, casacas e blusões. Até os sapatos domingueiros me trazia também da fábrica Ebro de Santo António das Areias, pois por norma eu andava de pés descalços durante a semana e para os domingos só tinha umas sapatilhas de contrabando, de fraco pano e muito fatelas.

Não haverá já por cá muita gente que se recorde destas coisas e as que houver se calhar não irão ler as minhas memórias porque ou já serão bastante idosas ou nem saberão ler. A propósito desta narrativa, aconteceu uma coisa curiosa no final da primeira Missa Vespertina da nossa paróquia. Saíamos da igreja eu e o novo Pároco quando apareceu um antigo e respeitável amigo - o Senhor Nicau - que fazia anos nesse dia. E entre outras coisas que conversou com o Senhor Padre Marcelino, disse-lhe também:

- Aqui o “nosso” Zé Manel foi o sacristão do Padre Caetano no meu casamento. Está lá nas fotografias! Ora se eu faço hoje 77 anos, veja lá o senhor padre há quantos anos isso foi…

Saíamos, escrevi eu, da primeira missa vespertina da Paróquia da Beirã. E fui propositadamente buscar algumas das minhas memórias para utilizar em jeito de introdução àquilo que vou escrever a seguir.

Sucedeu nesse dia o que há muito se previa mas sempre acreditámos demoraria ainda algum tempo a acontecer. Os sinos da igreja da Beirã que desde julho de 1943 tocaram ininterruptamente todas as manhãs de domingo por cerca das onze horas a convocar os fiéis para a missa, calaram-se a 10 de Setembro de 2016 para esse efeito, provavelmente para sempre. Como dizem os Evangelhos “a vinha do Senhor é grande e os trabalhadores são poucos”. Foram exatamente essas as circunstâncias que precipitaram e obrigaram a redesenhar o mapa dos acontecimentos com a inesperada partida para a eternidade do Reverendo Padre Luís Ribeiro. Tentando manter vivas as comunidades cristãs dentro dos curtíssimos limites do humanamente possível, a habitual Missa Dominical da Beirã teve que passar à categoria de Vespertina no final das tardes de sábado. Foi o melhor que conseguiu planear o novo Pastor que o veio substituir.

Não sendo nada fácil para ele, o nosso dever é não só acatar a nova realidade como também ajudá-lo. Pelo meu lado, embora a minha saúde não esteja por aí além muito famosa já, continuarei a fazer o que sempre fiz desde 1958. Mas fiquei triste. Inevitavelmente. São já quase incontáveis as perdas. Foram-se os entes queridos, quase todos os vizinhos e muitos bons amigos. Até os comboios que, não sendo gente, eram a vida e a alma desta aldeia. Nunca imaginei que amava sem dar por isso o agudo apito das ruidosas locomotivas pois só o descobri quando elas deixaram de vir e apitar. No dia 10.09.16 foi-se também a missa dominical, aquela cujo repicar dos sinos me fazia desatar a correr rua abaixo há mais de sessenta anos atrás. 

Neste momento a melhor forma de vos dar conta do meu estado de espírito talvez seja reescrever o poema encontrado na parede de um dos dormitórios para crianças do campo de extermínio nazi de Auschwitz:

“AMANHÃ FICO TRISTE… AMANHÃ!
HOJE NÃO… HOJE FICO ALEGRE!
E TODOS OS DIAS, POR MAIS AMARGOS QUE SEJAM, EU DIGO:
AMANHÃ FICO TRISTE, HOJE NÃO…”

 José Coelho
In Histórias do Cota
(resumido)

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Meu vício de ler...

Imagem copiada do Google

Desculpe estragar a festa, mas o Natal não existe


Há uma ideia generalizada de que o Natal é a comemoração do nascimento de Jesus. Desculpe estragar a festa, mas Jesus não nasceu no dia 25 de dezembro nem há 2018 anos atrás. Então vejamos.

No tempo do Império Romano, havia uma festa dedicada a Saturno (deus grego Cronos/tempo e da agricultura), denominada de Saturnalia, marcando o solstício de inverno. Era uma data muito importante para os povos agrícolas, como o caso dos romanos. Uma festa popular, para agradar os deuses e pedir que o inverno fosse brando e o Sol retornasse ressuscitado, no início da Primavera, o renascimento da vida. O culto solar era celebrado nos dias 24 e 25 de Dezembro, data de nascimento da divindade. Era um período de suspensão do trabalho, de visitar parentes e amigos, de ser generoso, solidário, de oferecer prendas. Isso lembra o Natal, não?

No século IV, o politeísta imperador Constantino converte-se, oficializa o Cristianismo e nasce, assim, a Igreja Católica. Absorveu e ressignificou práticas pagãs diversas; neste caso, o festejo pagão da Saturnalia, transformando-o numa celebração cristã. O Papa Gregório XIII, no século XVI, com a criação do calendário gregoriano, fez o resto. A partir daí, o nascimento de Cristo (que não nasceu no dia 25 e ninguém sabe a data exata) começa a ser celebrado pelos cristãos.

