terça-feira, 5 de setembro de 2023

Sempre alguma coisa mais

Foto c/ filtro José Coelho


Rodeado de estantes repletas de livros, indiscutivelmente os mais fiéis e silenciosos companheiros de uma vida inteira porque não só me instruíram como ainda ajudaram a conseguir quase tudo o que conquistei na vida, passo grande parte dos meus dias a sós com eles. Sobre as estantes junto aos livros, as relíquias da profissão que abracei e, entre elas, aquelas outras que herdei da minha mãe das quais não quis ainda separar-me nem me separarei provavelmente enquanto viver.

Fui sempre um pouco dado à solidão em consequência de uma meninice e juventude extremamente precárias onde quase tudo faltava menos o amor familiar. Cada centavo ganho era para ajudar no sustento de todos e não havia margem para mais nada. Nunca tive brinquedos, nunca aprendi sequer a andar de bicicleta porque nunca tive nenhuma. E ninguém jamais me ouviu queixar, assim como nunca tive inveja ou me senti menos gente do que aqueles meus amigos a quem não faltava nada.

Distante já desses tempos, a minha vida é hoje razoavelmente melhor, mas foi bastante dura e difícil de vencer até aqui chegar. Quando terminei a escola primária, imediatamente no dia seguinte fui trabalhar. Tinha onze anos. Nunca fiquei com um centavo sequer do meu modesto ordenado e em vez disso entregava-o feliz à minha mãe na certeza que era uma ajuda, ainda que pequenina, para as suas inúmeras necessidades no governo da casa. E ajudá-la foi sempre a minha grande prioridade. Ela gostou sempre muito de mim, mas eu gostei também, toda a minha vida, muito dela. Era recíproco.

Cedo percebi sem que ninguém tivesse de mo explicar que não podia ir com os outros rapazes da minha idade para as farras e petiscos aos domingos, pois o que iria gastar era necessário para coisas mais importantes do que essas folias domingueiras. Talvez por isso mesmo muito cedo o fascínio pelas letras e pelos livros tomou conta de mim. Primeiro as histórias infantis mal aprendi a ler, depois já rapazote as aventuras de cow-boys como o Billy the Kid que alguns amigos me emprestavam, e por fim, milagre dos milagres, da Biblioteca Itinerante Calouste Gulbenkian que vinha todos os meses à Beirã e emprestava logo três livros de cada vez, à escolha do leitor.

Aí começaram as minhas mais emocionantes aventuras. Vinte mil léguas submarinas, Viagem ao centro da terra, A Ilha misteriosa do Júlio Verne com centenas de páginas, Guerra e Paz de Tolstoi, Os Miseráveis de Vitor Hugo, Retrato de uma Senhora, O Monte dos vendavais, Camilo, Herculano, Camões, Junqueiro, Garret, e mais, mais, mais, muitos mais autores de centos de livros que literalmente "devorava" na ânsia de conhecer e aprender, mas se calhar também para me evadir um pouco do meu mundo real e das suas incontáveis dificuldades.

Namorisquei por aqui e por acoli, ofereci-me voluntário para o serviço militar ainda gaiato o que me levou para a guerra e me tornou ainda mais saudoso do sossego e da paz destas minhas paisagens Beiranenses. A seguir, como se na guerra não tivesse sido suficiente, fui comer pó de pedra a três mil metros de profundidade numa mina nos contrafortes da Serra da Estrela, na Beira Baixa.

Casei e finalmente alistei-me nas fileiras da GNR onde fui injustamente maltratado antes de os conseguir convencer da minha inocência com a força da minha razão. E venci.

Não é porém possível enfrentar tantas dificuldades uma vida inteira sem se ficar marcado para sempre. Se cada sacanice vencida me deixou no coração o sabor agridoce da vitória, deixou também em simultâneo a intragável amargura da injustiça e uma infindável lista de porquês. 

Porquê isto? 
Porquê assim? 
Porquê a mim?

Nunca encontrei as respostas, as razões, ou os motivos. 

E continuo ainda hoje a procurar na solidão e no silêncio aquela paz e a harmonia que a vida não me facilitou nunca. Porque há sempre alguma coisa mais que dói, que magoa e entristece.

José Coelho