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Querida
mãe,
Querido
pai:
O
tempo passa sobre as lágrimas que choro, já nem cicatrizes tenho do que um dia
me feriu. E no entanto a memória. A insuportável da memória.
Ninguém
merece uma memória feliz.
E
eu fui. E nós fomos. Felizes. A casa cheia com a nossa alegria dentro. O
quintal, o avô a contar mil e duas vezes as histórias que já tinha contado mil
e uma vezes, a avó sempre preocupada em encher a mesa, os tios a dizerem que a
vida custa. E custa, pai. E custa, mãe.
Ninguém
merece uma casa vazia.
E
os cheiros. Os cheiros não passam. Os cheiros são a melhor forma de se sofrer.
Cheiro a cozinha onde um dia a vida. Onde um dia o sonho. Eu menino na cozinha
cheia do avô, da avó e dos tios. Eu menino a sonhar com eu grande, grande como
os tios – «um dia vou ser rico e comprar muitas coisas». Eu menino a querer
crescer.
Ninguém
merece um corpo que cresce.
E
a perda. A miserável da perda. A avó com um cancro dentro. O avô a ceder a cada
dia que a sua Maria se ia. E os tios e as rugas. Todos a irem a cada dia em que
eu crescia. E tudo morre quando nos morrem os sonhos.
Ninguém
merece ficar para além dos sonhos.
E
já não há avó e já não há avô. Há o cheiro da cozinha quente com os meus sonhos
dentro. O cheiro do quarto onde me escondia, debaixo da cama, para ver os
adultos falar. As palavras novas, palavras grandes, palavras feias. O abraço
apertado do tio André – «estás a ficar um mocetão, rapaz» – nas minhas costas
de criança. A casa vazia com o que sou dentro.
Ninguém
merece sobreviver ao que mata.
E
ter um pai e uma mãe. Só quando a casa se esvazia é que se sabe o que vale um
pai, o que vale uma mãe. E não interessa o que foi, o que ficou por ser. Não
interessam as palavras que um dia dissemos, os erros que um dia não evitámos
cometer. Não interessa a voz grossa do pai – «tens de ser um homem a sério» –
nem a dor muda da mãe. Não interessa o que se perdeu quando se tem um pai e uma
mãe para apertar. Ainda estamos, mãe. Ainda estamos, pai.
Ninguém
sabe o que é perder quando ainda tem uma mãe e um pai para abraçar.
E
enquanto tiver os vossos ombros para pousar nenhuma lágrima morrerá solteira.
Pedro
Chagas Freitas in "Prometo falhar"