Portanto, o Natal não existe, pelo menos não da forma como a maioria imagina – o nascimento do menino Jesus.

Em que se transformou, hoje, esta antiga data pagã?

Uma cultura do consumo. Capturada pelo comércio, a data é para vender coisas, na sua grande maioria supérfluas. Uma agressiva propaganda na televisão, jornais, revistas, na internet, provoca uma azáfama, planos, listas de compras, centros-comerciais lotados, lojas abarrotadas de gente, ávidas para comprar. As crianças de hoje, exageradamente mimadas, exigem e obtêm, um sem número de prendas. Às vezes, são tantas que não conseguem abri-las todas ou valorizam mais as embalagens do que os próprios brinquedos.

É a época dos políticos e governos, maioritariamente corruptos, que passam o ano a roubar e a esbanjar os impostos e, nesta data, mandam belas mensagens e participam em jantares junto com os pobres, com os sem abrigo, miseráveis estes que os próprios políticos e agentes do governo criaram (ou ajudaram a criar) ao desviar o dinheiro que poderia garantir a comida e o bem-estar deles o ano todo. É lógico que esta ‘solidariedade’ natalina dos políticos deve ser sempre acompanhada por uma ampla cobertura da imprensa.

É a época das pessoas famosas, do jet-set, atores/atrizes, jogadores de futebol, que passam o ano a ganhar milhões e a sonegar impostos (prejudicando os contribuintes e os mais pobres), aparecerem na TV em programas ‘beneficentes’ para dar a entender que são solidários. Ficam sempre bem vistos perante a sociedade.

As autarquias gastam imenso dinheiro com enfeites de Natal e deixam os desabrigados a dormir na rua. Por exemplo, Lisboa gasta todos os anos mais de um milhão de euros, quantia que dava para abrigar/proteger, tirar da rua, definitivamente, todos os moradores de rua da cidade.

Todos, decisores políticos ou não, deviam assistir o emocionante filme Cardboard Boxer (2016) para ter uma ideia da vida miserável destes excluídos da sociedade. Mas há outros marcantes filmes do género: deixem para lá o já cansativo Sozinho em Casa (1990), que repete todos os anos, e assistam The Saint of Fort Washington (1993), Accidental Friendship (2008), The Soloist (2009), Time Out of Mind (2014), alguns baseados em dramáticos factos reais e todos expondo, de maneira super realista, a extrema dureza da vida de uma pessoa sem um lar para chamar de seu e sem um Shelter (2014), um endereço fixo, para mandar uma carta ao Pai Natal.

O que podemos fazer então para celebrar o Natal? Simples: é ser (genuinamente) solidário com os mais necessitados e, seguindo os verdadeiros ensinamentos de Cristo, respeitar e amar uns aos outros. E, se pensarmos bem, por que é que temos de esperar pelo Natal para fazermos isso? Ah, e o mais importante de tudo: não precisamos de dizer a toda a gente e postar no Facebook as fotos da generosidade. Não se esqueçam da lição de Antoine Saint Exupéry, no Principezinho: “o essencial é invisível aos olhos”.

Donizete Rodrigues, Professor de Sociologia, Universidade da Beira Interior, in Observador.pt - 22.12.2018

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

No teu dia e onde estiveres, um abraço cheio de saudades, Pai...

António Maria Coelho 
05-11-1910 // 23-01-1994

"Desde que chegara a Lisboa, eu estava muito piegas. As lágrimas assomavam-me aos olhos por tudo e por nada inexplicavelmente. E acho que nunca mais me curei da pieguice de que nada me envergonho por ser coisa que herdei do Pai, o qual, muitas vezes e com a maior facilidade, chorava. Bastava dar-lhe um beijo ou um abraço ou fazer-lhe um carinho qualquer. Fossem os filhos ou os netos. Penso que por ser pessoa tão bondosa, comovia-se facilmente e muitas vezes sem qualquer razão aparente.

O elegante comboio azul TER chegou por fim à estação de Castelo de Vide, a penúltima antes da Beirã. Faltava um quarto para as onze. A paisagem tão querida e tão familiar começou a desenrolar-se diante dos meus extasiados olhos. Que delícia! Que saudades eu tivera das minhas pedras, dos meus sobreiros e giestas, daquele aroma cálido e perfumado dos campos secos do início do verão, longe do húmido, pegajoso e interminável verde, da floresta tropical.

Parecia ainda quase um sonho mas ali estava Castelo de Vide de um lado da linha, e, do outro, os canchais pontilhados de carvalhos, sobreiros, oliveiras, hortas e casas brancas isoladas, aqui e além. Era mesmo verdade. Ia no comboio que me levava finalmente para casa, para junto de todos os entes queridos. Passámos a Ponte das Águas e mais além avistei o Monte da Broca com a grande e sempre tão bem cuidada horta do Pai.

Ufff…

Ainda hoje me arrepio com essa recordação!

