segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Solidariedade, caridade, generosidade, humanidade e outras coisas terminadas em "ade"...


Imagem copiada do Google

O que os nossos olhos vêem por tudo o que são órgãos de comunicação social acerca do modo como estão a ser tratados, numa Europa dita civilizada, os "fugitivos" da guerra e do caos que reina nas suas terras onde não lhes é permitido viverem em paz, é, em meu entender, VERGONHOSO. 

Como se não bastasse a dor de terem que deixar para trás tudo quanto foi a sua vida até a mesma se ter tornado num verdadeiro inferno com o perigo e a morte a espreitarem a cada esquina, com famílias desfeitas ou porque morreram num bombardeamento, ou porque foram capturados e feitos reféns pelas partes em litígio. 

Como se não fosse já suficientemente problemático e traumatizante o sobressalto constante de quem vive o dia a dia naquelas perigosas zonas de permanentes conflitos e que por causa deles se vêem obrigadas a fugir para procurar a segurança (que qualquer ser humano merece) a muitos milhares de quilómetros, já que, entretanto, os países vizinhos seus irmãos nos credos e nos costumes para além de podres de ricos não aceitam recebê-los, ajudá-los ou protegê-los, numa inexplicável e crua desumanidade.

Assim sendo, outra opção não lhes é deixada senão a de se aventurarem e meterem-se ao caminho por mais longo que pareça em busca de abrigo e proteção, quer para si quer para os seus. O desespero e o tudo por tudo fá-los ainda meterem-se em barcos inadequados que outros criminosos lhes facultam a troco de gananciosas maquias, sabendo de antemão que a maior parte deles irá perecer em alto mar, como tem acontecido e sobejamente noticiado.

Contudo, porém, muitos são ainda os que de uma forma ou de outra conseguem alcançar o almejado chão seguro. Para quê? Para serem escorraçados, humilhados, rejeitados, agredidos, como se fossem portadores de doenças ruins e contagiosas. A famosa Europa dos direitos humanos, da democracia e da liberdade, apressa-se a dar o dito por não dito, remete Shengen para os antípodas e aqui não entra mais ninguém, ou, se entrar, serão só uns tantos mil. Os outros? Que se lixem. Que se comam uns aos outros. Que vão morrer longe para não cheirarem mal.

Repito: VERGONHOSO!

Eu estive na guerra. Há 40 anos, sim. Mas lembro-me do que lá passei ainda hoje, lembrar-me-ei até morrer. Não, não sou daqueles traumatizados que se atiram para trás das paredes ou para debaixo das camas quando ouvem um foguete a rebentar. Mas ainda tenho pesadelos e acordo muitas vezes de noite aos pulos na cama. Ou, ao contrário, passo algumas noites a contar carneiros sem conseguir dormir. Quem vive no bem-bom e nunca viu os miolos de um camarada espalhados pelo para-brisas de um unimog, ou um desgraçado quase feliz por ter perdido só um pé na explosão da mina que pisou, a limpar terra e o sangue do coto decepado enquanto murmurava "posso meter um pé postiço..."

Quem, como diz o Paco Bandeira na cantiga, "nunca viu, quem nunca andou a combater, não dá valor nem faz ideia o que é sofrer". Não fazem, MESMO. Nunca fui de histórias da desgraçadinha  mas senti a guerra na pele e sei o quanto é horrível acordar todos os dias a pensar que se pode morrer em qualquer momento daquele mesmo dia. De tal modo foi duro que vou confessar-vos uma coisa que nunca disse a ninguém; esqueci o verdadeiro contorno dos rostos da minha mãe e das minhas irmãs. Não conseguia reconstituí-los, por mais que me concentrasse a tentar imaginá-los. Nas fotografias que me enviavam frequentemente pareciam-me sempre tão diferentes! Que estranho, não? Mas que verdade! A minha, a preocupação de todos nós, 24 sobre 24 horas, era sobreviver. Durante o dia, ficar atentos a qualquer movimento estranho no meio daquele inferno verde onde se escondia a morte. Durante a noite, rezar para que não fossemos acordados com o bombardeamento do quartel ao romper da aurora, como já tinha acontecido em outros quarteis da nossa unidade situados a poucos quilómetros do nosso. Não havia nenhum lugar seguro num raio de mais de duzentos quilómetros porque toda aquela imensa superfície era coberta pelo denso e para nós quase impenetrável Maiombe, onde, inexplicavelmente, os guerrilheiros se movimentavam à vontade e sem dificuldades aparentes.

