Esta imagem não faz parte do texto, fui eu que a copiei do Google
A corporação do Parlamento
No
país do SNS, os deputados, até os de esquerda, acham bem, entre vários
privilégios eticamente indefensáveis e práticas que podem ser criminosas,
receberem um seguro de saúde… ilegal desde 2007.
Leio as principais conclusões do relatório do Tribunal de Contas (TdC) referente à atividade do Parlamento português e sinto vergonha, vergonha mesmo, ao saber que os deputados estão sob a suspeita de fraude fiscal por alegados pagamentos indevidos.
Repare-se:
já não estamos a falar apenas daquelas mulheres e homens que representam os
Açores e a Madeira. Essa possibilidade já ficara conhecida com o caso Carlos
César, presidente do PS, um dos que duplicava o subsídio semanal de 500 euros
atribuído em São Bento com o direito ao subsídio social de mobilidade, pago através
dos CTT, e devido a todos os portugueses que residam nas ilhas.
O
que o TdC admite agora é que existe um “risco elevado” de terem sido pagas
viagens fantasmas a todos, devido à dispensa de apresentação de comprovativos.
Para
além do caso das viagens, o relatório obviamente foca o ineficaz controlo das
presenças, no centro das atenções devido, entre outros, a José Silvano,
secretário-geral do PSD, e na possível (eu diria quase certa…) desatualização
de dados relativos às moradas de residência – o que tem depois a ver com o
recebimento de verbas várias, de ajudas de custos.
Estamos
perante um caso que honra a tradição portuguesa da pescadinha de rabo na boca.
As notícias estão aí publicadas, sem bolinha no canto superior direito, e sem
atender a que podem estar a ser consumidas por menores de idade. É só aceder.
Perante
este esgoto a céu aberto, não sei que mais lamentar: se o facto dos deputados
serem suspeitos de poderem ser capazes de, individualmente, se comportarem como
vulgar gente desonesta ou de, coletivamente, terem dado pelo tempo fora a
certeza de, nos seus interesses pessoais, formarem uma grande irmandade unida
por um silêncio capaz de ir da direita à extrema-esquerda. É que não existe
notícia de nenhum destes 230 deputados alguma vez ter pretendido dar conteúdo
ético aos privilégios da função, abdicando de alguns deles ou denunciando
práticas obscenas.
E
há um privilégio que é, obviamente, de estarrecer: o pagamento de um seguro de
saúde, desde 1990, que é ilegal desde 2007, momento em que a lei do orçamento
passou a proibir o financiamento público de sistemas privados de proteção
social e de cuidados de saúde. Torna-se penoso ver como a corporação do
Parlamento tenta defender que este seguro faz sentido num país no qual existe o
Serviço Nacional de Saúde. Mais: que nunca nenhum deputado de esquerda, de
Jerónimo a Catarina Martins, passando por Isabel Moreira e outros faróis de
virtude, alguma vez se tenha incomodado com esta outra duplicação que lhes
deveria ferir as extremadas convicções ideológicas.
Ao
ler estas notícias, não posso deixar de me lembrar da transparência do deputado
federal brasileiro Tiririca (“Vota Tiririca, pior que tá não fica”), um
humorista popular eleito já três vezes por São Paulo e que também disse, logo a
abrir: “Venho para defender os interesses dos mais necessitados, a começar
pelos meus e os da minha família…”. Aos deputados portugueses só falta este
despudor. O resto está lá tudo. E agonia.
João
Marcelino – Jornal Económico, 07 Dezembro 2018