Julho 1974
Democracia zarolha
Regressei
à Beirã vindo da guerra no dia 8 de Junho de 1974 quase em vésperas dos santos
populares e das fogueiras de rosmaninho que cada família fazia à sua porta para
alegres convívios e sardinhadas à mistura com o uns pezinhos de dança ao som de
gira-discos ou gravadores de cassetes.
Era
tudo o que eu mais necessitava para matar as saudades por tão longa e sofrida
ausência, esquecer os maus bocados vividos e reencontrar a harmonia interior na
abençoada paz da família e aldeia que muitas vezes temera não voltar a ver. A
Beirã desse tempo tinha um grande grupo de jovens e era uma comunidade muito
viva, actuante e participativa.
Aos
serões a malta de ambos os sexos juntava-se em grupos por aí. No Clube, na
Sociedade, no Largo da Fonte, à porta da Loja Grande. Havia quem tivesse uma
viola, havia até quem cantasse muito bem, havia, enfim, um estilo de vida
completamente salutar e diferente do actual em que a amizade, a camaradagem e o
espírito de grupo imperavam, dando origem a uma juventude unida, equilibrada e
muito, muito feliz.
Quase
ninguém tinha ainda televisão em casa. Qualquer programa de maior interesse era
visionado pela população nas salas públicas acima referidas que tinham esse
dispositivo para utilização colectiva de quem o quisesse usufruir, o que, de
algum modo, contribuía também muito para a juventude reunir e conviver quase
diariamente.
Contudo,
os ecos da recente revolução de Abril foram entretanto cá chegando, mais ou
menos ruidosos. E começaram infelizmente as tendências negativas da "partidarite" que por sua vez começou a dividir em claques os simpatizantes de
cada partido. E muitas pessoas amigas começaram a olhar-se de lado
como se de súbito se tivessem tornado inimigas.
Começou
ali a nova era que, em meu modesto entender e como muito tenho escrito, não
trouxe nem pouco mais ou menos o que se perspectivava e se prometeu quer em
termos de futuro, quer em termos de riqueza ou de bem-estar colectivos. Muito e
muito pelo contrário. Por cá, a Beirã, a menina dos olhos do concelho de
Marvão, iniciou por essa altura o seu retrocesso, a sua decadência imparável e
irreversível.
Os
primeiros excomungados imediatamente da comunidade foram os agentes da PIDE/DGS com as suas famílias. Vizinhos e amigos nossos independentemente daquilo que
os ligasse ao anterior regime ou ao que faziam no exercício da sua profissão,
eram habitantes iguais a todos os outros e com as quais convivíamos em paz e
harmonia, de quem não tínhamos qualquer razão ou motivo de queixa.
Depois…
Depois, foi o processo de integração de Portugal na União Europeia. Com a fronteira
livre a alfândega fechou e a circulação ferroviária reduziu de tal modo que mais
de dois terços dos funcionários da CP foram colocados noutras estações longe
daqui. Os escritórios dos despachantes oficiais também deixaram de ser
necessários e a sombra do desemprego começou a pairar sem lugar a dúvidas sobre
as famílias que ali tinham o seu ganha-pão há décadas.
Alguns
que não eram de cá foram simplesmente embora em busca das suas raízes para
tentarem reconstruir as vidas desfeitas. Logo a seguir foi extinta a guarda-fiscal.
Golpe sobre golpe. E a Beirã entrou na lenta e imparável agonia de que nunca
mais recuperou. Quem nos havia de dizer, a todo os que continuamos ainda
teimosamente por cá agarrados aos canchos e rústicas paisagens tão enraizados
dentro de nós como o nosso próprio sangue, que iríamos assistir impotentes ao definhar
da nossa amada Beirã.
Mas
não foram só os funcionários da estação que foram “expulsos” pelo “progresso”
da revolucionária mudança da política nacional. Antes dessa sangria humana que
levou consigo quase toda a vida da aldeia, eu fui também um dos primeiros Beiranenses
pós-revolução a ter que “emigrar” para outras paragens porque a oferta de
trabalho até mesmo na agricultura começou por aqui a escassear. Mas não só.
Outros perversos motivos me “empurraram” de cá para fora. Motivos que muito me
magoaram e desiludiram mas que, ao mesmo tempo, muito me ensinaram acerca da imprevisibilidade
da índole humana, até a de quem julgamos conhecer bem.
Eu
apenas queria constituir a minha família, casar e assentar de vez mas precisava
de um trabalho certo conforme vinha idealizando desde novo. Fora exactamente
esse o motivo que me levara a ir voluntário para a tropa apesar de plenamente
consciente também que seria mobilizado para a guerra, fardo inultrapassável que fazia parte do
destino de todos os jovens do meu tempo. Graças a Deus, coragem, força e
determinação, nunca me faltaram. E nem as lágrimas de aflição da minha mãe me
demoveram.
Mas,
como vinha escrevendo antes deste último parágrafo, tive inesperadamente que “emigrar”
à força e ir trabalhar para as Minas da Panasqueira no coração da Beira Baixa onde
permaneci nos cinco anos seguintes até 1979 quando ingressei nas forças de
segurança. E a principal causa da minha necessidade de partir para tão longe à
procura de trabalho não foi, como já escrevi, apenas a falta de oferta de
emprego por estas bandas. Foi também e sobretudo a tal "partidarite" analfabeta e vesga que se transformou em fanatismo puro e duro para muita gente, pessoas
que até ali considerava excelentes amizades de toda a minha vida mas que não toleravam
o meu livre e democrático direito de optar por “cores” diferentes das suas.
Cedo
me dei conta que Abril de 1974 nos libertou de facto da velha e caduca ditadura
do Estado Novo, mas também que, para muitos recém-democratas das remotas aldeias
como a minha neste Portugal profundo, quem não militasse na sua “cor”
partidária, era um alvo a abater. Democratas tão inteligentes e bem formados
que sem se darem conta estavam a praticar exactamente a odiosa política
totalitária do regime de Salazar do “quem não é por mim, é contra mim”.
Sofri
bastante com tudo isso àquela época, confesso. Nunca desejei mal algum a quem
tentou por diversas formas – algumas bem sujas e cobardes – prejudicar-me. Mas o tempo encarregou-se de colocar todas as coisas no seu devido lugar, enquanto eu fui sobejamente compensado com o privilégio de conhecer as gentes
boas da Beira Baixa, de trabalhar e conviver cinco belíssimos anos ao lado daqueles
íntegros e generosos beirões e beirãs que tudo repartiam comigo. Com eles
aprendi o verdadeiro sentido e valor da solidariedade, da amizade e da generosidade.
Guardo ainda hoje, guardarei enquanto viver, a mais profunda gratidão. Por isso, na beleza e simplicidade do seu falar, endereço a todos eles, um sentido:
-
Bem hajam…
José
Coelho in Histórias
do Cota
(Adaptado)