Ora se nós vivíamos assim naquele sobressalto permanente no meio de uma floresta, imagino o que será viver num pais, numa cidade, numa vila ou numa aldeia rodeados desse medo incessante. Sentir o perigo em cada casa, em cada rua, em cada esquina. Viver cada momento a pensar; será que vou chegar ao fim do dia vivo? E os meus filhos, e os meus pais, e a minha mulher, e os meus irmãos? Será que vamos conseguir sobreviver todos a este inferno? Tentem imaginar uma vida assim com a vossa família. Deve ser para lá de aterrorizante. Eu já há 41 anos que regressei ao sossego e à paz do meu alentejo, contudo, nunca mais fui capaz de ser a mesma pessoa alegre e feliz que em 1972 partiu para o Maiombe. NUNCA MAIS. Esta tendência para a melancolia e para o isolamento é fruto de violentos e íntimos traumas que nunca me abandonaram nem irão abandonar jamais.

Quando há semanas atrás vi aquele miudito morto na praia não contive uma lágrima de revolta e de frustração pela incompetência na ajuda que ele merecia e tanto necessitava. Nós no Maiombe éramos emboscados à traição pelos guerrilheiros do MPLA e da UNITA, morreram 18 camaradas desfeitos por balas e minas, e mais 103 feridos graves tiveram que ser evacuados, muitos dos quais foram morrer aos hospitais de Luanda dias mais tarde, ou ficaram estropiados para sempre como aquele que perdeu o pé, mas nunca maltratámos a população indígena, nunca os olhámos a todos como inimigos nem nos vingámos nos inocentes, muito pelo contrário, dávamos boleia às mulheres carregadas de filhos às costas e volumes enormes à cabeça, tratávamos os miúdos doentes na nossa enfermaria, transportávamos os adultos doentes na nossa ambulância, ajudávamos a construir-lhes e a equipar-lhes escolas. 

Dei o meu almoço a duas meninas irmãs de tenra idade certo dia porque não aguentei o olhar faminto delas no meu prato. Elas à espera de boleia para o Buco Zau em frente ao posto de rádio, onde eu, de radiotelegrafista de turno àquela hora, me preparava para comer umas batatas com peixe cozido. Perante aqueles enormes olhitos aguados, não consegui meter sequer uma batata pra boca. Chamei-as, sentei as duas na mesa do posto de rádio e dei-lhes o almoço a elas. Fiquei mais saciado com a gratidão que vi naqueles dois rostinhos negros do que se tivesse almoçado um bom bife. Foi isso que vi também sempre fazer à minha mãe durante toda a sua vida e aprendi com ela. Repartir. Repartir. Repartir. E foi sempre tão pobre a minha família. Mas mesmo assim sabiamos repartir. Quando era preciso, repartia-se. Foi o que eu fiz naquele dia sem pensar duas vezes. E não me senti nem herói nem santo. Senti apenas que tinha feito o que era preciso fazer naquele momento.

É exactamente o que eu acho que a Europa deveria fazer. Repartir. O pão, a paz, a solidariedade. Se há dinheiro para tanta coisa dispensável e secundária, também tem que haver para dar pão a quem tem fome porque isso é prioritário e indispensável para aquela gente que está a fugir da morte, da guerra e do medo. Terroristas infiltrados no meio deles? É possível. Cabe  contudo aos serviços próprios de cada país, selecionarem vigiarem e neutralizarem potenciais suspeitos. Mas que isso seja um pretexto para negar ajuda generalizada é inconcebível. Nós não temos cá terroristas. Mas todos os dias morre gente na estrada ou assassinada. Mulheres pelos maridos, ou ajustes de contas, ou por causa de partilhas, ou de uma levada de água... Ou... Ou... Ou. Não é bem terrorismo mas é morte violenta na mesma! 

Invasão da Penínula Ibérica da Europa ou do resto do mundo pelo estado islâmico? Não me amolem com essas fantasias que só são boas para quem ao ver os problemas dos outros costuma assobiar para o lado, a fingir que os não vê...