segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Setembro, verão quase outono

Foto José Coelho - Casa dos vizinhos da Avó Amélia junto ao Ribeiro da Cavalinha

De súbito o céu da calma e quente tarde de início de Setembro cobriu-se de nuvens cinzento-escuras que sem cerimónia "apagaram" um atrevido sol até então radioso. E ainda mais inesperadamente o suave tamborilar de chuva saudou-me, caindo certa e de mansinho para nos inebriar o olfato com o seu dulcíssimo cheiro a terra molhada. Mmmmm... Que saudades da chuva e deste cheirinho, depois dos últimos meses com tórridas temperaturas mais próprias do meu forno a lenha, muitos dias a ultrapassarem os 40º.

Sei que ainda é verão pelo menos por mais uns dias. E que o tempo já não é o que era por isso vai vir ainda mais calor por outubro adentro, quiçá até depois dos Santos. Mas isso não impede, de modo nenhum, a satisfação que uns pingos de chuva foram capazes de me trazer, mesmo sendo particularmente anunciados na forma de avisos a cores, amarelo, laranja ou vermelho, os quais, na maior parte das vezes, mais alarmam do que acautelam.

A vindima ainda não está feita mas como as elevadas temperaturas queimaram as folhas das parreiras e cozeram as uvas em crescimento e maturação, deixaram-nas de tal jeito que 80% irão diretamente das parreiras para o contentor do lixo. Figos este ano já não tivemos. A figueira pingo de mel que durante seis décadas deu camadas atrás de camadas, cada uma mais doce e suculenta que a anterior, teve de ser abatida por estar a forçar a parede que divide o nosso quintal da Tapada da Rabela, que estava já a rebentar.  

Esta é a melhor época do ano em questão de fartura nas hortas e nos pomares que infelizmente já rareiam e as poucas árvores de fruto que ainda vão resistindo ao tempo e ao abandono irão sucumbir definitivamente nestes tórridos verões cada ano mais agressivos e, consequentemente, à falta de humidade no ar e nos solos.  

Esta foi sempre também a época em que eu faço de conta que não sou diabético e me desculpo a mim próprio conjecturando que o doce da fruta não é tão perigoso como o do açúcar de pacote. Como diz o outro, morra Marta mas morra farta! Por isso, cada vez que passo por qualquer árvore com fruta madura em vez de três, colho seis! Até os sacanas dos figos-chumbos são de comer e chorar por mais.

Viver numa aldeia deste Portugal profundo que só é visitado pela malta do poder de 4 em 4 anos - vocês sabem porquê - tem muitas limitações e inconvenientes, mas tem também - por enquanto - algumas vantagens, como, por exemplo, a de se poder comer ainda assim a fruta diretamente da árvore, sem qualquer perigo de contaminação por químicos. 

Quando muito, haverá a possibilidade de o fruto conter algum "marisco" hospedeiro que também precisa de se alimentar, porque, tal como nós, também tem direito à vida. Além disso, já dizia o meu avô Zé Lourenço, "mal do bicho que vai para a barriga de outro".

Caminho de vez em quando pelos campos ao redor da minha Beirã e sei exatamente onde eram as hortas de antigamente e onde continuam a lutar valentemente pela sua sobrevivência muitas velhinhas árvores de fruto plantadas pela mão de gente boa que conheci e frequentemente recordo com saudade. Uma dessas pessoas foi o meu Pai, exímio hortelão que tudo o que plantava se reproduzia fartamente. 

No Cancho de Ruivo há pereiras e macieiras, parreiras moscatel e figueiras de várias espécies que são mais velhas do que eu. Lá continuam a lutar contra as silvas que as tentam sufocar e a dar frutos, ano após ano. Pelas margens do ribeiro da Cavalinha já não se vislumbra a terra das hortas cobertas de matagal mas em muitos locais ainda se podem ver as videiras a treparem em busca dos raios do sol, pereiras, figueiras, nogueiras e macieiras. 

Junto às casetas da via férrea do velhinho Ramal de Cáceres, como por exemplo na do Maxial que já nem telhado tem, lá continuam as cerejeiras de pé, a dar flor e fruto cada primavera, marmeleiros e pereiras, tudo enleado nas silvas assassinas. 

Mais admirável ainda é a resiliência de algumas flores plantadas pelas mãos das mulheres, esposas e mães d'outrora, porque até essas continuam a vencer o tempo e a florir primavera após primavera, recusando-se a morrer. Assim cercada de roseiras em flor de várias espécies, a esventrada caseta do Maxial transforma-se num tão admirável como bucólico quadro que exibe em simultâneo a casa em ruínas num contraste absolutamente oposto ao da vida e beleza de todas aquelas roseiras floridas a exalarem o seu inigualável perfume, indiferentes ao desleixo a que foram deixadas. 

Mas não é só no Maxial que se desenrola esse milagre da vida. Também no antigo jardim da casa da minha avó Amélia junto à passagem de nível da Cavalinha as açucenas que ela plantou há mais de cinquenta anos continuam a nascer, a crescer e a florir, em cada primavera. Vou sempre visitá-las. Acaricio-as com os olhos e com as mãos como se nelas permanecessem ainda as santas mãos de quem as plantou e eu amava tanto. 

Como é possível uma planta aparentemente tão frágil não morrer sem ser regada sob tantos verões tórridos, no meio do matagal que cerca quase sempre a casa? Já por várias vezes falámos, eu e a minha companheira, em trazermos uns tubérculos para replantar num canteiro do nosso quintal. Mas ainda nunca o fizemos porque no nosso íntimo sabemos que não seria a mesma coisa. Aquelas é que são obra das amadas mãos da tia Amélia da Conceição de Brito. 

Quaisquer outras seriam apenas uma imitação sem sentido e sem o mesmo valor sentimental. É naturalmente uma fantasia nascida da saudade imensa que muitas vezes me atormenta o espírito, mas simbolicamente, aquelas flores são a minha avó que me vem visitar cada ano. 

Mas... 

Este texto tinha a ver com a chuva que começou a cair inesperadamente. Despistei-me ou deixei-me envolver pela melancolia da tarde chuvosa. 

Desculpem!

José Coelho