Estremoz, Dezembro de 1971, já mobilizado para Angola
Maioridade precoce
Passei
a adolescência sem quase dar por isso. Dos 10 aos 16 anos não tive grandes
aventuras. Fui um rapazola como todos os outros, trabalhava, namoriscava e lia
calhamaços de centenas de páginas que me eram emprestados pela biblioteca itinerante
Calouste Gulbenkian. Os Miseráveis de Vitor Hugo, Guerra e Paz de Leão Tolstoi,
O Monte dos Vendavais de Emily Bronte, a Ilha Misteriosa ou as Vinte Mil Léguas
Submarinas de Júlio Verne… E muitos, muitos outros que trazia sempre comigo no
bornal da merenda atrás das ovelhas ou das vacas e passava tardes inteiras a
ler enquanto os animais pastavam, ou então ao serão à luz do candeeiro a
petróleo já depois de andar a trabalhar com o meu pai. Entretanto ia sonhando –
sempre fui um sonhador – com um futuro mais risonho e promissor do que aquele que havia
tido até então, completamente consciente que a tropa era o obstáculo que
tinha que forçosamente transpor primeiro, ou nada feito!
A
guerra colonial era uma ameaça muito séria à vida de todos os mancebos apurados
“nas sortes” desse tempo pois só escapavam da mobilização um número ínfimo dos
soldados que eram incorporados em qualquer dos ramos das forças armadas todos
os anos, desde 1961. No cemitério da nossa aldeia, como no de tantas outras por
esse país fora, repousam alguns desses heróis e entre eles alguns amigos meus
de infância, que lá perderam a vida. Mas não havia outra hipótese de se
conseguir um emprego estável porque a regra de ouro para qualquer concurso de
admissão era ter, obrigatoriamente, o serviço militar resolvido.
Provinciano, aventureiro e ingénuo, não me meteu medo enfrentar o que quer que fosse. Mal
completei 17 anos pedi logo aos meus pais que me deixassem alistar como
voluntário nas forças armadas. Se aquele era um caminho a ser
percorrido, então que o fosse quanto antes! O meu pai não se opôs. Mas
a minha mãe ficou logo lavada em lágrimas argumentando que eu tinha muito
tempo de ir padecer quando chegasse a minha vez. Porém
a minha determinação – teimosia porque sempre fui muito teimoso –
conseguiu ser mais forte e lá convenci o meu pai a ir comigo à Câmara de Marvão
para dar oficialmente o seu consentimento como era de lei e obrigatório em virtude de eu
ser de menor idade, uma vez que a maioridade de qualquer cidadão ou cidadã só
se atingia nessa época, ao completarem-se os 21 anos.
Estávamos em
meados de 1969, tinha 17 anos feitos em
Março.
A
necessidade de “carne para canhão” nas forças armadas era muita porque o
conflito estava no seu auge, em todas as frentes se combatia feio e forte e todas
as armas eram poucas. Entretanto, para agravar ainda mais a falta de novos
contingentes para rendição dos combatentes nas frentes em guerra, muitos jovens
da minha idade fugiam a salto para França e para outros países, desertando das
suas obrigações para com o serviço militar obrigatório e assim evitarem ir parar àquele inferno.
Por
isso ou porque eu tinha que cumprir o meu destino, em três tempos fui convocado
a comparecer na inspeção militar. A 18 de dezembro desse mesmo ano de 1969 compareci
no hoje já extinto Regimento de Infantaria Nº 16 em Évora onde fiquei apurado
sem qualquer problema e onde me foi entregue de seguida a guia de marcha
para me apresentar no Batalhão de Caçadores Nº 8 em Elvas dali a três meses
para frequentar a recruta.
Não
havia mesmo tempo a perder, como se pode deduzir.
Feita
a recruta e após ter sido selecionado para a especialidade de Transmissões,
rumei a Lisboa ao também hoje já extinto Batalhão de Caçadores Nº 5 que se
situava em Campolide por detrás do edifício da Penitenciária onde me
especializei no manuseamento daquelas velhas e absoletas máquinas E/R Racal TR28B2,
AN/GRC9, ANPRC10 e outras que emitiam tantos silvos e ruídos de estática que era
um problema sério conseguir perceber e receber mensagens fonéticas tendo
por isso que se optar quase sempre pelas mensagens cripto. Ainda assim e em consequência da prestação individual que
consegui levar a efeito durante o curso de especialização nas transmissões fui proposto para a promoção a 1º cabo quando terminei.
