quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Coisas q'escrevi...

Altar-mor da Igreja matriz de Nisa 


“Pedi e recebereis”


Foi em Nisa, quando me encontrava no desempenho das minhas funções profissionais de comando. As coisas não estavam fáceis. Problemas muito sérios e relacionados com comportamentos desajustados do meu superior imediato, de quem eu era também, sem falsas modéstias, sinceramente amigo.

Profissionalmente entendíamo-nos bem porquanto eu nunca me baldei às minhas obrigações e responsabilidades e talvez por isso o ambiente entre o efetivo que trabalhava sob a minha orientação direta era bastante coeso, disciplinado e eficaz, mas, sobretudo, reinava entre todos um espírito de camaradagem e de equipa que mais se assemelhava ao de uma grande família, coisa que muito me comprazia e de certo modo orgulhava.

Porém, como quase sempre nada é perfeito, o meu superior tinha um feitio algo complicado para lidar com quase tudo. Connosco seus subordinados, com a sociedade civil, até mesmo em sua casa com a família. Era vulgar as pessoas da vila fazerem-me reparos e queixarem-se pela forma prepotente e brusca com que por vezes eram abordadas por ele. Mais vulgar ainda era ter que acalmar os ânimos de alguns subordinados nossos completamente indignados com a rudeza autoritária e desumana como eram por ele vulgarmente tratados.

O que não deveria ser vulgar, julgo eu, era a sua esposa, confidente e grande amiga da minha, entrar frequentemente pela nossa casa dentro com o rosto marcado pela violência conjugal a suplicar-me socorro! E não foi só uma vez que isso aconteceu. Com os filhos de ambos era a mesmíssima coisa. Castigos a mais, alguns dos quais com requintes de crueldade. Sorte dele nesse tempo a violência doméstica não ser praticamente levada em conta, porque, se fosse hoje, todos aqueles comportamentos dariam matéria para um processo-crime com dezenas de testemunhas.

Por tudo isso via-me muitas vezes encurralado entre a amizade e o dever de obediência e lealdade para com ele, enquanto meu superior, mas também para com o incontornável dever de lealdade e defesa dos direitos dos meus subordinados diretos, sistematicamente postos em causa.  Tudo isso mexia muito com a minha consciência e zelo profissionais de todo impossíveis de conciliar com tais irregularidades. Tornava-se evidente a cada dia que passava uma reprovadora e perigosa censura nos olhos de todos, subordinados e civis que se apercebiam de coisas absolutamente reprováveis e impróprias de um responsável direto pelo cumprimento da lei.

Vivia eu por isso muito inquieto. Cheguei inclusivamente a desabafar com o meu médico de família, já então excelente amigo nessa altura, dada a tensão permanente que me assolava o espírito e me provocava distúrbios ao ponto de ter que ser medicado com tranquilizantes para conseguir dormir. Era um dilema. A denúncia ao escalão de comando imediatamente superior a ele, repugnava-me. Nunca consenti bufos a chibarem-se contra camaradas seus, fosse por que motivo fosse. Era por isso impensável eu fazer uma coisa dessas. Mas aquelas atitudes chocavam também contra todos os meus princípios e valores. Dentro dos limites do respeito que lhe devia e tinha, fazendo uso da confiança que a amizade havia instaurado entre nós, algumas vezes tentei chamá-lo à razão. Inutilmente. Ele é que sabia. Quem mandava era ele. Que não me preocupasse.

Que atitude tomar então?

Sem saber para onde me virar e como muitas vezes fiz ao longo da minha vida sempre que disso tive necessidade, procurei a ajuda do divino. Num dia e hora completamente aleatórios e sem prévia programação, dirigi-me à igreja matriz para me recolher no silêncio e na retemperadora paz do seu interior em busca de alguma transcendente inspiração que me aquietasse o espírito e indicasse um caminho. Entrei quando estava a começar uma missa e a celebração envolvia atividades com crianças da catequese.

Deixei-me ficar ao fundo da igreja discretamente rodeado pela assembleia anónima a tentar passar despercebido, mas logo a minha comadre Natária, uma das mais competentes e ativas colaboradoras daquela comunidade há muitos anos, reparou em mim e foi ter comigo para me dizer:

- Ainda bem que aqui estás, compadre. Queres ir fazer uma das leituras da missa?

