sábado, 28 de julho de 2018

A mais doce das memórias...

Florinda da Conceição Lourenço  
7.10.1926 - 28.7.2014


A Avó Florinda Lourenço

Nasceu no dia 7 de outubro de 1926 num lugar a que chamam" O Muro" algures nas margens do ribeiro da Sapateira já não muito longe da sua foz a nordeste da então freguesia de Santo António das Areias. Contudo e por força da criação da freguesia da Beirã em 24 de junho de 1944, o território geográfico de abrangência da mesma foi desanexado ao de Santo António das Areias pelo que o Muro pertence desde essa data à Beirã.

O pai – o meu avô e grande amigo – de seu nome José Lourenço mas mais conhecido como o Zé Cabreiro por ser guardador de rebanhos na Herdade do Matinho que ficava muito próxima do lugar onde vivia numa pequena casita que ainda hoje lá existe e na qual nasceram os seus oito filhos.

A mãe – minha avó, confidente e amiga – aquela santa velhinha que ela acolheu em nossa casa e de quem cuidou amorosamente durante os oito anos em que a nossa querida anciã esteve acamada e dela totalmente dependente até ao dia em que faleceu, chamava-se Amélia da Conceição, a qual, entre os nascimentos dos oito filhos que teve, era jornaleira na monda, na sacha ou na rega das searas e das várzeas pertencentes à herdade.

Teve 8 irmãos a Avó Florinda. Ela era a mais velha, seguida pelo Francisco, depois o Joaquim, o Raimundo, a Jacinta, a Maria Francisca, a Júlia e um outro, o mais novo, do qual não sei o nome, porque não sobreviveu. Por ser a primogénita coube à avó Florinda logo a partir dos seus tenros 7 ou 8 anitos ter de cuidar dos irmãos mais novos em casa enquanto o pai e a mãe trabalhavam de manhã à noite, para o seu sustento.

Para fazer pão tinha a avó Florinda que, uma vez por um mês, levar à cabeça um taleigo com centeio em grão e caminhar os quilómetros que separavam o Muro do moinho do Ti Domingos no rio Sever - cerca de cinco km - para moer o grão mediante o pagamento de uma maquia e regressar de novo ao Muro já com a farinha centeia de novo à cabeça para poder depois amassar, tender e cozer no forno de lenha o pão de cada semana para a família toda.

O seu cuidar dos irmãos mais novos não se resumia só a olhar por eles e a dar-lhes de comer. Se um deles adoecia, lá tinha que ir a magricela Florinda a pé com o doentinho escarrapachado na anca a caminho de Santo António das Areias que distava uns bons 9 ou 10 quilómetros do Muro, a fim de o ir “amostrar” ao médico. Já agora aproveito para explicar que quando se estava doente por aqui antigamente não se dizia “vou ao médico a uma consulta” mas apenas “vou-me amostrar” e toda a gente depreendia que aquele “amostrar” era uma consulta no médico por se estar doente.


Por tudo quanto dela sei, acho sinceramente que a vossa avó foi quase toda a sua vida e desde muito menina, uma quase-tudo-em-um. Irmã/mãe de todos os seus irmãos, assim como, mais tarde, foi também avó/mãe de quase todos os netos, a começar logo pelo seu adorado Manel Coelho. Acolheu também sempre em sua casa os irmãos quando estes decidiram “juntar-se” com as namoradas e foi quase como que uma segunda mãe também para as suas cunhadas que muito a estimaram sempre.

Tão bondosa criatura, só não teve mesmo sequer tempo de ser menina, coitada. Mal chegou aos 11 anos já com os irmãos mais crescidinhos e autossuficientes, prontamente foi promovida a criada de servir no Monte dos senhores do Matinho como ajudante da cozinha, da queijeira ou da horta, tendo que contribuir com o seu ganho para as despesas da casa paterna, continuando sempre da mesma maneira a exercer a função de braço direito da sua mãe.

Aos 19 anos conheceu o avô António, 16 anos mais velho que ela, coisa que não a impediu de gostar tanto dele que, um ano depois, fugiram os dois para o Vale do Cano onde ele tinha uma várzea de pimentões. Nesse dia se constituiu mais uma família, da qual nós somos a continuação. E ocorre-me, para encerrar este capítulo, uma ternurenta resposta que ela me deu, numa conversa que tivemos os dois à porta da igreja, quando saíamos da missa. Ela ia muito cuidada como sempre. Mas nesse domingo, além do fato domingueiro, levava um colar de pequenas perolas negras em volta do pescoço.
Achei-a tão bonita que lhe sussurrei ao ouvido: - Florindinha! Té lé hein? Se o António Coelho aqui estivesse hoje e te visse…

Resposta pronta de quem estava viúva havia já 15 anos:

-  Se o Antónho Coelho cá estivesse hoje, filho, era com ele que eu me casava outra vez…

Deste diálogo há uma testemunha que vai com certeza ler o que escrevi e é capaz de se lembrar da cena. Foi a nossa muito estimada vizinha Alzira Sobreiro que se encontrava perto de nós. E, ao ouvir a pronta resposta da avó, exclamou com genuína admiração:

- É assim mesmo vizinha Florinda. Você é cá das minhas. Ora dê cá um grande beijinho…

E beijaram-se efetivamente as duas, na mais perfeita harmonia e amizade.


José Coelho in Histórias do Cota

Nota breve:
Quando este texto foi escrito ainda a tinha comigo.
Faz hoje 4 anos que nos deixou.