Altar-mor da Igreja matriz de Nisa
“Pedi
e recebereis”
Foi em Nisa, quando me encontrava
no desempenho das minhas funções profissionais de comando. As coisas não estavam
fáceis. Problemas muito sérios e relacionados com comportamentos desajustados do meu
superior imediato, de quem eu era também, sem falsas modéstias, sinceramente
amigo.
Profissionalmente entendíamo-nos bem porquanto eu nunca me baldei às minhas obrigações e
responsabilidades e talvez por isso o ambiente entre o efetivo que trabalhava
sob a minha orientação direta era bastante coeso, disciplinado e eficaz, mas, sobretudo, reinava entre todos um espírito de camaradagem e de equipa que mais
se assemelhava ao de uma grande família, coisa que muito me comprazia e de certo modo orgulhava.
Porém, como quase sempre nada é perfeito, o
meu superior tinha um feitio algo complicado para lidar com quase tudo. Connosco seus
subordinados, com a sociedade civil, até mesmo em sua casa com a família. Era
vulgar as pessoas da vila fazerem-me reparos e queixarem-se pela forma prepotente e
brusca com que por vezes eram abordadas por ele. Mais vulgar ainda era ter que
acalmar os ânimos de alguns subordinados nossos completamente indignados com a rudeza
autoritária e desumana como eram por ele vulgarmente tratados.
O que não deveria ser vulgar, julgo eu, era a sua esposa, confidente e grande amiga da minha, entrar frequentemente
pela nossa casa dentro com o rosto marcado pela violência conjugal a suplicar-me
socorro! E não foi só uma vez que isso aconteceu. Com os filhos de ambos era a
mesmíssima coisa. Castigos a mais, alguns dos quais com requintes de
crueldade. Sorte dele nesse tempo a violência doméstica não ser praticamente
levada em conta, porque, se fosse hoje, todos aqueles comportamentos dariam matéria
para um processo-crime com dezenas de testemunhas.
Por tudo isso via-me muitas vezes
encurralado entre a amizade e o dever de obediência e lealdade para com ele, enquanto
meu superior, mas também para com o incontornável dever de lealdade e defesa dos
direitos dos meus subordinados diretos, sistematicamente postos em
causa. Tudo isso mexia muito com a minha
consciência e zelo profissionais de todo impossíveis de conciliar com tais irregularidades. Tornava-se evidente a cada dia que passava uma reprovadora e
perigosa censura nos olhos de todos, subordinados e civis que se apercebiam de
coisas absolutamente reprováveis e impróprias de um responsável direto pelo
cumprimento da lei.
Vivia eu por isso muito inquieto.
Cheguei inclusivamente a desabafar com o meu médico de família, já então
excelente amigo nessa altura, dada a tensão permanente que me assolava o
espírito e me provocava distúrbios ao ponto de ter que ser medicado com tranquilizantes para conseguir dormir. Era um
dilema. A denúncia ao escalão de comando imediatamente superior a ele, repugnava-me. Nunca consenti bufos a chibarem-se contra
camaradas seus, fosse por que motivo fosse. Era por isso impensável eu fazer uma
coisa dessas. Mas aquelas atitudes chocavam também contra todos os meus
princípios e valores. Dentro dos limites do respeito que lhe devia e tinha, fazendo uso
da confiança que a amizade havia instaurado entre nós, algumas vezes tentei
chamá-lo à razão. Inutilmente. Ele é que sabia. Quem mandava era ele. Que não
me preocupasse.
Que atitude tomar então?
Sem saber para onde me virar e como
muitas vezes fiz ao longo da minha vida sempre que disso tive necessidade,
procurei a ajuda do divino. Num dia e hora completamente aleatórios e sem prévia
programação, dirigi-me à igreja matriz para me recolher no silêncio e na retemperadora
paz do seu interior em busca de alguma transcendente inspiração que me aquietasse o espírito e indicasse um caminho. Entrei quando estava a
começar uma missa e a celebração envolvia atividades com crianças da
catequese.
Deixei-me ficar ao fundo da
igreja discretamente rodeado pela assembleia anónima a tentar passar despercebido, mas logo a minha comadre Natária, uma das mais competentes
e ativas colaboradoras daquela comunidade há muitos anos, reparou em mim e foi ter
comigo para me dizer:
- Ainda bem que aqui estás,
compadre. Queres ir fazer uma das leituras da missa?