Logo a seguir o campo da bola e o Penedo da Rainha. E lá vinha ele quase a correr pela estrada do Pereiro antes da cancela da passagem de nível. O meu Pai! E a porra da janela do TER que não abria! O comboio era climatizado por isso as janelas eram de vidros fixos! Fiz-lhe adeus. Ele viu, conheceu-me e fez-me adeus também. Depois de tanto tempo. Depois de ter temido tantas vezes não voltar a abraçá-lo.

Poucos minutos depois, especado à porta da nossa casa, ofegante ainda pela correria desde a horta, aguardava-me com os olhos marejados de grossas lágrimas. 

- Meu querido Pai...

- Até que enfim, filho! 

Abraçá-mo-nos um ao outro a chorar parecendo duas madalenas arrependidas como se ainda temêssemos que fosse mentira num inesquecível momento de mútuo carinho que guardarei na memória o resto da minha vida..."


José Coelho 
in Histórias do Cota 
(excerto)

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Só quem semeia, colhe...


























Não tenho conseguido tempo para escrever como gosto, ocupado que ando noutros afazeres. Assim que o outono "amaciou" e vieram os primeiros pingos de chuva imediatamente meti mãos à terra para fazer a horta de inverno, a única que posso fazer pois não tenho poço nem furo no quintal, e, cá neste alto das pedras onde moro na Beirã, nem merece a pena pensar fazê-los porque seguramente não dariam água senão a grande profundidade. E mesmo assim, não sei.

Fazer uma horta de verão a regar da rede pública é de todo impensável quer pela insensatez de esbanjar o precioso líquido potável quer porque seria incomportável em termos de custo. Depois, apesar de não ser demasiado grande o quintal, ainda dá bastante trabalho porque não possuo também nenhum motocultivador e não é pelo seu custo mas porque prefiro fazer como o meu pai fazia e com tanto empenho me ensinou; cavar a terra à enxada, embelgar, semear primeiro, transplantar depois, "acarinhar" continuamente o plantio para eliminar ervas daninhas e precaver pragas.

Além disso adoro mexer na terra com as mãos para sentir o seu odor bendito, ver as frágeis sementes brotar e transformarem-se em robustas plantas, entreter-me dias inteiros sem quase dar pelo correr das horas. Não há nada para mim mais saudável, pacífico e relaxante. Um grande amigo meu e doutor de leis que comprou uma propriedade por estas redondezas, diz, com muita convicção que “um dia na quinta é mais relaxante do que uma ida ao psicólogo”. Concordo. O contacto com a natureza e a paz que naturalmente dela emana são seguramente mais benfazejos que muitos medicamentos.

Como escreveu uma escritora que leio amiúde “nasci em tempos rudes” e neles “aprendi a viver”. Não tenho qualquer dúvida que foi essa rudeza que fez de mim a pessoa que sou porque rudes eram também as gentes desse tempo. Não uma rudeza que maltratasse, muito pelo contrário, eram rudes no trato pela aspereza da vida mas no carácter e nos princípios eram mais puros e cristalinos que os diamantes. São inexplicáveis as saudades que sinto cada dia e cada vez mais deles e de tudo o resto.

Além de conseguir fartura de verduras para consumo familiar todo o inverno com a minha hortazinha, as alfaias agrícolas que herdei do meu pai – enxadas, sachos, forquilhas, ancinhos, rodos, pás e picaretas entre outros – levam-me sem qualquer esforço mental até junto dele quase sempre. Tento imitar o seu modo de fazer, a perfeição do seu trabalho, os toques e retoques para que cada rego ficasse perfeito, retilíneo como feito à régua e esquadro, o modo de plantar, de cuidar, de amanhar tudo, tratando as plantas com o mesmo cuidado e esmero com que sempre tratava as pessoas e os animais, no ingénuo carinho e doce trato que tanto o caracterizavam, fazendo com que toda a gente o estimasse e respeitasse também.

Não é a primeira vez que escrevo isto, mas vou escrevê-lo de novo sem qualquer pudor. A sua presença na minha saudade é tão forte que muitas vezes me parece sentir no quintal e perto de mim o seu odor, do tabaco de onça e mortalha que sempre o acompanhavam e nunca lhe fizeram mal já que até o vício de fumar dele era também diferente de todos os outros que eu conhecia. Não aspirava o fumo para dentro dos pulmões. Limitava-se a queimar o cigarro entre os lábios e a saboreá-lo apenas na boca. Assim viveu tranquilamente comigo até aos 83 anos e foi um tumor na próstata que o venceu.

Suponho que três quartos do meu ADN são dele – até a minha cara hoje é quase uma cópia fiel da sua – e só um quarto é da minha mãe, apesar de também ter sido abençoado com o seu incondicional e profundo amor desde que nasci, até que a perdi. Nunca na minha vida por isso me senti pobre ou carente. O dinheiro sempre foi à conta, algumas vezes a esticar mais que a conta, mas acabou sempre, mais sacrifício, menos esticadela, por chegar. De afectos porém, de amor fraterno, de educação, de respeito e honradez, na nossa casa e família fomos sempre milionários.