Enquanto
isso, a segunda metade do ano de 1970 e parte de 1971, passaram. Voltei ao BC8 de Elvas já como especialista
a prestar serviço na central rádio. Por pouco tempo, porquanto com um ano “de tarimba” fui, como era de esperar, mobilizado para
Angola, incorporado no Batalhão de Cavalaria 3871 que se formou no RC3-Estremoz
em Dezembro desse ano e onde fizemos a IAO (acho que queria dizer Instrução
para a Actividade Operacional) na Serra d’Ossa debaixo de chuva, lama, gelo e um
frio de rachar, finda a qual fomos recambiados para o Campo Militar de Santa
Margarida a aguardar o embarque para Luanda. Foi ali que se deu a minha promoção a cabo, proposta meses antes pelo comandante do BC5 e publicada em ordem de serviço daquela Unidade.
Saímos
quase três meses depois do Aeroporto da Portela num Boeing 747 – um luxo nessa
época – numa chuvosa e também bastante fria noite
de 7 de Março, agasalhados naqueles blusões de lã que mais pareciam de estopa
e recordo a figura que fizemos à saída do avião em Luanda, oito horas depois, no
meio de um calor infernal de 40 graus célsius. Que ridículos parecíamos metidos
naqueles abafados blusões que tão bem nos tinham sabido horas antes em Lisboa.
A seguir fomos carregados em camiões Berliet que nos foram despejar
ao Campo Militar do Grafanil nos subúrbios de Luanda onde permanecemos 4 dias.
Assim se deu a casualidade de cumprir o primeiro dos três aniversários que
passei em África. Chegados na manhã do dia 8 de Março, o meu aniversário foi a
10. Lá completei já os 19 com apenas dois dias de comissão em 1972,
depois os 20 em 1973, e depois ainda os 21 em 1974 porque só viríamos de regresso a casa em Junho, uma vez que a Revolução de Abril aconteceu, como um dia destes vos irei contar mais pormenorizadamente, quando já estávamos na Fazenda Tentativa, no Caxito, muito perto de Luanda, a aguardar rendição desde Março desse revolucionário ano.
No primeiro embate com o desconhecido a oito mil quilómetros de casa, porque,
querendo ou não eu ainda era meio gaiato além de nunca ter saído do meio das
pedras, valeu-me bastante o facto de ter tios e primos em Luanda - a irmã mais
nova do meu pai, a tia Francisca Coelho, que lá vivia com o marido e os filhos havia já décadas – tendo-me sido permitido pelos meus superiores ir passar esse dia e essa
noite em casa deles.
E foi
de facto um aniversário memorável. Primeiro porque nunca tinha festejado
nenhum uma vez que os meus pais não tinham dinheiro nem tempo para festas dessas. Segundo, porque o Augusto, o mais novo dos primos, com a sua esposa, a Fernanda Varela, depois
de jantarmos todos em casa dos tios, levaram-me à Casa de Fados "O Campino" no meio da cidade de Luanda, para
assistir à primeiríssima noite de fados da minha vida, e, por isso mesmo, foi para mim uma coisa espetacular. Nessa noite provei ainda também, pela primeira vez, o sabor do uísque, a famosa bebida que só conhecia de dos
filmes ou de a ler em romances.
Foi esse dia especial de aniversário sol de pouca dura porque o dia imediato trouxe com ele o inicio de um tempo que viria a ser o mais complicado da minha vida. Numa “ariete” marítima, (espécie de plataforma achatada
que navega) também chamada LDG, misturados com as nossas malas entre caixotes
de víveres para o comércio de Cabinda, rumámos à foz do Rio Zaire numa viagem
de dois dias e uma noite, a caminho do denso Maiombe onde nos
aguardava a UPA – União dos Povos de Angola, o MPLA – Movimento Para a
Libertação de Angola, e a FLEC – Frente de Libertação do Enclave de Cabinda,
para nos fazerem a vida negra nos 730 dias que se seguiram.
Mas
essa parte vai ficar para outra vez.
Até
lá então…
José
Coelho
in Histórias do Cota