No acelerado processo de degradação física e mental a que assisti nas últimas semanas de vida da minha mãe houve um episódio que me espantou e marcou profundamente. Eu sabia obviamente que ela estava a "ir-se embora" a caminhar a passos muito largos para o fim do seu percurso terreno e que nada neste mundo poderia já reverter tal situação. Sentado à sua cabeceira ouvindo-a gemer em surdina certa tarde, perguntei-lhe: - Mãe, o que tem? E ela, com a simplicidade que sempre lhe conheci, respondeu-me tranquilamente: - Tenho já vontade de ir para ao pé do teu pai, filho.
Foram dias, semanas, muito complicados para mim. Cientes da inevitabilidade da morte de cada ser humano não é mesmo assim nada fácil sentirmos que vamos perder o ente que mais amamos na nossa vida. E por mais que no nosso íntimo tentemos aceitar que perante um cenário como aquele de enorme e imparável sofrimento, a solução mais justa para quem assim está a padecer é deixá-la partir para que possa finalmente descansar em paz, nunca estamos preparados para esse doloroso momento.
Foi num final de tarde de um dos últimos dias em minha casa que subitamente ela começou a falar alto não sei para quem mas feliz como um passarinho à solta pelos campos. E ria-se, ria-se, ria-se. E falava para um João Roma e para uma MariNeves que já faleceram há um ror de anos e chamava pela cadela do monte, a Ribeira, completamente eufórica como se estivesse no meio de toda aquela gente talvez na monda do trigo no Matinho onde nasceu, cresceu, se fez mulher, conheceu o meu pai e com ele casou. Nunca na minha vida tinha visto a minha mãe tão alegre e tão feliz. Conversava animadamente para um grupo de pessoas que só ela via e ouvia, provavelmente pessoas boas a quem quis muito bem e com quem conviveu na sua juventude.
Bem tentei interromper aquela estranha euforia tocando-lhe no ombro, segurando-lhe as mãos, fazendo-lhe perguntas. - Mãe, está a falar com quem? Mas ela não me ouvia nem me respondia. Era como se eu nem ali estivesse porque continuava a conversar, conversar, conversar, deslumbrada com as recordações que vieram assim inopinadamente ter com ela e parecia terem inundado de súbito a sua memória transportando-a para um tempo em que deve ter sido infinitamente feliz. Mais estranho ainda foi a duração daquele seu estranho e inusitado êxtase porque falou, falou, falou, riu, riu, riu, ininterruptamente, durante toda essa noite e manhã do dia seguinte.
Nunca pronunciou o nome do meu pai de quem ela tanto gostava, nem o de nenhum dos filhos ou netos que ela também sempre adorou. A sua felicidade parecia ser anterior a todos nós. Da sua meninice ou juventude. E durou dezasseis ou dezassete horas sucessivas. Nem as interrupções necessárias para cuidar dela, alimentá-la e medicá-la suspenderam por um segundo sequer aquele seu tão alucinado como feliz estado. Quem passasse na rua ouvia decerto o eufórico discurso e as felizes gargalhadas. Nunca tinha assistido a nada assim. Só ao início da tarde do dia seguinte, tal como começou, subitamente ficou em silêncio e se calou, qual radio que tivesse sido desligado. A seguir adormeceu profundamente num sono de várias horas, num sossego estranho mas por certo reparador, porque tinha que estar completamente exausta.
Dali a mais uns dias começou a sofrer de violentas convulsões motivo pelo qual teve que ser internada no hospital distrital para se tratar. Porém pouco ou nada havia já a fazer para lhe recuperar a vida que estava manifestamente a abandoná-la. Infelizmente já não regressou à minha e sua casa, porque, após ter alta do hospital, foi encaminhada para a unidade de cuidados continuados, aonde, poucos dias depois, foi ao encontro do meu pai, no meio de uma tarde de fins de Julho. Como mãe exemplar que sempre foi esperou por nós até à hora da visita para que nos despedíssemos dela e só depois partiu tranquila como um passarinho, uma das suas mãos entre as minhas e a outra entre as mãos da minha irmã mais nova, ambos a seu lado naquela triste hora.
Aquilo que aconteceu foi para mim um mistério inexplicável. Não sendo um saudosista por sistema, tenho contudo um grande apego às minhas raízes e memórias. Amo a minha família mais que a qualquer outra coisa no mundo, amo a terra que me viu nascer, amo a vida e tudo o que ela me deu. Muitas vezes dou por mim a pensar naquele episódio inexplicável da minha mãe tão doentinha mas no entanto tão feliz porque, durante um dia e uma noite inteiros, inconscientemente ou não, não sei, algo no seu cérebro a fez mergulhar nas mais gratas recordações da sua já então longa vida. Tinha quase 88 anos. Por conseguinte, aquelas recordações que pareciam ser-lhe tão gratas, tinham com certeza mais de 70. Como é possível que a nossa prodigiosa mente nos transporte para tão longas distâncias temporais para podermos daquela maneira reviver tempos passados, os quais, decerto por terem sido tão bons, criaram raízes profundas que rebentaram depois daquela forma em jeito de feliz saudade.