quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Histórias do Cota (que o livro não conta)...

Foto de 1979

"Era aquele velho guarda um homem bom. De Alpalhão. Infelizmente já não está entre nós. Não tenho dúvidas que ele acreditava de facto em mim e no que eu lhe ia revelando com verdade sobre as minhas actividades, mormente no tal sindicato dos trabalhadores rurais onde nunca fui secretário, mas apenas e sem qualquer conotação política, a única coisa que tinha feito fora ajudar na escrita em virtude de os dirigentes eleitos serem todos analfabetos. E sim senhor, tinha-me de facto disponibilizado para os ajudar em tudo quanto pudesse mas apenas por uma questão de humanidade, uma vez que, conhecendo cada um deles de toda a minha vida, sabia que tinham a mesmíssima humilde e honrada condição do meu próprio pai.

Desde quando - desabafei - ajudar é crime? E mais! Ao aderirem a um sindicato para defenderem os seus interesses, aqueles honestos trabalhadores não estavam a fazer nada de mal. Porque não haveria eu de os ajudar se tinha todo o meu tempo livre por não conseguir arranjar trabalho desde que regressara da guerra? Não duvido que foi a má fé e malvadez de algumas pessoas que eu inocentemente julgava minhas amigas quem criou à minha volta uma teia de calúnias e falsidades para me denegrirem. Nunca fui militante de nenhum partido político. Mas se o tivesse sido só estaria a usufruir de um direito constitucionalmente reconhecido a todo e qualquer cidadão.

Naquela tarde soalheira de outono enquanto percorríamos calmamente o nosso giro de patrulha com oito horas de duração, contei-lhe ainda sem qualquer receio aquela que foi para mim a melhor medida que o “tal” meu amigo doutor da alfândega - Teixeira Alves - tinha "trazido" de Lisboa para dezenas de velhotes da minha freguesia. Fora publicada em Diário da República uma nova lei que ia obrigar todas as entidades patronais a inscreverem os seus trabalhadores na segurança social a fim de descontarem para as suas reformas e usufruírem dos abonos de família dos filhos menores, aqueles que ainda os tivessem. E essa lei continha também uma cláusula extraordinariamente importante que dizia, mais coisa menos coisa, algo assim:

Qualquer indivíduo que tivesse trabalhado mais de cinco anos para uma entidade patronal e de onde tivesse saído por motivo de velhice há menos de cinco anos, teria direito de ser ainda por lá reformado, bastando para tanto preencher uns formulários que se iam buscar à Caixa de Previdência de Portalegre - hoje designada Segurança Social - sita à data na Avenida Frei Amador Arrais, arranjar a seguir três testemunhas com mais de 21 anos que atestassem por sua honra terem conhecimento que aquele indivíduo trabalhara para a tal entidade patronal durante mais de cinco anos, e, automaticamente, essa entidade patronal seria obrigada a reembolsar a Caixa de Previdência dos descontos retroactivos, podendo logo a seguir o trabalhador que tivesse mais de 65 anos de idade requerer a sua reforma, bastando para tanto preencher um requerimento em impresso próprio.

Não sei dizer que Lei foi aquela. É de finais de 1974, princípios de 1975. Deduzo que terá sido a “mãe” da Lei que tornou obrigatórios os descontos para a Segurança Social de todo e qualquer trabalhador e que por essa altura entrou definitivamente em vigor. Não tenho qualquer dúvida em afirmar que sei, com absoluta certeza, que foi esse o “grave crime” que eu cometi à luz do entendimento mal-intencionado de algumas pessoas que tiveram que abrir os cordões à bolsa para que trabalhadores que as serviram uma vida inteira, alguns durante mais de 60 anos – sim, sessenta anos de dedicação ao mesmo patrão – tivessem direito à sua mais que merecida pensão de reforma. 

Logo que a Lei foi publicada no Diário da República e entrou em vigor, o doutor Teixeira Alves “requisitou-me” para fazermos o “levantamento” de quantas pessoas haveria naquelas condições para que as pudéssemos ajudar. Dito e feito. Nem pensei duas vezes. Ajudar a quem faz falta, aprendi no berço. E além disso conhecia os interessados um a um. Sabia onde moravam, sabia mesmo que muitos deles viviam agora apenas do pouco que tinham conseguido amealhar na sua sacrificada vida de trabalho e de uma mísera “reforma da casa do povo” que nem dava quase para a renda, mas, sobretudo, do auxílio dos filhos, aqueles que os tinham por perto.

