Foto by José Coelho
"Origens
No
dia 27 de Junho de 2004, em cerimónia pública, foram apresentados os símbolos
heráldicos da freguesia da Beirã. Três elementos gráficos pretendem definir
três momentos marcantes na vida desta jovem freguesia: uma anta, uma locomotiva
e uma “fonte”.
Na
verdade, se a formação desta freguesia conta apenas com sessenta anos de idade,
e o aglomerado urbano nos finais do século XIX se resumia apenas a “quatro
casinholas”, como nos diz A. Magalhães, já o seu território é o que apresenta
maior concentração e diversidade de sítios arqueológicos de todo o concelho de
Marvão. Quando um dia se promover uma carta arqueológica deste concelho
rapidamente nos aperceberemos como a freguesia da Beirã aparecerá enxameada de
arqueossítios de todas as épocas e períodos. A principal razão para esta
continuada ocupação histórica e, sobretudo pré-histórica, prende-se com a
envolvência do Rio Sever e dos múltiplos pequenos regatos seus subsidiários que
drenam a paisagem multifacetada que constitui a freguesia da Beirã. Água em abundância,
diversidade de solos e diferentes substratos geológicos criaram as condições
necessárias para que desde épocas muito recuadas o homem procurasse estas
paragens.
Nas
cascalheiras, junto ao Sever, conhecem-se vestígios de vários acampamentos do
Paleolítico, nas encostas suaves, sobretudo junto a estreitos vales férteis, as
primeiras comunidades agro-pastorís, durante o Neolítico, aqui construíram os
seus frágeis povoados e aqui tumularam os seus mortos em “eternas” antas.
Vinte
e dois dólmenes conseguiram sobreviver mais de cinco mil anos nas terras desta
pequena freguesia, indiciando um muito denso povoamento entre o 3.º e o 4.º
milénio antes de Cristo. Com a descoberta e desenvolvimento da metalurgia o
fulgor da freguesia da Beirã manteve-se, e até terá aumentado, atendendo ao
número e dimensão dos vários locais com vestígios de ocupação atribuídos a
esses tempos. Pelo menos dois destes povoados, Vidais e Corregedor, mantiveram
ocupação até à chegada do domínio Romano.
Com
a consolidação da cosmopolita cidade romana de Ammaia, as férteis terras da
freguesia da Beirã foram exploradas até à exaustão para saciar as mesas dos
abastados romanos que viviam do outro lado do concelho de Marvão. Várias
“villae”, casas agrícolas romanas, foram, há dois mil anos, instaladas nas
melhores terras da freguesia da Beirã. No Garreancho, no Vale do Cano, na Torre
do Azinhal, nos Pombais, na Retorta e nas Amoreiras grandes casas agrícolas
romanas foram construídas, para além de pequenos casais, igualmente agrícolas, dos
quais há vestígios por toda a freguesia.
Com
o fim do Império Romano e morte da Ammaia as terras da freguesia da Beirã
assistem a uma nova reorganização económica e social. Pequenos aglomerados
urbanos, assentes numa economia muito fechada começam a constituir-se para
albergar as gentes que, anteriormente, dependiam da fausta Ammaia. Dos vários
povoados desta época conhecidos nesta freguesia merecem destaque o do Monte
Velho, o do Pereiro Velho, o da Broca e o do Vale do Cano. É, contudo, o do
Monte Velho, porque é o único que foi parcialmente escavado na década de
quarenta do século XX, que melhor se conhece. Recorde-se que foi neste habitat
que se recolheu uma telha, hoje desaparecida, onde, em “latim bárbaro” se podia
ler “aqui esteja a paz, aqui esteja Cristo”. Felizmente a sua transcrição foi
preservada numa laje de granito que decora a fachada de uma das casas da Rua do
Castelo, em Marvão. Estes habitats foram sobrevivendo durante o conturbado
período da denominada “Reconquista Cristã” e nalguns, testemunhados por
reconstruções múltiplas, a ocupação humana chegou até aos nossos tempos.
De
entre os sítios com maior carga simbólica desta freguesia é, sem dúvida, o
Penedo da Rainha. Formação granítica com singular recorte fálico, não passou
despercebido aos homens do Neolítico e Calcolítico, atendendo às cerâmicas
muito roladas que ainda ocorrem no pequeno abrigo que junto a ele se abre.
Também em Novembro de 1518, à sombra deste imponente penedo terá descansado a
terceira mulher do Rei D. Manuel I, a Rainha Dona Leonor de Áustria, irmã do
Imperador Carlos V, donde lhe sobreveio o nome por que hoje é conhecido, Penedo
da Rainha. Pena é que este imponente bloco granítico, cheio de história e
tradição, merecedor de constar na representação heráldica da Beirã, se encontre
tão esquecido e abandonado. Testemunho que foi de um dos episódios mais
deslumbrantes, alguma vez ocorridos neste concelho, a paragem do séquito real
que acompanhava a entrada da Rainha Dona Leonor em terras de Portugal, adormece
negligenciado junto de uma das casas mais antigas da Beirã.