Tento, desde que comecei a ser responsável, imitar os meus queridos progenitores e competentes mestres em tudo o que me foi por eles ensinado. Dando como eles o exemplo. Creio que consegui pois os meus filhos e a vida que fazem são indubitavelmente a minha maior felicidade e orgulho. Nem sequer me incomoda nada o facto de nenhum deles ter aprendido o que o pai aprendeu com o avô. A cavar a terra, a semear e plantar nabiças ou couves. Cada geração tem a sua particularidade e nenhuma é melhor ou pior que a anterior, assim como as vindouras não o serão em relação à actual.

Mudam-se os tempos mudam-se as vontades. Mas há uma coisa que nunca mudará venham os tempos que vierem. Quem quiser colher terá que saber semear. Na horta ou na vida.

José Coelho
29.10.2019

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Dia ganho...

Foto José Coelho

Abrantes, dezanove de outubro deste Ano da Graça de dois mil e dezanove numa jornada de formação para revalidar o mandato trianual pessoal e intransmissível que visa apoiar em duas tarefas específicas quando e se necessário os Párocos que nos indicaram para esse efeito ao Senhor Bispo. De três em três anos lá vamos nós, um punhado de paroquianos oriundos de todos os pontos da Diocese de Portalegre – Castelo Branco, repartidos por três grupos em três dias, três datas e três pontos de encontro.

Desde 2001 que frequento esta e outras formações que muito têm enriquecido os meus conhecimentos sobre a Igreja e aprofundado a minha fé. Algumas no Seminário de Portalegre, outras na Casa de Mem Soares – Castelo de Vide, outras no Seminário de Alcains, também na Sertã e este ano em Abrantes. Para além da imprescindível preparação são também dias de fraterno convívio e partilha entre participantes. A parte da manhã é dedicada especificamente ao tema que ali nos reúne e após o almoço são formados diversos grupos para debate e partilha das experiências de cada um no desempenho das funções.

Cada participante revela as dificuldades com que se deparou e como as resolveu tendo em conta que naqueles momentos não havia por perto nenhuma entidade a quem se pudesse pedir apoio. Parecendo à partida uma tarefa muito simples não o é, requer não só conhecimentos como também elevada sensibilidade pela sua delicadeza e intrínseco valor. E há ainda que ter em conta a debilidade física das pessoas a quem normalmente é levada. Temos sempre algo novo a aprender assim como temos sempre algo para repartir. Ninguém sabe tudo, ninguém faz mais ou melhor que ninguém e a humildade é comum a todos.

Este ano, depois de mais uma manhã de formação e reflexão conjuntas, coube-me fazer parte de um grupo com participantes de Nisa, Vila Velha de Ródão, Abrantes e Arronches. Cada um de nós fez a sua apresentação pessoal completa e referiu a paróquia a que pertencia bem como as tarefas que normalmente desempenha na mesma em prol da comunidade e a sua convicção no desempenho das mesmas. Falar de nós para um grupo de pessoas que não conhecemos de lado nenhum não é fácil no princípio mas sucede quase sempre gerar-se nestas palestras uma empatia tal que sem nos darmos conta estamos em pouco tempo todos a conversar como se nos conhecêssemos de sempre.

De tal modo assim sucedeu na passada segunda-feira que houve ocasião até de repartirmos uns com os outros alguns problemas pessoais e familiares que embora nada tendo a ver com o desempenho da missão que ali nos reuniu acabou por despertar o interesse comum já que uma das pessoas que pôs sobre a mesa o seu problema estava bastante fragilizada. Não sei o que se passou no íntimo de cada uma das outras pessoas do grupo à volta da mesa mas no meu gerou-se imediatamente uma incontível vontade de fazer alguma coisa que suavizasse um pouco aquele visível sofrimento.

Ouvi sem interromper até que o desabafo terminou. E perante o profundo silêncio que se instalou na sala quando a pessoa se calou, pedi licença para dizer também de minha justiça e relatei à mesa algumas peripécias iguais ou parecidas que me sucederam ao longo da vida assim como o quanto me tinham causado dúvidas existências semelhantes às que acabara de ouvir. Sugeri-lhe que não baixasse os braços, pois foi o que eu fiz. E que jamais deixasse de acreditar ou de lutar pelas suas convicções. Parafraseando algo que li algures disse-lhe ainda que “perder uma batalha não implica perder uma guerra”, muito menos quando sabemos que a razão está do nosso lado. E rematei:

- Em vez de desistir, de ficar sentado a chorar à beira do caminho com muita pena de mim mesmo, levantei-me decidido a enfrentar todos os obstáculos. E um a um os venci. Olhando hoje para trás quase me parece um sonho mas posso dizer bem alto: Consegui! E verá como a senhora vai conseguir também.

O tempo para reflexão dos diversos grupos havia entretanto terminado e chamaram-nos para o encerramento da formação na biblioteca onde cada grupo apresentou as dúvidas que haviam surgido, para, na medida do possível, serem dadas indicações de como as resolver no futuro. No nosso grupo nada havia para esclarecer e ficámos por isso todos em silêncio a ouvir os outros. A última actividade do dia foi a participação na Eucaristia celebrada na capela existente no edifício onde nos encontrávamos. Algumas das pessoas, por serem de perto, quiseram saír para irem tomar parte nas Eucaristias das suas comunidades, ficando ali apenas os participantes de mais longe como nós, de Marvão.