Contactámo-los um a um. E informámo-los também um a um dos passos necessários. E fomos depois pedir orientação e ajuda a um grande homem da direção da Caixa – de quem não vou citar o nome – que sempre se disponibilizou amavelmente para ajudar fosse no que fosse. A “cor” política dele? Não sei. Nunca soube.  O que sabia era que na Beirã, nos Barretos e por todos os lugarejos em redor havia por certo mais de duas dezenas de idosos que tinham trabalhado em determinado patrão não apenas cinco, mas, muitos deles, mais de cinquenta anos. A sua vida toda. E viviam agora assim, velhos, incapazes e quase sem nada, por falta do apoio a que tinham direito depois de uma vida inteira de trabalho e sacrifício.

Confesso que foi uma das obras que ajudei a levar por diante de que mais me orgulho até hoje. Ciente da tremenda justiça que nela se concretizava, suportei tudo aquilo que quiseram dizer de mim. Se ser comunista é lutar pelo bem-estar de quem nada tem, pois bem, eu sou um grandessíssimo e convicto comunista porque jamais deixarei de fazer o mesmo sempre e cada vez que for necessário.

Qual foi então a "parte" que mais me “incriminou” em todo aquele processo?

Várias. Para não dizer todas.

Primeiro, fui eu que andei de porta em porta a informar os velhotes daquilo a que tinham direito e o que precisavam fazer. Depois fui eu também que fui a Portalegre com o doutor Teixeira Alves no carro dele buscar os formulários necessários e aprender a preenchê-los para depois o ensinar aos interessados. Em seguida fui novamente eu que os preenchi todos porque nenhum idoso sabia ler nem escrever. Mais ainda fui eu que tive que convencer muitas das testemunhas a atestarem por sua honra que tinham visto aqueles idosos a trabalhar naquele patrão durante mais de cinco anos. Para não falar dos medos que tive que ajudar a dissipar porque “era o senhor fulano tal que depois se podia ofender quando soubesse…” ou então porque “o seu filho, irmão ou primo trabalhavam ainda lá e podiam vir a ter problemas.”

Um a um lá consegui convencê-los que hoje era por aqueles mas amanhã seria decerto por eles próprios. E numa atitude de total confiança mostrando-lhes a minha tranquilidade de consciência e ausência de qualquer receio, a primeira assinatura de todos aqueles formulários era a minha. Muitas dessas testemunhas, tenho a certeza, só perderam o receio de assinar depois de verem lá o meu nome escarrapachado logo à cabeça. 

Em consequência do meu sincero empenho, que, volto a repetir, nada, mas absolutamente nada, teve a ver com partidarismos políticos, soube, pouco depois, que todos os formulários entregues tinham sido deferidos, originando à tal entidade patronal ter que pagar à Caixa de Previdência um reembolso na ordem dos seiscentos mil escudos, quantia algo elevada na altura, mas acumulada por serem de facto muitos os seus ex-trabalhadores com o direito reconhecido pela nova Lei.

O meu camarada e velho guarda Alpalhoeiro nem movia as pálpebras de tão absorto e interessado que estava na minha narrativa...

E continuei:

Assim que terminou a fase do reembolso pela entidade patronal demos início à fase de requerer as respectivas pensões de reforma. Como não podia deixar de ser, lá tive que ser eu outra vez a “descalçar a bota” aos velhotes. Orientado sempre pelo tal ilustre senhor e amigo da Caixa de Previdência, preenchi os requerimentos a quem o solicitava. Todo o processo não durou mais de três ou quatro meses. É preciso esclarecer também com todas as letras e inequivocamente que a minha colaboração foi totalmente gratuita e nunca aceitei qualquer forma de pagamento apesar de algumas dessas pessoas insistirem em gratificar-me.

Passadas poucas semanas os requerimentos de reforma de todos os requerentes foram também deferidos sem qualquer entrave e logo a seguir foram informados os interessados dos respectivos montantes de reforma mensal que lhes seria atribuída a partir da data em que tinham completado 65 anos, bem como o valor retroactivo acumulado a receber e que em alguns casos era, naquele tempo e para eles, uma pequenina fortuna. Sessenta contos uns, oitenta contos outros, enfim, conforme era a soma dos meses em retroactividade assim eram os montantes acumulados a haver. Vi muitas lágrimas furtivas de incredulidade em muitos olhos, vi também imensa gratidão em muitos outros, mas, sobretudo, senti uma paz e felicidade interiores muito mais valiosas que todo o dinheiro em questão.

Só não me apercebi das inimizades ocultas que tudo aquilo desencadeou sobre mim porque nunca foram capazes de mostrar o rosto, preferindo, à boa maneira dos cobardes atacar pelas costas e por métodos sujos. E só não me apercebi mesmo de nada porque muito pouco tempo depois fui-me embora para as Minas da Panasqueira – de onde nunca deveria ter saído – afastando-me da Beirã e esquecendo completamente tudo aquilo até ingressar na Guarda quase cinco anos depois.


José Coelho in  Camaradagem - Histórias do Cota
Obs: - Esta narrativa não está publicada no livro