O António. Não temos fotos dos tempos de crianças
E
foi assim:
Embora
só tenha três irmãs tive também um quase-irmão. É ele o principal
protagonista desta história que hoje trago à baila! Foi meu primo em segundo
grau e afilhado dos meus pais. Por isso mesmo se chamava António como o
padrinho. Filho mais novo da irmã mais nova da minha avó Amélia, a tia Joaquina Brito, que era mãe solteira de dois rapazes. Do
Manuel, o mais velho, já homem feito naquele tempo e ainda hoje vivo e com saúde
nos seus mais de 80 anos, assim como também do António, dois anos apenas mais velho do que eu e que infelizmente faleceu em finais dos anos 70 vítima de um trágico acidente de viação com apenas 27
anos.
Além
de trabalhar no campo para angariar o sustento para si e para os filhos, a
tia Joaquina “Carroleta” sua mãe, era também contrabandista, como eram muitas outras mulheres
por estas bandas naquele tempo. E foi numa fria madrugada a carregar com o bebé António ao colo e
várias dúzias de ovos numa cesta à cabeça que foi apanhada pelos
carabineiros espanhóis. Detida na mesma hora, foi conduzida à cadeia de
Valência de Alcântara de onde transitou para a de Cáceres e lá ficou presa
várias semanas por tão "gravíssimo" crime.
Entretanto por a cela ser bastante húmida e fria o pequenito contraiu tosse convulsa.
Sem as mínimas condições para o tratarem "en la cárcel" e sem tencionarem libertar a aflita mãe, conseguiram, contudo, que ele fosse entregue aos cuidados da madrinha, a
qual, naquela genuína generosidade que sempre a caracterizou, logo se
prontificou para ficar com o petiz para o tratar e cuidar dele, ao mesmo tempo que
cuidava de mim, bebé também nessa altura. Provavelmente por isso, o António eu e a
minha mãe gostávamos muito uns dos outros e isso acabou por nos unir aos três numa profunda
e fraterna amizade.
Como
não havia um pai presente em sua casa e a vida era muito complicada nesse
tempo, o António não tinha brinquedos, como aliás eu também tinha poucos,
apesar de ter o meu pai presente, assim como a maior parte das crianças de
então, principalmente os filhos dos camponeses pobres como nós. Porém, nesse
ano pelo Natal, o padre Caetano arranjou, não me lembro já muito bem como nem
de onde, alguns brinquedos para serem distribuídos pelas crianças mais
necessitadas que frequentavam a catequese. O António nunca lá punha os pés por
ser um miúdo um pouco rebelde, por a catequista lhe não ser simpática, talvez
também por ser um rapazote mais crescido e com pretensões a sentir-se já
dono do seu nariz.
Consequência
direta: o António não teve direito a receber nada, apesar de ainda andar na
escola. Sucedeu, no entanto, que depois de todos os brinquedos distribuídos sobraram
ainda alguns. E entre eles, uma pequena bola de borracha pouco maior que uma
laranja que o António cobiçava e lhe fazia até brilhar os olhos. Primos e
amigos inseparáveis como sempre fomos, aproveitei o acesso privilegiado que tinha a
tudo em redor do pároco por ser o seu sacristão, peguei na bola sem dar cavaco a
ninguém e ofereci-lha de presente, na ingénua esperança que ninguém fosse dar
pela falta.
Feliz
da vida, em vez de esconder a irregular “oferta”, o sacana exibiu o troféu a
toda a gente numa atitude bacoca de desafio como que a dizer “não me deram nada mas já cá canta um brinquedo” originando que a notícia chegasse num ápice aos atentos ouvidos do
padre a quem não deve ter sido difícil somar um mais um, para chegar à conclusão lógica
de como a bola fora parar às mãos daquele indomável rebeldezito que nunca punha
os cotos na catequese nem tinha pai que o obrigasse a ir, mas queria ter as
regalias dos outros que nunca faltavam.
Poucos dias depois, lá fui eu “chamado
a capítulo”:
- Coelhinho, chega aqui – ordenou
o sacerdote com um ar muito carrancudo.
E perguntou a olhar-me
nos olhos:
- Onde está aquela bola verde que
estava aqui?
Não havia volta a dar!
Numa secreta esperança de a
confissão do delito reverter em meu benefício, respondi amedrontado:
- Dei-a ao meu primo António, sr padre!
- E com ordem de quem? Voltou ele
a inquirir…
- De nin-ninguém se-senhor pa-padre…
- Fo-foi porque ele na-não
te-teve nenhum bri-brinquedo no Natal - tentei justificar apavorado com o semicerrar de olhos do furibundo padre.
- Záááásss…
Uma estrepidosa e dolorosa bofetada na minha face com aquela mãozorra pesada toda aberta!
- Isto é para aprenderes a não
ser atrevido – vociferou o padre.
Até vi candeias a bailarem diante
dos olhos, tal foi o estaladão.
Enxuto, com a cara em fogo,
papei-a e calei-me, não fosse o diabo tecê-las, pois se a mãe Florinda soubesse,
ia de certeza acrescentar mais algumas!
Ai ia, ia...
O padre "malhou-me" mas o que fiz foi com boa intenção - pensei.
Que se lixasse!
O António ganhou a bola dele! Olá
se ganhou. Já ninguém lha tirou e ficou mesmo com ela.
Porra! Podia era ter calado o
bico, não?
Amigo, primo-quase-irmão, quantas
lembranças e saudades! Onde quer que estejas, sabes com
certeza que se fosse hoje, eu voltaria a fazer exatamente o mesmo.
Porque tu merecias.
Mais tapona, menos tapona,
que se lixasse outra vez! Dada pelo padre, até deve ter sido santa!
E…
Olha lá:
-Aqui só para nós, aquilo não foi roubar, pois não?
José Coelho - Histórias do Cota