- Sim, posso fazer, respondi sem
pensar duas vezes, porque também na minha paróquia sempre colaborei nessas
atividades quando me foi solicitado.
E assim, sem nada ter sido
preconcebido, estava já a ser parte interveniente naquela celebração eucarística que
nem sabia estar prestes a começar, quando me dirigi à igreja. Senti logo naquele
convite um sinal de acolhimento do Senhor. É muito difícil traduzir por
palavras esses sentimentos íntimos da nossa alma, mas dir-vos-ei que à luz da
minha fé senti assim como que um “fizeste bem vir aqui”. Presunção e
água benta cada um toma a que quer, diz a sabedoria popular, mas sem que me
ocorra melhor forma de o explicar, senti efetivamente que aquele convite para ir
fazer uma das leituras mais não era que um invisível sinal de boas-vindas. A igreja estava repleta
de gente, porque fora eu o escolhido?
A celebração começou. Fui fazer a
leitura que me tinha sido solicitada e voltei discretamente de novo para o meu
lugar ao fundo do templo. A dado momento durante o ofertório realizado pelas
crianças, enquanto uma delas estendia o cestinho para recolher as ofertas, uma
outra criança oferecia a cada pessoa uma pequena tira de papel que trazia
escrita uma mensagem de conteúdo litúrgico. E lá veio uma delas estender-me o
cesto onde coloquei a minha oferta, enquanto a outra me entregava um “recado”
numa tirinha de papel que aceitei e guardei, mas não sem primeiro ler a curta frase nele contida e que dizia assim:
Fiquei a olhar surpreendido para o minúsculo papel que me pareceu ser mais um sinal, só que desta vez bastante mais óbvio. E involuntariamente estremeci sentindo que me invadia um sentimento da mais profunda gratidão. Apenas consegui murmurar um “Bendito sejas Senhor”. Quando saí da igreja pouco depois, o meu coração navegava num mar de serenidade porque se sentia abençoado pela inabalável certeza de que as minhas súplicas tinham sido atendidas. E aquele papelito que levava no bolso era um prenúncio de esperança que ia muito além do que alguma vez imaginara encontrar.
Passaram mais de trinta anos. Trago, desde aquele dia, religiosamente guardada na minha carteira, aquela tirinha de papel já meio desfeita, pois para
mim tem o valor de uma relíquia. E anda sempre comigo para a poder ler de novo naquelas horas mais agrestes da vida que todos temos de vez em quando. Para que
não se desfaça nem deteriore mais, tive já que a resguardar com uma
película transparente autocolante. E hoje digitalizei-a especificamente para a inserir neste relato para vocês a poderem ver também. Obviamente que não pretendo convencer e muito
menos converter ninguém, mas também não tenho nenhum problema em mostrar e
defender aquilo em que acredito e posso deste modo certificar. Contudo e como é
obvio para quem me conhece, respeito sem qualquer dificuldade toda a gente. Crente
ou não crente. Como gosto que me respeitem a mim.
Entretanto, coincidência ou talvez
não, as coisas que tanto
me perturbavam o espírito naquela época resolveram-se muito pouco tempo depois de forma inesperada e eficaz sem que eu nada tivesse feito para esse fim, a não ser prestar alguns
esclarecimentos que me foram impostos e aos quais obrigatoriamente tive que
responder, sem, no entanto, ter sido obrigado a ir mais além do que o estritamente
necessário, escusando-me a lavar roupa suja ou a referir factos que me tinham
sido confidenciados pelos próprios ofendidos sob sigilo, na amizade e na confiança
mútuas, e que, por isso mesmo, me foi permitido omitir. Em meu entender, cabia aos
próprios usarem do direito que os assistia de denunciarem ou não, todos esses factos,
pois só a eles diziam respeito.
Pela veracidade e exatidão de tudo
o que aqui escrevo e por muitos outros e diversos acontecimentos ao longo da
minha vida, professo uma convicta fé que sinceramente me faz acreditar naquele ensinamento de Jesus aos Apóstolos:
- Pedi, e recebereis...
Também a situação que hoje aqui
fica recordada refere apenas uma de muitas outras vezes em que no decorrer da
minha vida me senti perdido e sem saber a quem pedir ajuda e por isso procurei na igreja abrigo e socorro. A sós, no silêncio benfazejo e acolhedor que ali fazem morada permanente.
E sempre me senti acolhido.
Sempre.
José Coelho
in Histórias do Cota