Um
outro dos locais desta freguesia que, pelo menos desde o Neolítico, foi
continuamente procurado é a denominada “Fonte da Maria Viegas”, também
conhecida por Fadagosa onde, nos primeiros anos do século XX foi construído o
luxuoso complexo termalístico, hoje, também ele, totalmente esquecido e
abandonado.
Mas
a história desta freguesia viria a ser marcada de forma indelével com a
construção do denominado “Ramal Ferroviário de Cáceres” e a consequente instalação
da Estação dos Caminhos-de-ferro. Enquanto em Portugal, mais uma vez, se
discutia o melhor traçado para a ligação ferroviária a Espanha, os nossos
vizinhos, pragmaticamente, assentavam os carris em direcção a Valência de
Alcântara para escoamento do fosfato que nos finais do século XIX se explorava,
em grande quantidade, nesta zona da Extremadura espanhola. Para o concelho de
Marvão e especialmente para a Beirã o pragmatismo do governo liberal espanhol
foi fundamental para o seu desenvolvimento. Com a colaboração do Eng. D. João
da Câmara foi, então, gizado o traçado da linha, passando pela Beirã, apesar
dos muitos protestos das gentes da rica freguesia de S. Salvador da Aramenha.
Provavelmente, não fora o traçado pela Beirã e não teríamos hoje a notável peça
teatral de os “Velhos” e as figuras do velho Patacas, da Emilinha e do
mestre-escola Porfírio.
Cumpriram-se
em Maio, deste ano, cento e vinte anos da abertura do Ramal de Cáceres à
circulação normal de comboios. Podemos dizer que se cumpriu nesse passado mês
mais um aniversário do nascimento da povoação da Beirã. Com a passagem de
comboios, veio a estação, e com ela vieram a alfândega, os despachantes, a
Guarda Fiscal, a PIDE, os ferroviários, o comércio, as habitações, o Clube, o
Teatro e a Família Vivas. Ficará, seguramente para a história desta terra a
fixação nesta aldeia do espanhol de Valência de Alcântara, Manuel Vivas
Pacheco. Seu filho, Manuel Berenguel Vivas, figura polémica, manteve o ritmo
empreendedor de seu pai e marcou de forma indelével a economia e a
sociabilidade desta aldeia. A ele se ficou a dever a construção da Igreja de
invocação de Nossa Senhora do Carmo, benzida a 16 de Julho de 1944 e para qual
foram transladados os restos mortais de Manuel Vivas Pacheco e de sua mulher Carmen
Berenguel L’Hospitaux. A invocação desta Igreja a Nossa Senhora do Carmo ficou
a dever-se à forte devoção que Carmen L’Hospitaux dedicava ao seu culto.
Sabemos, contudo, que anteriormente, na Beirã, pelo menos em 1916, teria
existido uma outra capela na qual ocasionalmente era celebrada missa. A
religiosidade da Família Vivas ficou, igualmente, bem marcada através do
esforço e dedicação de Manuel B. Vivas na instalação da congregação religiosa
que, ainda hoje, ocupa o Convento de Nossa Senhora da Estrela de Marvão e nas
múltiplas capelas que mandou construir por todo o concelho, valendo-lhe o
epíteto, enquanto Presidente da Câmara, de “O Capelista”, em contraponto a
outros autarcas, que pela Câmara de Marvão passaram, cognominados,
popularmente, de “ O Estradista” e “ O Fontista”.
Mas
a História da Beirã, sobretudo durante a Segunda Grande Guerra, ficou marcada
por episódios interessantíssimos relacionados, essencialmente, com o volfrâmio
e com o controlo da exportação de produtos para a Alemanha Nazi, provenientes
de um país que se dizia neutro. Mas estas histórias ficarão para outra altura…
Com
a abolição das fronteiras os comboios já não param na Beirã, aqui passando a
grande velocidade e, ao mesmo ritmo, esta aldeia viu partir a Alfândega, a
Guarda Fiscal e os ferroviários. A Beirã está, lentamente, a definhar. Será que
a sua longa história lhe poderá ser útil? Assim saibamos tirar partido de um
vasto e riquíssimo património que esquecido adormece por entre “canchos” e
“balceirões”.
