Um
amigo que não se deixa ver mas de quem gosto, pese embora seja às vezes mais
agreste do que a conta. Há quem ache sinistro o seu uivo quando vem zangado,
mas a mim nunca me meteu medo. Nos serões à lareira, ouvi-lo rugir lá no alto do
côncavo chapéu de telhas da chaminé da nossa cozinha, era para mim a bendita
glória. Indiferente à fúria com que ele embatia lá em cima nas tijoleiras em vê,
o lume de lenha crepitava sossegadamente oferecendo o seu calor e conforto a
toda a nossa família instalada à sua volta. Em vez de termos medo, o estrondo da
invernia fazia com que nos sentíssemos ali em segurança e abrigados. Hoje, a
muitas décadas de distância, rodeado de conforto e de mordomias que à época não
existiam, sinto infinitas saudades de coisas tão simples como aqueles longos serões
de inverno em redor do lume onde a minha mãe preparava a ceia depois do seu dia
de árduo trabalho no campo.
À
medida que fui adquirindo novos conhecimentos tive que, em simultâneo, aprender
a lidar com o meu invisível amigo de modo a não me deixar vencer por ele. Coisas
tão básicas como acender um lume ao relento para me aquecer nos dias agrestes, húmidos
e frios, sem ter que gastar a caixa de fósforos inteira. E acender o lume no
pico do verão no meio do restolho das searas para cozinharmos o almoço sem
deitar fogo à tapada toda, era também uma aventura repleta de cuidados e
truques. Apesar de os camponeses cozinharem sempre em lume de chão as suas
refeições fosse onde fosse, ou em que época do ano fosse, os cuidados eram tão eficientes
que nunca havia os fogos assassinos de pessoas e do ambiente como há agora.
A
vida revelou-me ainda segredos que o meu invisível amigo até hoje não descobriu,
nomeadamente como é que consegue derrubar quase tudo com a sua extraordinária força, menos as aparentemente
frágeis sóchas? Ah pois! Destelha os mais sólidos telhados, levanta coberturas
inteiras de armazéns, barracas e barracões, mas uma sócha raramente ele consegue
destapar. Deixa-as sempre de pé exatamente como as encontra, seja qual for a fúria que trouxer. A forma cónica das suas coberturas não permite que lhes pegue, nem que as derrube. Não têm frinchas nem fraquezas por onde possa entrar ou pegar. Limita-se
por isso a seguir o seu caminho depois de inutilmente se enrolar em redor do ereto e sólido cone vegetal, sabiamente inventado pelos nossos ancestrais para enfrentar tamanha
impetuosidade e resistir-lhe.
Tive
a sorte e o privilégio de os meus avós e tios maternos serem quase todos
guardadores de rebanhos. E todos eles viviam parte do ano em sóchas e sôchos
onde eu dormia sempre, quando os ia visitar. Já agora, porque muita gente não
saberá qual a diferença entre ambos, explicarei que a sócha é uma construção
circular fixa com vários diâmetros de raio, com uma parede em pedra seca de
mais ou menos metro e meio de altura e uma porta de madeira sobre as quais é
disposta em cone uma armação de paus compridos direitos e pouco grossos, afastados entre si vinte ou
trinta centímetros, solidamente amarrados uns aos outros com arames desde a base até ao
bico da estrutura para serem depois cobertos com camadas sobrepostas de giestas
verdes, as quais, à medida que vão secando, se vão transformando numa compacta e
impermeável cobertura. Quentes no inverno e frescas no verão, de um dos lados do
círculo interior ficava normalmente a zona de estar e comer, ao centro e bem
por baixo do topo do cone um quadrado no chão feito de algumas lajes para o
lume, enquanto do outro lado do círculo interior ficava a zona de dormir quase
sempre sobre tarimbas forradas de restolho macio, por baixo das quais se
guardavam as roupas e alguns víveres.
Capaz
de afrontar também qualquer temporal, o sôcho era o primo-irmão da sócha embora
muito mais pequeno e desmontável para se poder mudar de sítio sempre que se
tornava necessário. Todo feito em giesta ou palha de centeio dispostos também
em camadas sobre uma armação côncava de varas verdes de vime (ou outra madeira
flexível) previamente entrelaçadas e fixadas, era composto por quatro peças
amovíveis. O lado côncavo direito, o lado côncavo esquerdo, o centro posterior em
semi-arco para unir os dois lados côncavos direito e esquerdo, e, finalmente, o
centro frontal amovível que fechava o espaço e simultaneamente fazia de porta para
utilização diária. Era montado num cabeço nas cercanias do bardo onde o gado
pernoitava durante grande parte do ano. Cada vez que o rebanho mudava de um
para o outro extremo da herdade, o sôcho era desmontado para voltar a ser montado
no novo local de pernoita do pastor e do gado.
Mas
voltemos ao meu fiel e invisível amigo, que já vai longa a prosa! Em dias menos
bons da minha vida e foram muitos, o murmúrio das folhas nos ramos das árvores que
ele suavemente balança quando está calmo, ajudou a sossegar tantas vezes as
minhas inquietações. E há lá coisa mais repousante do que deitarmo-nos de
costas sobre a erva dos campos a observar as brancas nuvens de algodão no seu deslizar
pelo azul do céu, guiadas por ele? É, seguramente, o meu mais velho e fiel companheiro.
Respeitamo-nos um ao outro. Se vejo que vem zangado viro-lhe as costas, abrigo-me
e deixo-o passar. Se pelo contrário vem tranquilo em forma de brisa, gosto de o
sentir no rosto a sussurrar-me aos ouvidos impercetíveis notas musicais que
parecem conter os timbres das vozes de pessoas queridas que há muito deixei de ouvir.
José Coelho