Preparava-me para descer as escadas para a capela no rés-do-chão quando fui interpelado pela senhora que havia desfiado a sua amargura na palestra de grupo dessa tarde e me quis dizer diante de todos os presentes:

- Obrigado, José. Dê cá um beijinho. Não sabe o bem que me fizeram as suas palavras…

Voltaremos a ver-nos? Provavelmente não! Apesar desta formação se realizar em cada triénio os grupos são numerosos, os locais diversos e distantes uns dos outros, por isso raramente se juntam os mesmos participantes. Não pretendo de modo nenhum desvalorizar a importância da formação que frequentei mas, honestamente, este resultado valeu para mim muito mais do que todo o resto daquele dia que inesperadamente ganhei.

José Coelho
21.10.19

E por vezes...

Luanda - Casa de Fados "O Campino", 10 de Março de 1972


E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos


David Mourão - Ferreira 

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Nada de equívocos hein?...

Foto Pedro Coelho - Beirã, 10-03-18

Era aquele Senhor Guarda um beirão dos sete costados, oriundo de uma aldeia muito conhecida das cercanias de Monsanto, na Beira Baixa. Tendo sido colocado no Algarve muitíssimo longe de casa e da sua família quando terminou o alistamento e porque naquele tempo mudar do batalhão do Alentejo para o batalhão das Beiras demorava sempre uma boa dúzia de anos, muitos desses “ratinhos” optavam por pedir transferência dos postos mais a sul para outros postos do mesmo batalhão mais a norte como era o caso do posto de Nisa, por fazer “fronteira” com a Beira Baixa.

Por isso os efectivos daquele posto, na sua esmagadora maioria, eram militares oriundos das cercanias beirãs. Castelo Branco, Cebolais, Idanha-a-Nova, Monsanto, Sertã, Covilhã, Fundão, Vila Velha de Ródão, ou de muitas outras localidades vizinhas. E por ali permaneciam o tempo necessário até serem finalmente transferidos de batalhão e colocados mais perto das suas terras de origem. Casos houve em que alguns desses beirões acabaram por se estabelecer. Ou porque trouxeram a família compraram casa e criaram raízes, ou por serem solteiros, conhecerem, namorarem e acabarem por casar com raparigas de Nisa e arredores, fundando por ali a sua nova família e optando por ficarem definitivamente no Alentejo.

Não era porém o caso deste militar a que me refiro hoje. Mas era de facto uma pessoa excelente. Bom camarada, de uma educação exemplar, muitíssimo atento aos seus deveres e nunca se escusando em caso algum a tomar conta de um serviço, por mais bicudo que pudesse ser. E era também um tudo-nada gago de nascença. Em situações tranquilas quase nem se dava por isso. Mas se o faziam irritar ficava tão excitado que inconscientemente gaguejava mais.

Como humanos que somos e com inúmeros defeitos que temos, gostamos por vezes de nos rir à custa dos outros. Por isso os camaradas o faziam algumas vezes zangar deliberadamente. Fosse por o Benfica ter perdido um jogo e ele ser benfiquista ferrenho, fosse por outro motivo qualquer, daqui que dali lá o ouvia eu a estrebuchar fulo sem conseguir expressar-se tão rapidamente como desejava nos seus irados desabafos.

Certo dia foi o dito cujo militar requisitado pelo tribunal local para depor no julgamento de um crime de desobediência em que ele e outro camarada tinham sido intervenientes. O militar mais antigo fora o participante e ele era a testemunha. Nada de grave nem de transcendente. Apenas um daqueles processos vulgaríssimos em que a patrulha detectava algo errado e dava uma ordem legal mas que não era obedecida, o que levava, nesse tempo, à imediata constituição de arguido do desobediente depois de lhe ter sido correctamente explicitado que se persistisse na sua atitude estaria a incorrer num crime previsto e punido por Lei.

Naturalmente, depois da asneira feita, o desobediente quando se via “entalado” num processo-crime, tratava logo de arranjar um advogado para o defender e representar. E foi o que aconteceu neste caso também. Ao longo da minha carreira profissional tive alguns “embates” com esses excelentíssimos profissionais mas ficámos amigos na mesma porquanto sempre entendi que dentro da sala de audiências eu representava a minha parte de acusar e provar o ilícito criminal que me tinha levado a deter o arguido, enquanto os senhores doutores advogados cumpriam a parte que lhes competia e para a qual eram contratados de tentarem atenuar o dolo ou culpa dos seus clientes usando de todas as estratégias legais para conseguirem a sua absolvição ou pelo menos uma pena mais leve.