Jorge
de Oliveira"
in http://www.cm-marvao.pt/pt/beira/origens
Notas:
Este elucidativo e extraordinário texto do Exmº Professor Doutor Jorge Oliveira está já em parte desactualizado porquanto o Ramal de Cáceres foi definitivamente encerrado ao tráfego ferroviário em 15-8-2012, assim como as religiosas da Congregação das Filhas de Maria Mãe da Igreja partiram definitivamente da Santa Casa de Marvão, conforme notícias que se anexam:
1 - Ramal de Cáceres irá encerrar a 15 de agosto de 2012
A Refer vai encerrar o Ramal de Cáceres (Torre das Vargens / Marvão-Beirã) à exploração ferroviária a partir do próximo dia 15 de agosto, dando assim seguimento a uma das medidas previstas no PET – Plano Estratégico de Transportes. Segundo a gestora da infraestrutura ferroviária “em consequência, a partir desta data, o comboio internacional Lusitânia passará a circular, em itinerário alternativo, pela Linha da Beira Alta”. O comboio-hotel Lusitânia, que faz a ligação entre Lisboa e Madrid, era o único serviço ferroviário a circular no Ramal de Cáceres, uma vez que a CP suspendeu o serviço regional de passageiros em fevereiro de 2011. Este ramal, inaugurado em 1880, faz a ligação entre a estação de Torre das Vargens, na Linha do Leste, com a fronteira espanhola na estação de Marvão-Beirã, numa distância total de 81,5Km.
(Resta acrescentar que este encerramento teve como consequência imediata a quase desertificação da aldeia onde as casas desabitadas se contam já às dezenas em quase todas as ruas).
2 - Também as Religiosas da Santa Casa da Misericórdia de Marvão pertencentes à Congregação das Filhas de Maria Mãe da Igreja deixaram definitivamente aquela nobre instituição conforme pode ler-se em nota da Diocese de Portalegre/Castelo Branco, que se anexa:
Sessenta e oito anos depois de terem chegado a Marvão, as Irmãs Filhas de Maria Mãe da Igreja despediram-se da nossa Diocese de Portalegre-Castelo Branco. No dia 11 deste mês de Setembro, teve lugar uma festa homenagem de despedida na Santa Casa da Misericórdia de Marvão, com Eucaristia de Ação de Graças e almoço convívio, de âmbito familiar, com os utentes e os corpos administrativos e colaboradores atuais e passados. Estiveram presentes o Bispo Diocesano, D. Antonino Dias, o Presidente da Câmara de Marvão, alguns sacerdotes ligados à Santa Casa, a Madre Geral e o seu Conselho, que vieram de Espanha para se associarem a esta iniciativa. Na homilia, D. Antonino, convidou todos os presentes a dar graças a Deus pelo dom das Irmãs na nossa Diocese, centrou a atenção na Palavra de Deus proclamada e abordou também o problema das vocações à vida consagrada que deve ser uma preocupação de todos os cristãos com fé viva e atenta, rezando, propondo e provocando os jovens. No fim da Eucaristia foram benzidas, com a presença de todos, as novas instalações recuperadas dentro da Santa Casa e, no final, foi descerrada uma lápide no átrio da entrada, a fazer memória destes 68 anos em que as Irmãs se dedicaram a esta Casa. Durante o almoço, alguns dos presentes quiseram dar o seu testemunho sobre o louvável e dedicado trabalho das Irmãs ao longo de todos estes anos, sem deixarem de mencionar a capacidade de ultrapassar as dificuldades, a facilidade em resolver situações e a alegria com que viviam e se dedicavam a este serviço, 24 horas por dia, como consequência da sua forte fé e amor a Jesus Cristo no irmão. Como eram, por todos, consideradas família, não só dentro da Santa Casa mas também em Marvão, o ambiente era “pesado” pelo tom de despedida que o envolvia, mas ao mesmo tempo também era de alegria cristã e de solidariedade com as Irmãs que, na impossibilidade de continuarem por falta de vocações, partem com todos no coração e continuarão a trabalhar ao serviço do Reino de Deus, onde o Senhor agora as chama. O Provedor da Santa Casa, sensibilizado, agradeceu todo o trabalho desempenhado pelas Irmãs. A Madre Superiora falou do que lhe ia na alma, lembrou a caminhada das Irmãs nesta Diocese, a pena que lhes ia na alma por não poderem continuar e agradeceu a amizade do povo de Marvão e o acolhimento de toda a Diocese, pois também estiveram em Nisa e noutros lugares da Diocese. As Irmãs que estavam nesta Comunidade, depois de receberem algumas lembranças dos presentes, agradeceram, pela pessoa da Superiora, a Irmã Fátima, todo o carinho de que sempre foram alvo, partindo com a esperança de que tudo vai continuar a correr bem, pois o guia e modelo para agir é o Senhor Jesus Cristo presente em cada um e nesta Casa.
Obrigado, Irmãs. Que o Senhor vos ajude.
Nota final:
Somos pois uma parte de território português de uma beleza única e rara, com milénios de história comprovada por infindáveis vestígios arqueológicos, muitos deles com mais de cinco mil anos, e que, em apenas quarenta anos de novas políticas, entrou num processo que se adivinha irreversível de acelerada desertificação.
José Coelho,
o Beiranense inconformado.