O campo ainda se compôs assim com as gravanadas de Abril
Estávamos nós já imensamente felizes a pensar que o bom tempo finalmente estava de chegada e a esconjurar o frio invernoso que tanto nos fustigou com os seus nóveis frios polares nunca antes tão agrestes! Tá bem, abelha. Ainda há dias escrevi acerca das laranjeiras que tenho em frente da porta no outro lado da rua, todas vestidas das suas alvas e perfumadas flores, por trazerem aromas de paraíso a este canto da aldeia. É vê-las agora, pobres coitadas. Sacudidas pelo vendaval e fustigadas pelas bátegas das valentes trochadas de água que amiúde desabam das negras nuvens em verdadeiras cascatas, as delicadas pétalazitas brancas jazem inertes e enxovalhadas aos montes pelo chão todas salpicadas de lama. Olho para esta autêntica profanação da primavera e no mais alentejano dos desabafos, resmungo desolado:
- Ora porra!
Será possível que já nem o tempo é como era? Se eu fosse as laranjeiras, desistia de dar laranjas. Foi sumamente esquisito no passado mês de novembro, quando as temperaturas cálidas do verãozinho de são martinho "enganaram" as pobres árvores fazendo-as pensar que vinha chegando a primavera. E elas, trabalhadoras, prontamente se dispuseram a florir como umas doidas, ansiosas por darem os seus frutos e sem se aperceberem que estavam fora d'época. Mal podiam imaginar que daí a mais duas ou três semanas os gelos do inverno iam queimar todo o seu empenho. Nunca tal tinha visto na minha vida. Laranjeiras em flor (a do meu quintal também) em meados de novembro. Depois, em meados de dezembro, foi ver o solo, por baixo delas, todo coberto de bolinhas pretas. As laranjinhas precoces queimadas pelas agressivas geadas das noites.
Mas não só.
Nos tenros rebentos das parreiras do meu quintal e dos quintais vizinhos, avessas a qualquer humidade mal começam a abrir as novas parras, logo o míldio e o oídio começam também a tomar posse delas. E é ver como apresentam já aquela cor amarelada ou com manchas escuras e a "encarquilharem" doentes. Sulfatar nem vale a pena porque na hora a seguir vem outra caqueirada d'água e lá se vai a calda para o maneta. Ou muito me engano, ou este ano não vai haver cachos de qualidade. A ver vamos. Por essas e por outras tenho tanta estima em tudo aquilo que o meu pai me ensinou. E muitas vezes lhe ouvi dizer que maio couveiro não é vinhateiro. Não sei se sabem que na gíria do campo "couveiro" quer dizer "chuvoso". Sem saber ler nem escrever foi ele inequivocamente o meu melhor mestre. Sabia mais destas coisas da natureza que qualquer enciclopédia da national geographic. E eu adorava ouvi-lo falar de tudo aquilo que ele sabia. E aprendi mais com ele do que com todos os livros que já li. Não é por acaso que tenho sempre tantas saudades. Dele e de tudo o que foi a minha vida.
O uivar do vento nas fisgas das venezianas das janelas faz pensar que voltámos outra vez ao mês do natal. Tão depressa brilha um raio de sol como parece que vai anoitecer de repente com a aproximação de mais um céu de chumbo e o rugir de mais uma carga d'água que encharca tudo outra vez. Puta de sorte. Vá lá que já colhi as ervilhas tortas e essas já estão acondicionadas à espera dos ovos escalfados e do chouriço. Falta ainda colher as favas que esta ventania já fez o favor de tombar todas. Mais parece que um cilindro passou pelo quintal e sobre elas. E lá dizia o meu pai (outra vez ele) que a vida do agricultor é muito arriscada. Nunca sabe se vai ter abundância ou falta dela. Tudo a depender sempre do bom ou mau humor do tempo. Mas nunca o vi desistir. Se o vento derrubava, ele erguia de novo. Se a sementeira não fundia bem, ele semeava outra vez. Que falta me fazes ainda hoje, pai. Já não tenho quem me aconselhe e ajude como tu tão bem sabias fazê-lo na tua humilde mas sábia sensatez.
Porque é que a gente tem que se separar de quem ama de verdade e assim nos ama também a nós? Ah e tal, é a lei da vida, temos que levar com paciência, coisa e tal, pardais ao ninho... Pois! Mas fica um vazio do catano. Na nossa vida e no nosso coração. Tão grande, que a gente nunca mais se recompõe, nem consegue, por mais que tente, voltar a ser o que era. Mas é melhor mudarmos de assunto! Lá vêm mais uns raiozinhos de sol a quererem animar a minha tarde. Mau... Já se está a esconder outra vez. Que falta de coerência a sua, ó senhor tempo! Anda também (como eu) muito baralhado, não? Hum... Mas não, não deve andar, porque, se o meu saudoso Mestre Pechorra sabia que havia assim maios couveiros, com certeza que há 100 anos já o tempo pregava partidas destas. Pois! Se ainda estivesse connosco, ele já teria 104 anos. E porque não? O nosso estimado vizinho Vitorino Antunes vai a caminho dos 103 e eram rapazes do mesmo tempo.
Como é que eu não hei-de estar também a ficar velho? Tanta coisa já vivi. E aprendi. E perdi...