Foto de 1979
"Era
aquele velho guarda um homem bom. De Alpalhão. Infelizmente já não está entre
nós. Não tenho dúvidas que ele acreditava de facto em mim e no que eu lhe ia
revelando com verdade sobre as minhas actividades, mormente no tal
sindicato dos trabalhadores rurais onde nunca fui secretário, mas apenas e sem
qualquer conotação política, a única coisa que tinha feito fora ajudar na escrita em virtude de os dirigentes eleitos serem todos analfabetos. E sim senhor,
tinha-me de facto disponibilizado para os ajudar em tudo quanto pudesse mas apenas por uma questão de humanidade, uma vez que, conhecendo cada um deles de toda
a minha vida, sabia que tinham a mesmíssima humilde e honrada condição do meu próprio
pai.
Desde
quando - desabafei - ajudar é crime? E mais! Ao aderirem a um
sindicato para defenderem os seus interesses, aqueles honestos trabalhadores
não estavam a fazer nada de mal. Porque não haveria eu de os ajudar se tinha
todo o meu tempo livre por não conseguir arranjar trabalho desde que regressara da guerra? Não duvido
que foi a má fé e malvadez de algumas pessoas que eu inocentemente julgava
minhas amigas quem criou à minha volta uma teia de calúnias e falsidades para me denegrirem. Nunca fui militante de nenhum partido político. Mas se o tivesse sido só
estaria a usufruir de um direito constitucionalmente reconhecido a todo e qualquer cidadão.
Naquela
tarde soalheira de outono enquanto percorríamos calmamente o nosso giro
de patrulha com oito horas de duração, contei-lhe ainda sem qualquer receio aquela que foi para mim a melhor medida que o “tal” meu amigo doutor da alfândega - Teixeira Alves - tinha "trazido" de Lisboa para
dezenas de velhotes da minha freguesia. Fora publicada em Diário da República uma nova lei que ia obrigar todas as entidades patronais a inscreverem os seus trabalhadores na
segurança social a fim de descontarem para as suas reformas e usufruírem dos
abonos de família dos filhos menores, aqueles que ainda os tivessem. E essa lei continha também uma cláusula extraordinariamente importante que dizia, mais coisa menos coisa, algo assim:
Qualquer
indivíduo que tivesse trabalhado mais de cinco anos para uma entidade patronal
e de onde tivesse saído por motivo de velhice há menos de cinco anos, teria
direito de ser ainda por lá reformado, bastando para tanto preencher uns formulários
que se iam buscar à Caixa de Previdência de Portalegre - hoje designada Segurança Social - sita à data na Avenida
Frei Amador Arrais, arranjar a seguir três
testemunhas com mais de 21 anos que atestassem por sua honra terem
conhecimento que aquele indivíduo trabalhara para a tal entidade patronal
durante mais de cinco anos, e, automaticamente, essa entidade patronal seria
obrigada a reembolsar a Caixa de Previdência dos descontos retroactivos, podendo
logo a seguir o trabalhador que tivesse mais de 65 anos de idade requerer a sua
reforma, bastando para tanto preencher um requerimento em impresso próprio.
Não
sei dizer que Lei foi aquela. É de finais de 1974, princípios de 1975. Deduzo que terá sido a “mãe” da Lei que tornou obrigatórios os
descontos para a Segurança Social de todo e qualquer trabalhador e que por
essa altura entrou definitivamente em vigor. Não tenho qualquer dúvida em
afirmar que sei, com absoluta certeza, que foi esse o “grave crime” que eu
cometi à luz do entendimento mal-intencionado de algumas pessoas que tiveram que abrir os cordões à bolsa para que trabalhadores que as serviram
uma vida inteira, alguns durante mais de 60 anos – sim, sessenta anos de
dedicação ao mesmo patrão – tivessem direito à sua mais que merecida pensão de reforma.
Logo que a Lei foi publicada no Diário da República e entrou em vigor, o doutor Teixeira Alves “requisitou-me” para fazermos o “levantamento” de quantas pessoas haveria naquelas condições para que as pudéssemos ajudar. Dito e feito. Nem pensei duas vezes. Ajudar a quem faz falta, aprendi no berço. E além disso conhecia os interessados um a um. Sabia onde moravam, sabia mesmo que muitos deles viviam agora apenas do pouco que tinham conseguido amealhar na sua sacrificada vida de trabalho e de uma mísera “reforma da casa do povo” que nem dava quase para a renda, mas, sobretudo, do auxílio dos filhos, aqueles que os tinham por perto.
Logo que a Lei foi publicada no Diário da República e entrou em vigor, o doutor Teixeira Alves “requisitou-me” para fazermos o “levantamento” de quantas pessoas haveria naquelas condições para que as pudéssemos ajudar. Dito e feito. Nem pensei duas vezes. Ajudar a quem faz falta, aprendi no berço. E além disso conhecia os interessados um a um. Sabia onde moravam, sabia mesmo que muitos deles viviam agora apenas do pouco que tinham conseguido amealhar na sua sacrificada vida de trabalho e de uma mísera “reforma da casa do povo” que nem dava quase para a renda, mas, sobretudo, do auxílio dos filhos, aqueles que os tinham por perto.
