terça-feira, 11 de outubro de 2022

Santa (?) tapona!

O António. Não temos fotos dos tempos de crianças



E foi assim:

Embora só tenha três irmãs tive também um quase-irmão. É ele o principal protagonista desta história que hoje trago à baila! Foi meu primo em segundo grau e afilhado dos meus pais. Por isso mesmo se chamava António como o padrinho. Filho mais novo da irmã mais nova da minha avó Amélia, a tia Joaquina Brito, que era mãe solteira de dois rapazes. Do Manuel, o mais velho, já homem feito naquele tempo e ainda hoje vivo e com saúde nos seus mais de 80 anos, assim como também do António, dois anos apenas mais velho do que eu e que infelizmente faleceu em finais dos anos 70 vítima de um trágico acidente de viação com apenas 27 anos.

Além de trabalhar no campo para angariar o sustento para si e para os filhos, a tia Joaquina “Carroleta” sua mãe, era também contrabandista, como eram muitas outras mulheres por estas bandas naquele tempo. E foi numa fria madrugada a carregar com o bebé António ao colo e várias dúzias de ovos numa cesta à cabeça que foi apanhada pelos carabineiros espanhóis. Detida na mesma hora, foi conduzida à cadeia de Valência de Alcântara de onde transitou para a de Cáceres e lá ficou presa várias semanas por tão "gravíssimo" crime.

Entretanto por a cela ser bastante húmida e fria o pequenito contraiu tosse convulsa. Sem as mínimas condições para o tratarem "en la cárcel" e sem tencionarem libertar a aflita mãe, conseguiram, contudo, que ele fosse entregue aos cuidados da madrinha, a qual, naquela genuína generosidade que sempre a caracterizou, logo se prontificou para ficar com o petiz para o tratar e cuidar dele, ao mesmo tempo que cuidava de mim, bebé também nessa altura. Provavelmente por isso, o António eu e a minha mãe gostávamos muito uns dos outros e isso acabou por nos unir aos três numa profunda e fraterna amizade.

Como não havia um pai presente em sua casa e a vida era muito complicada nesse tempo, o António não tinha brinquedos, como aliás eu também tinha poucos, apesar de ter o meu pai presente, assim como a maior parte das crianças de então, principalmente os filhos dos camponeses pobres como nós. Porém, nesse ano pelo Natal, o padre Caetano arranjou, não me lembro já muito bem como nem de onde, alguns brinquedos para serem distribuídos pelas crianças mais necessitadas que frequentavam a catequese. O António nunca lá punha os pés por ser um miúdo um pouco rebelde, por a catequista lhe não ser simpática, talvez também por ser um rapazote mais crescido e com pretensões a sentir-se já dono do seu nariz.

Consequência direta: o António não teve direito a receber nada, apesar de ainda andar na escola. Sucedeu, no entanto, que depois de todos os brinquedos distribuídos sobraram ainda alguns. E entre eles, uma pequena bola de borracha pouco maior que uma laranja que o António cobiçava e lhe fazia até brilhar os olhos. Primos e amigos inseparáveis como sempre fomos, aproveitei o acesso privilegiado que tinha a tudo em redor do pároco por ser o seu sacristão, peguei na bola sem dar cavaco a ninguém e ofereci-lha de presente, na ingénua esperança que ninguém fosse dar pela falta.

Feliz da vida, em vez de esconder a irregular “oferta”, o sacana exibiu o troféu a toda a gente numa atitude bacoca de desafio como que a dizer “não me deram nada mas já cá canta um brinquedo” originando que a notícia chegasse num ápice aos atentos ouvidos do padre a quem não deve ter sido difícil somar um mais um, para chegar à conclusão lógica de como a bola fora parar às mãos daquele indomável rebeldezito que nunca punha os cotos na catequese nem tinha pai que o obrigasse a ir, mas queria ter as regalias dos outros que nunca faltavam.

Poucos dias depois, lá fui eu “chamado a capítulo”:

- Coelhinho, chega aqui – ordenou o sacerdote com um ar muito carrancudo.

E perguntou a olhar-me nos olhos:

- Onde está aquela bola verde que estava aqui?

Não havia volta a dar!

Numa secreta esperança de a confissão do delito reverter em meu benefício, respondi amedrontado:

- Dei-a ao meu primo António, sr padre!

- E com ordem de quem? Voltou ele a inquirir…

- De nin-ninguém se-senhor pa-padre…

- Fo-foi porque ele na-não te-teve nenhum bri-brinquedo no Natal - tentei justificar apavorado com o semicerrar de olhos do furibundo padre.

- Záááásss… 

Uma estrepidosa e dolorosa bofetada na minha face com aquela mãozorra pesada toda aberta!

- Isto é para aprenderes a não ser atrevido – vociferou o padre.


Até vi candeias a bailarem diante dos olhos, tal foi o estaladão.

Enxuto, com a cara em fogo, papei-a e calei-me, não fosse o diabo tecê-las, pois se a mãe Florinda soubesse, ia de certeza acrescentar mais algumas! 

Ai ia, ia...

O padre "malhou-me" mas o que fiz foi com boa intenção - pensei.

Que se lixasse!

O António ganhou a bola dele! Olá se ganhou. Já ninguém lha tirou e ficou mesmo com ela.

Porra! Podia era ter calado o bico, não?

Amigo, primo-quase-irmão, quantas lembranças e saudades! Onde quer que estejas, sabes com certeza que se fosse hoje, eu voltaria a fazer exatamente o mesmo.

Porque tu merecias.

Mais tapona, menos tapona, que se lixasse outra vez! Dada pelo padre, até deve ter sido santa!

E… 

Olha lá: 

-Aqui só para nós, aquilo não foi roubar, pois não?


José Coelho - Histórias do Cota