Sem qualquer intento de vangloriar-me mas apenas com profissional satisfação, posso ainda hoje afirmar que nos muitos processos judiciais e consequentes audiências de julgamento em que fui interveniente como participante, nenhum detido por mim foi absolvido alguma vez. Quer isso dizer apenas que só apresentei em tribunal os casos em que não tive qualquer dúvida do ilícito criminal cometido, pois que, na dúvida, nunca avancei para esse procedimento

Talvez por isso mesmo sempre senti da parte dos meritíssimos juízes e também dos excelentíssimos advogados a grata consideração de raramente porem em causa a licitude das minhas actuações enquanto Órgão de Polícia Criminal. E era nesse sentido que instruía e orientava também os meus subordinados. Na dúvida, não se fazer nada. Se dúvidas houvesse quanto à licitude de um procedimento ou se não fosse imediatamente deduzível o ilícito criminal, essas dúvidas tinham sempre que reverter a favor do suspeito. Em processo penal mais vale pecar por defeito do que por excesso porque o defeito pode não ser condenável mas o excesso pode configurar imediatamente o crime de abuso de autoridade e não só.

Não foi o caso do julgamento que aqui estou a relatar hoje. A patrulha tinha agido em conformidade. Porém e muito naturalmente, durante o decorrer da audiência de julgamento o senhor doutor advogado de defesa do arguido interrogou os guardas com aparente animosidade. Actuação normalíssima e própria do calor do debate. Até que, a dado momento, interpelou a única testemunha, o nosso militar meio-gago, com algumas perguntas acutilantes, conseguindo enervá-lo. 

Em consequência desse nervosismo, começou o digníssimo Guarda a gaguejar inadvertidamente com maior evidência. Provavelmente por pensar tê-lo atrapalhado porque isso convinha aos seus interesses, o senhor doutor insistiu um pouco mais elevando significativamente o tom da voz. Foi quando, já manifestamente irritado, o nosso militar pediu respeitosamente licença ao senhor doutor juiz para se dirigir frontalmente ao senhor doutor advogado, dizendo-lhe na sua mais que justa e irada gaguez:

- Ó-ó se-se-nh-nhor  do-dou-to-tor a-ad-advogado! O-o-olhe q-q-que e-e-eu n-nã-não t-t-tou a-at-atra-pa-pa-lhado, ne-ne-nem com-com me-me-medo d-de ssss-ssss-si. Sss-sou-sou, é-é-é ga-ga-go, de-de-de na-na-nas-nascença!...

Não vos digo, nem vos conto! Quando horas mais tarde no final do julgamento isto foi relatado no posto, chorámos de tanto rir! E, muito convicto da justeza da sua valente atitude, o nosso digníssimo camarada retorquia ainda mais convictamente:

- O-o-o g-ga-ga-jo jj-ju-julgava qq-queu tt-ta-tava co-co-com mm-me-medo d-de-dele…

Não há muito tempo ainda encontrá-mo-nos no Jumbo de Castelo Branco. Ele acompanhado pela sua mulher e filhos e eu já só com a minha mulher. Ao reconhecer-nos dirigiu-se-nos de imediato para nos cumprimentar, e para, em seguida, irmos todos juntos tomar um café, enquanto recordávamos alegremente esses bons tempos já algo distantes mas fundadores destas recordações tão saborosas, bem como de uma sã amizade para a vida toda…

José Coelho
In Historias do Cota

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Beirã - Preciosidades com 76 anos...

Nossa Senhora do Carmo salvando almas do Purgatório 
Painel de azulejos no hall de entrada direito da Igreja da Beirã

Nossa Senhora do Carmo a entregar o Santo Escapulário a S. Simão Stock
Painel de azulejos do hall  de entrada esquerdo da Igreja da Beirã
Fotos - Maria Coelho - 09.10.2019

Meu vício de ler (***) ...


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Deixa…

“Eh, pá, deixa. Deixa estar o que não podes mudar. Deixa ficar o que não podes levar. Deixa para trás o que não te deixa ir em frente. Deixa ir quem não te deixa seguir. Deixa ir quem te deixou ir. Deixa de crer nas pessoas que não te querem. Deixa de querer que te queiram. Deixa de pensar em deixar e deixa mesmo. Deixa de querer fazer tudo, deixa de fazer tudo o que querem. Deixa. Deixa-te disso. Só de ti nunca. Nunca te deixes de lado. Nunca te deixes ir onde não és tu. Nunca te deixes levar por coisas que não levam a lado nenhum. Não deixes de gostar de ti. Não deixes de aprender. Deixa acontecer a felicidade. Não vivas para deixar nada a não ser saudades e o exemplo de quem não deixou que lhe roubassem a alegria. A vida é a tua deixa. O resto, eh, pá, deixa ficar.” 

In Lado.a.lado - 06.08.2019

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Meu vício de ler...(**)





O problema é pensar que os outros farão por nós o que fizemos por eles

A origem de muitas das nossas decepções é pensar que os outros farão por nós aquilo que nós fazemos por eles. Esperamos sempre a mesma sinceridade, o mesmo respeito e a mesma reciprocidade. No entanto, isso nem sempre acontece. Os valores que nos definem não são os mesmos que definem a mente dos outros.

