sábado, 2 de outubro de 2021

Faz o vento companhia

Sócha do Miradouro - Beirã

Um amigo que não se deixa ver mas de quem gosto, pese embora seja às vezes mais agreste do que a conta. Há quem ache sinistro o seu uivo quando vem zangado, mas a mim nunca me meteu medo. Nos serões à lareira, ouvi-lo rugir lá no alto do côncavo chapéu de telhas da chaminé da nossa cozinha, era para mim a bendita glória. Indiferente à fúria com que ele embatia lá em cima nas tijoleiras em vê, o lume de lenha crepitava sossegadamente oferecendo o seu calor e conforto a toda a nossa família instalada à sua volta. Em vez de termos medo, o estrondo da invernia fazia com que nos sentíssemos ali em segurança e abrigados. Hoje, a muitas décadas de distância, rodeado de conforto e de mordomias que à época não existiam, sinto infinitas saudades de coisas tão simples como aqueles longos serões de inverno em redor do lume onde a minha mãe preparava a ceia depois do seu dia de árduo trabalho no campo.

 

À medida que fui adquirindo novos conhecimentos tive que, em simultâneo, aprender a lidar com o meu invisível amigo de modo a não me deixar vencer por ele. Coisas tão básicas como acender um lume ao relento para me aquecer nos dias agrestes, húmidos e frios, sem ter que gastar a caixa de fósforos inteira. E acender o lume no pico do verão no meio do restolho das searas para cozinharmos o almoço sem deitar fogo à tapada toda, era também uma aventura repleta de cuidados e truques. Apesar de os camponeses cozinharem sempre em lume de chão as suas refeições fosse onde fosse, ou em que época do ano fosse, os cuidados eram tão eficientes que nunca havia os fogos assassinos de pessoas e do ambiente como há agora.

 

A vida revelou-me ainda segredos que o meu invisível amigo até hoje não descobriu, nomeadamente como é que consegue derrubar quase tudo com a sua extraordinária força, menos as aparentemente frágeis sóchas? Ah pois! Destelha os mais sólidos telhados, levanta coberturas inteiras de armazéns, barracas e barracões, mas uma sócha raramente ele consegue destapar. Deixa-as sempre de pé exatamente como as encontra, seja qual for a fúria que trouxer. A forma cónica das suas coberturas não permite que lhes pegue, nem que as derrube. Não têm frinchas nem fraquezas por onde possa entrar ou pegar. Limita-se por isso a seguir o seu caminho depois de inutilmente se enrolar em redor do ereto e sólido cone vegetal, sabiamente inventado pelos nossos ancestrais para enfrentar tamanha impetuosidade e resistir-lhe.

 

Tive a sorte e o privilégio de os meus avós e tios maternos serem quase todos guardadores de rebanhos. E todos eles viviam parte do ano em sóchas e sôchos onde eu dormia sempre, quando os ia visitar. Já agora, porque muita gente não saberá qual a diferença entre ambos, explicarei que a sócha é uma construção circular fixa com vários diâmetros de raio, com uma parede em pedra seca de mais ou menos metro e meio de altura e uma porta de madeira sobre as quais é disposta em cone uma armação de paus compridos direitos e pouco grossos, afastados entre si vinte ou trinta centímetros, solidamente amarrados uns aos outros com arames desde a base até ao bico da estrutura para serem depois cobertos com camadas sobrepostas de giestas verdes, as quais, à medida que vão secando, se vão transformando numa compacta e impermeável cobertura. Quentes no inverno e frescas no verão, de um dos lados do círculo interior ficava normalmente a zona de estar e comer, ao centro e bem por baixo do topo do cone um quadrado no chão feito de algumas lajes para o lume, enquanto do outro lado do círculo interior ficava a zona de dormir quase sempre sobre tarimbas forradas de restolho macio, por baixo das quais se guardavam as roupas e alguns víveres.

 

Capaz de afrontar também qualquer temporal, o sôcho era o primo-irmão da sócha embora muito mais pequeno e desmontável para se poder mudar de sítio sempre que se tornava necessário. Todo feito em giesta ou palha de centeio dispostos também em camadas sobre uma armação côncava de varas verdes de vime (ou outra madeira flexível) previamente entrelaçadas e fixadas, era composto por quatro peças amovíveis. O lado côncavo direito, o lado côncavo esquerdo, o centro posterior em semi-arco para unir os dois lados côncavos direito e esquerdo, e, finalmente, o centro frontal amovível que fechava o espaço e simultaneamente fazia de porta para utilização diária. Era montado num cabeço nas cercanias do bardo onde o gado pernoitava durante grande parte do ano. Cada vez que o rebanho mudava de um para o outro extremo da herdade, o sôcho era desmontado para voltar a ser montado no novo local de pernoita do pastor e do gado.

 

Mas voltemos ao meu fiel e invisível amigo, que já vai longa a prosa! Em dias menos bons da minha vida e foram muitos, o murmúrio das folhas nos ramos das árvores que ele suavemente balança quando está calmo, ajudou a sossegar tantas vezes as minhas inquietações. E há lá coisa mais repousante do que deitarmo-nos de costas sobre a erva dos campos a observar as brancas nuvens de algodão no seu deslizar pelo azul do céu, guiadas por ele? É, seguramente, o meu mais velho e fiel companheiro. Respeitamo-nos um ao outro. Se vejo que vem zangado viro-lhe as costas, abrigo-me e deixo-o passar. Se pelo contrário vem tranquilo em forma de brisa, gosto de o sentir no rosto a sussurrar-me aos ouvidos impercetíveis notas musicais que parecem conter os timbres das vozes de pessoas queridas que há muito deixei de ouvir.

 

José Coelho