Contactámo-los um a um. E informámo-los também um a um dos passos necessários.
E fomos depois pedir orientação e ajuda a um grande homem da direção
da Caixa – de quem não vou citar o nome – que sempre se disponibilizou amavelmente
para ajudar fosse no que fosse. A “cor” política dele? Não sei. Nunca soube. O que sabia era que na Beirã, nos Barretos e
por todos os lugarejos em redor havia por certo mais de duas dezenas de idosos
que tinham trabalhado em determinado patrão não apenas
cinco, mas, muitos deles, mais de cinquenta anos. A sua vida toda. E viviam agora
assim, velhos, incapazes e quase sem nada, por falta do apoio a que tinham
direito depois de uma vida inteira de trabalho e sacrifício.
Confesso
que foi uma das obras que ajudei a levar por diante de que mais me orgulho até hoje. Ciente da tremenda justiça que nela se concretizava, suportei tudo aquilo que quiseram dizer de mim. Se ser
comunista é lutar pelo bem-estar de quem nada tem, pois bem, eu sou um
grandessíssimo e convicto comunista porque jamais deixarei de fazer o mesmo sempre e cada vez que for necessário.
Qual
foi então a "parte" que mais me “incriminou” em todo aquele processo?
Várias.
Para não dizer todas.
Primeiro,
fui eu que andei de porta em porta a informar os velhotes daquilo a que tinham
direito e o que precisavam fazer. Depois fui eu também que fui a Portalegre com o
doutor Teixeira Alves no carro dele buscar os formulários necessários e aprender a preenchê-los para depois o ensinar aos interessados. Em seguida
fui novamente eu que os preenchi todos porque nenhum idoso sabia
ler nem escrever. Mais ainda fui eu que tive que convencer muitas das
testemunhas a atestarem por sua honra que tinham visto aqueles idosos a
trabalhar naquele patrão durante mais de cinco anos. Para não falar dos medos
que tive que ajudar a dissipar porque “era o senhor fulano tal que depois
se podia ofender quando soubesse…” ou então porque “o seu filho, irmão ou primo trabalhavam
ainda lá e podiam vir a ter problemas.”
Um
a um lá consegui convencê-los que hoje era por aqueles mas amanhã seria
decerto por eles próprios. E numa atitude de total confiança mostrando-lhes a
minha tranquilidade de consciência e ausência de qualquer receio, a primeira
assinatura de todos aqueles formulários era a minha. Muitas dessas testemunhas,
tenho a certeza, só perderam o receio de assinar depois de verem lá o meu nome escarrapachado logo à cabeça.
Em consequência do meu sincero empenho, que, volto a repetir, nada, mas absolutamente
nada, teve a ver com partidarismos políticos, soube, pouco depois, que todos os formulários entregues tinham sido deferidos, originando à tal entidade patronal ter que
pagar à Caixa de Previdência um reembolso na ordem dos seiscentos mil escudos, quantia algo elevada na altura, mas
acumulada por serem de facto muitos os seus ex-trabalhadores com o direito
reconhecido pela nova Lei.
O
meu camarada e velho guarda Alpalhoeiro nem movia as pálpebras de tão absorto e interessado
que estava na minha narrativa...
E
continuei:
Assim
que terminou a fase do reembolso pela entidade patronal demos início à fase de
requerer as respectivas pensões de reforma. Como não podia deixar de ser, lá
tive que ser eu outra vez a “descalçar a bota” aos velhotes. Orientado sempre pelo tal ilustre senhor e amigo da Caixa de Previdência, preenchi os
requerimentos a quem o solicitava. Todo o processo
não durou mais de três ou quatro meses. É preciso esclarecer também com todas as letras e inequivocamente que a minha colaboração foi totalmente gratuita e nunca aceitei qualquer forma de pagamento apesar de algumas dessas pessoas insistirem em gratificar-me.
Passadas poucas semanas os requerimentos de reforma de todos os requerentes foram também deferidos sem qualquer
entrave e logo a seguir foram informados os interessados dos respectivos
montantes de reforma mensal que lhes seria atribuída a partir da data em que tinham
completado 65 anos, bem como o valor retroactivo acumulado a receber e que em alguns casos era,
naquele tempo e para eles, uma pequenina fortuna. Sessenta contos uns, oitenta contos
outros, enfim, conforme era a soma dos meses em retroactividade assim eram os
montantes acumulados a haver. Vi muitas lágrimas furtivas de incredulidade
em muitos olhos, vi também imensa gratidão em muitos outros, mas, sobretudo, senti
uma paz e felicidade interiores muito mais valiosas que todo o dinheiro em questão.
Só
não me apercebi das inimizades ocultas que tudo aquilo desencadeou sobre mim
porque nunca foram capazes de mostrar o rosto, preferindo, à
boa maneira dos cobardes atacar pelas costas e por métodos sujos. E só não me
apercebi mesmo de nada porque muito pouco tempo depois fui-me embora para as Minas da Panasqueira
– de onde nunca deveria ter saído – afastando-me da Beirã e esquecendo completamente tudo aquilo até
ingressar na Guarda quase cinco anos depois.
José
Coelho in Camaradagem - Histórias do Cota
Obs: - Esta narrativa não está publicada no livro