Uma maneira simples de encontrar a felicidade pode residir no acto de minimizar as nossas expectativas. Quanto menos tu esperares, mais poderás receber ou encontrar. É certamente um argumento um tanto controverso, no entanto, não deixa de ter a sua lógica.

“Não esperes nada de ninguém, espera tudo de ti mesmo, e desse modo o teu coração irá colher menos decepções.”

Todos nós sabemos que no que diz respeito às nossas relações é impossível não ter expectativas. Esperamos sempre que os outros tenham comportamentos iguais aos nossos e desejamos ser amados, defendidos e valorizados como amamos, defendemos e valorizamos. Mas isso não impede que muitas vezes estas previsões falhem. Quem espera muito dos outros geralmente acaba desiludido.

Ninguém erra ao procurar ver o lado bom das pessoas. Temos o direito de vê-lo, encontrá-lo e até mesmo promovê-lo, mas com alguma cautela. Porque a decepção é irmã das expectativas elevadas é mais apropriado não se deslumbrar antes de tempo.

As aparências não nos costumam enganar, o que muitas vezes costuma falhar são as nossas próprias expectativas sobre os outros.

Podemos esperar muito dos demais mas o certo é esperar sempre mais de nós mesmos.

Para ajudar a deixares de esperar muito das pessoas ao teu redor, lembra-te do seguinte: Ninguém é perfeito, nem sequer nós mesmos. Se fôssemos agradar às expectativas que os outros têm sobre nós, viveríamos stressados e infelizes. Por vezes é impossível, ninguém é um exemplo de perfeição ou de virtude absoluta. Basta respeitarmo-nos uns aos outros e exercer a reciprocidade da forma mais humilde possível.

Aceita que nem sempre temos que receber algo em troca. Às vezes o melhor é aceitar que os outros são como são e que nem sempre vão fazer por nós aquilo que nós estamos dispostos a fazer por eles. E, claro, existem sempre aquelas pessoas que simplesmente não valem a pena. Que não nos respeitam nem nos merecem ter na sua vida.

Nesses casos, é necessário desapegarmo-nos, por mais difícil que possa ser. Para concluir: quanto menos esperamos, mais surpresas podemos ter. Dessa forma seremos um pouco mais livres e a nossa felicidade será menos dependente do comportamento dos outros.

Somos todos falíveis, somos todos seres maravilhosamente imperfeitos que tentam viver num mundo onde, por vezes, decepções caóticas são inevitáveis, mas no qual também habitam o amor sincero e as amizades duradouras.

V. Sabater

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Meu vício de ler... (*)

Foto Pedro Coelho

Vida

Já perdoei erros imperdoáveis,
tentei substituir pessoas insubstituíveis
e esquecer pessoas inesquecíveis.

Já fiz coisas por impulso,
já me decepcionei com pessoas
que nunca pensei que iriam decepcionar-me,
mas também já decepcionei algumas.

Já abracei só para proteger,
já me ri quando não devia,
já fiz amigos eternos,
e amigos que eu nunca mais vi.

Amei e fui amado,
mas também já fui rejeitado,
fui amado e não amei.

Já gritei e pulei de felicidade,
perdi-me de amores, fiz juras eternas,
e quebrei a cara algumas vezes!

Já chorei a ouvir músicas ou a ver fotos,
já telefonei só para ouvir uma voz,
já me apaixonei por um sorriso,
já pensei que fosse morrer de saudade
e tive medo de perder alguém 
(que acabei perdendo).

Mas vivi.
E ainda vivo,
não passo pela vida.
E você também não deveria passar.

Viva!

Bom mesmo é ir à luta com determinação,
abraçar a vida com paixão,
perder com classe e vencer com ousadia,
porque o mundo pertence a quem se atreve,

e... 

A vida é demasiado importante para ser insignificante!


Augusto Branco

Onde estiveres, parabéns, Mãezinha...

Foto Pedro Coelho

"Se Deus atendesse um dia
Minha prece ingénua e doce
Nenhuma Mãe morreria 
Por mais velhinha que fosse"

segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Projecto-inacabado-de-futuro-guarda-se-acabasse-o-curso-com-aproveitamento...

Ano de 1979

Um dos meus predicados favoritos foi, desde sempre, a pontualidade. E embora tivesse todo o dia 22 de Janeiro de 1979 para fazer a minha apresentação no Comando da Companhia Rural da Guarda Nacional Republicana de Portalegre - assim se designava aquele comando nessa época - marchei logo na véspera dia 21 para a cidade, indo pernoitar em casa da minha irmã Adelina que morava na Rua do Canto da Fava e distava apenas uns escassos cem metros do meu futuro "emprego".

Às nove horas em ponto do dia aprazado apresentei a guia de marcha que tinha recebido em Lisboa a um circunspecto e mal-encarado plantão ao posto que se encontrava num também escuro e feio gabinete logo à entrada da porta onde estavam já outros camaradas “maçaricos” como eu a efectuarem a sua apresentação.