- Sim, posso fazer, respondi sem pensar duas vezes, porque também na minha paróquia sempre colaborei nessas atividades quando me foi solicitado.

E assim, sem nada ter sido preconcebido, estava já a ser parte interveniente naquela celebração eucarística que nem sabia estar prestes a começar, quando me dirigi à igreja. Senti logo naquele convite um sinal de acolhimento do Senhor. É muito difícil traduzir por palavras esses sentimentos íntimos da nossa alma, mas dir-vos-ei que à luz da minha fé senti assim como que um “fizeste bem vir aqui”. Presunção e água benta cada um toma a que quer, diz a sabedoria popular, mas sem que me ocorra melhor forma de o explicar, senti efetivamente que aquele convite para ir fazer uma das leituras mais não era que um invisível sinal de boas-vindas. A igreja estava repleta de gente, porque fora eu o escolhido?

A celebração começou. Fui fazer a leitura que me tinha sido solicitada e voltei discretamente de novo para o meu lugar ao fundo do templo. A dado momento durante o ofertório realizado pelas crianças, enquanto uma delas estendia o cestinho para recolher as ofertas, uma outra criança oferecia a cada pessoa uma pequena tira de papel que trazia escrita uma mensagem de conteúdo litúrgico. E lá veio uma delas estender-me o cesto onde coloquei a minha oferta, enquanto a outra me entregava um “recado” numa tirinha de papel que aceitei e guardei, mas não sem primeiro ler a curta frase nele contida e que dizia assim:


Fiquei a olhar surpreendido para o minúsculo papel que me pareceu ser mais um sinal, só que desta vez bastante mais óbvio. E involuntariamente estremeci sentindo que me invadia um sentimento da mais profunda gratidão. Apenas consegui murmurar um “Bendito sejas Senhor”. Quando saí da igreja pouco depois, o meu coração navegava num mar de serenidade porque se sentia abençoado pela inabalável certeza de que as minhas súplicas tinham sido atendidas. E aquele papelito que levava no bolso era um prenúncio de esperança que ia muito além do que alguma vez imaginara encontrar.

Passaram mais de trinta anos. Trago, desde aquele dia, religiosamente guardada na minha carteira, aquela tirinha de papel já meio desfeita, pois para mim tem o valor de uma relíquia. E anda sempre comigo para a poder ler de novo naquelas horas mais agrestes da vida que todos temos de vez em quando. Para que não se desfaça nem deteriore mais, tive já que a resguardar com uma película transparente autocolante. E hoje digitalizei-a especificamente para a inserir neste relato para vocês a poderem ver também. Obviamente que não pretendo convencer e muito menos converter ninguém, mas também não tenho nenhum problema em mostrar e defender aquilo em que acredito e posso deste modo certificar. Contudo e como é obvio para quem me conhece, respeito sem qualquer dificuldade toda a gente. Crente ou não crente. Como gosto que me respeitem a mim.

Entretanto, coincidência ou talvez não, as coisas que tanto me perturbavam o espírito naquela época resolveram-se muito pouco tempo depois de forma inesperada e eficaz sem que eu nada tivesse feito para esse fim, a não ser prestar alguns esclarecimentos que me foram impostos e aos quais obrigatoriamente tive que responder, sem, no entanto, ter sido obrigado a ir mais além do que o estritamente necessário, escusando-me a lavar roupa suja ou a referir factos que me tinham sido confidenciados pelos próprios ofendidos sob sigilo, na amizade e na confiança mútuas, e que, por isso mesmo, me foi permitido omitir. Em meu entender, cabia aos próprios usarem do direito que os assistia de denunciarem ou não, todos esses factos, pois só a eles diziam respeito.

Pela veracidade e exatidão de tudo o que aqui escrevo e por muitos outros e diversos acontecimentos ao longo da minha vida, professo uma convicta fé que sinceramente me faz acreditar naquele ensinamento de Jesus aos Apóstolos:

- Pedi, e recebereis...

Também a situação que hoje aqui fica recordada refere apenas uma de muitas outras vezes em que no decorrer da minha vida me senti perdido e sem saber a quem pedir ajuda e por isso procurei na igreja abrigo e socorro. A sós, no silêncio benfazejo e acolhedor que ali fazem morada permanente. 

E sempre me senti acolhido. 

Sempre.


José Coelho 
in Histórias do Cota