Viver numa aldeia deste Portugal
profundo como a minha raiana Beirã tem muitas limitações e inconvenientes mas
tem também algumas vantagens, como, por exemplo, podermos comer cerejas diretamente
da cerejeira (ou outros frutos de época) sem qualquer perigo de contaminação
por químicos. Quando muito, haverá a possibilidade de o fruto conter algum
"marisco" hospedeiro que também precisa alimentar-se e tem direito à
vida. Como dizia o meu avô Zé Lourenço, "mal do bicho que vai para a
barriga d’outro".
Caminho frequentemente pelos campos em redor da aldeia e sei exactamente onde eram as hortas e onde continuam a lutar valentemente pela sua sobrevivência muitas das velhinhas árvores de fruto plantadas pela mão de gente boa que conheci e recordo com saudade. Uma dessas pessoas foi o senhor meu pai, exímio hortelão que tudo o que plantava na terra se multiplicava milagrosamente. As parreiras e oliveiras do nosso quintal foram plantadas por ele, a figueira pingo de mel foi obra do avô Faustino Coelho pai dele, que a plantou no sítio onde ainda continua, tinha eu 16 anos.
Na horta do Cancho de Ruivo há pereiras e macieiras, parreiras moscatel e figueiras de várias raças que são mais velhas "ca mim". Aproveitando a frescura que lhes proporciona a antiga fonte e o enorme tanque de granito – obra dos famosos canteiros de Gáfete que construíram também a lindíssima capela mortuária do nosso cemitério – continuam a lutar pela sua sobrevivência e a dar frutos ano após ano, mesmo parcialmente “abafadas” pelas silvas.
Pelas margens do ribeiro da Cavalinha desde a Beirã até ao Rio Sever já não se vislumbra sequer a terra de muitas dessas antigas e férteis hortas desbravadas a pulso porque foram invadidas pelas giestas, fetos e outro mato, mas em alguns locais ainda se enxergam entre esse mato renovos de videiras semi-bravas que trepam e surgem acima do caos que as envolveu, pereiras, figueiras de várias raças, nogueiras, macieiras e romãzeiras.
Junto às “casetas” onde habitavam as famílias dos “Assentadores” que meticulosa e diariamente tinham a seu cargo a manutenção do Ramal de Cáceres como por exemplo a do Maxial que já nem telhado tem, a poucos metros de distância onde era a horta que os alimentava o ano inteiro, continuam teimosamente de pé figueiras, cerejeiras, marmeleiros e pereiras.
Mais admirável ainda é que continuem também a resistir às décadas de abandono, algumas das flores plantadas pelas mãos das senhoras, esposas e mães d'outrora, pois até essas continuam a desafiar o tempo e a florir ano após ano sem se deixarem vencer. As ruínas da "caseta" do Maxial que referi no parágrafo anterior continuam cercadas de roseiras de duas ou três castas diferentes, sendo uma delas a de Alexandria, que, diz quem sabe, dá a rosa mais perfumada de todas as rosas, perpetuada numa quadra de cariz popular que reza assim:
A rosa para ser rosa/ tem de ser de Alexandria/ a mulher para ser formosa/ tem de chamar-se Maria.
Em cada primavera é admirável o bucólico cenário que exibe simultaneamente a triste casa em ruínas e num contraste totalmente oposto a vida, beleza e cor de todas aquelas roseiras florindo e exalando o seu inigualável perfume em redor. Ano após ano, década após década, completamente indiferentes ao abandono a que foram condenadas. Mas não é só no Maxial que se desenrola este milagre de vida.
No antigo canteiro na casa da minha avó Amélia junto à passagem de nível da Cavalinha as açucenas que ela plantou há mais de 40 anos continuam a nascer, a crescer e a florir em cada final de inverno. Vou lá visitá-las sempre e acaricio-as como se contivessem nelas as santas mãos que as plantaram e que eu amava tanto. A minha surpresa não tem fim por constatar como é possível uma flor aparentemente tão frágil não morrer sem ser tratada e regada debaixo dos nossos tórridos verões e no meio do matagal que cerca a casa.
Reconheço ser uma fantasia nascida da inevitável saudade que muitas vezes me invade a alma mas aquelas flores também denominadas como "bordões de S. José" simbolizam para mim a visita que a avó Amélia vem fazer-me todos os anos. Tão resistente como perfumada e alva, foi ali plantada pelas suas carinhosas mãos e foi ela quem a regou e dela cuidou durante a sua vida. Não é por acaso que sou tão apegado àquele lugar.
Mas...
Este “escrito” deveria ter servido para "dissertar" acerca das limitações e vantagens de vivermos longe da “civilização” mas, sem quase me dar conta, acabei por me deixar envolver na melancolia e silêncio desta tarde. Desculpem!
José Coelho