Nunca na minha vida tinha entrado num quartel da GNR e a impressão primeira foi de admiração pelo ar carrancudo de toda aquela gente que se dirigia a nós ou nos olhava de lado, o intenso cheiro a cavalos que emanava do interior do edifício e, embora muito limpo e arrumado, o ar envelhecido de tudo aquilo; o edifício, as paredes, os arcos do corredor, os azulejos, as mobílias.

- Deve ter sido um convento ou uma igreja, pensava de mim para mim, enquanto éramos encaminhados para uma pequena parada no interior do quartel.

Todo esse dia foi passado a receber o fardamento, o alojamento e instruções diversas. Quando finalmente recolhemos à caserna para dormir já o serão ia adiantado e não se ouvia um murmúrio sequer. O meu estado de espírito estava por terra, habituado ao bulício das minas, à excelente amizade e camaradagem que ali tinha vivido até há poucos dias atrás, e, bem cá no fundo, a sombra da saudade e do arrependimento por ter deixado tudo aquilo perturbava-me involuntariamente, roubando-me o sono e a vontade de conversar fosse com quem fosse.

Além disso, os meus 40 camaradas de “escola” não denotavam muito mais ânimo que o meu. Calados e sorumbáticos todos, cada um recolheu ao seu beliche quase em silêncio sem denotar grande apetência para início de confianças.

Por essa altura euforia da Revolução de 25 de Abril de 1974 ficara algures já muito lá para trás, porque iam passados quase cinco anos desde a sua célebre “Madrugada”.

Perdido pelas aldeias dos contrafortes da Serra da Estrela e ocupado nos meus afazeres de mineiro desde o início de 1975, nunca mais tivera qualquer contacto com as politiquices da minha Beirã ou de quaisquer outras, ressalvando o insólito facto de, certa vez, numa assembleia de eleição para a direcção do núcleo local do sindicato dos mineiros, o meu nome ter sido votado por alguns anónimos, decerto meus conterrâneos Marvanenses, mas, como o voto fora secreto, nunca cheguei a saber quem votara em mim.

O Doutor Teixeira Alves, entretanto, tinha partido definitivamente para Lisboa e os trabalhadores rurais tinham-se organizado sozinhos também no seu sindicato sendo apoiados apenas pela estrutura sindical de Portalegre. Em resumo, eu tinha seguido a minha vida em paz e harmonia e cá pela terra as coisas tinham também seguido o seu rumo normal sem grandes sobressaltos.

O que eu não sabia era que a Reforma Agrária se tinha desenvolvido por todo o Alentejo durante esses anos em que estive ausente. O meu conhecimento sobre isso resumia-se ao que ouvia por lá de vez em quando nos noticiários da tv mas aos quais não prestava a menor atenção, pelo simples facto de “aquilo” não me dizer nada e de não entender “um boi” do seu significado. E ainda também porque andava demasiado ocupado a organizar a minha vida num trabalho que não sendo o melhor do mundo era muito bem pago, com amigos extraordinários que tanto me tinham ajudado a integrar nele, com o meu casamento, com o nascimento do meu primeiro filho, enfim, coisas normais do dia-a-dia de qualquer um. 

Por tudo isso, a política era, para mim, muito sinceramente, um absoluto zero.

Só ao entrar na GNR como Soldado Provisório tomei da pior forma conhecimento de tudo isso e foi ali que soube como o Alentejo fora palco de ocupações selvagens de muitas herdades, e que, instigados por determinadas forças, os trabalhadores rurais que toda a sua vida foram explorados pelos latifundiários e donos das terras, ali viram a oportunidade de se vingarem dos anos e anos de miséria.

Não perceberam ou não quiseram perceber que talvez não fosse aquele o caminho certo, que as ocupações que assim levavam por diante serviam principalmente e sobretudo interesses partidários.

Mas não pensem vocês também que a “informação” que fomos recolhendo aos poucos nestas primeiras semanas de alistamento sobre ocupantes e ocupações de herdades por esse Alentejo fora, tinha alguma intenção formativa para nós, meros projectos-inacabados-de-futuros-guardas-se-acabássemos-o-curso-com-aproveitamento como diária e pomposamente éramos apelidados pelo oficial e sargento instrutores, para que o tivéssemos em conta e nunca o esquecêssemos. Não! Não tinha qualquer intenção formativa. Muito pelo contrário, era eivada de segundas e perversas intenções. Para a maior percentagem dos quadros da Guarda do Alentejo, nós, os novos instruendos, éramos potenciais suspeitos de sermos "comunas". 

“Comuna” era um termo depreciativo usado para apelidar os militantes ou simpatizantes do Partido Comunista Português. E ser comuna em 1979 no entender de quase todas as patentes da guarda por estas bandas, era ser literalmente comparado a um perverso criminoso. Não havia nada mais grave. E, como a maior parte dos meus camaradas instruendos eram oriundos da zona vermelha do conflito – Ponte de Sor, Montargil, Cano, Elvas, Monforte, Galveias – se não fossem comunistas eram com toda a certeza filhos, netos, sobrinhos ou primos deles. E por isso mesmo um potencial perigo de infecção ou contágio para as puríssimas e santíssimas hostes da velha Guarda...


José Coelho 
in Histórias do Cota