sexta-feira, 2 de setembro de 2016

O cachopo que teve pressa... (conclusão)

Algures na floresta do Maiombe nos idos de 70

Foi assim que enquanto os meus quintos – para quem não entenda o que são "os quintos” passo a explicar que ainda hoje assim são denominados por aqui todos os nascidos no mesmo ano – se divertiam tranquilamente pelas festas e bailes da aldeia com os seus namoricos, já eu comia do pão que o diabo amassava a mais de oito mil quilómetros do torrão natal e da família querida. No meu ingénuo provincianismo jamais poderia algum dia imaginar onde iria parar e a tremenda responsabilidade das funções que me tinham sido atribuídas após a instrução básica militar. Em boa verdade, naquele contexto de guerrilha que nos ameaçava durante as vinte e quatro horas de cada dia, todas as especialidades se complementavam obviamente umas às outras. 

O pelotão de condutores de viaturas representava o importante elo que unia as quatro subunidades do batalhão dispersas pelo imenso Maiombe – Miconje, Sanga-Planície, Caio-Guembo e Belize – para além de todo o apoio logístico exclusivamente a seu cargo. O dos sapadores de minas e armadilhas, provavelmente a mais perigosa de todas, tinha que bater o terreno caminhando sempre apeado à frente de qualquer coluna em movimento afim de detetarem, sinalizarem e desarmarem se possível, qualquer mina antipessoal ou anticarro que o inimigo profusamente “semeava” pelas bermas de picadas e trilhos em toda a zona de acção (ZA) que tínhamos por missão patrulhar. 

Ao pelotão de atiradores cabia a responsabilidade de manterem todos os seus sentidos atentos a qualquer movimento suspeito em redor afim de garantirem a sua própria segurança e a de todos os outros camaradas que compunham qualquer força, estivesse ela acampada ou em progressão no terreno. E debaixo de fogo nas emboscadas ou noutros inesperados encontros com o IN, era a eles que competia, com a ajuda de todos ou outros, contra-atacar de imediato, neutralizar, perseguir e capturar se fosse caso disso, algum fugitivo. 

Por sua vez os enfermeiros e socorristas inevitavelmente sempre presentes também em cada patrulhamento, tinham habitualmente muito que fazer a cuidar dos camaradas mais exaustos, tratar das inúmeras bolhas nos pés causadas por aquelas desconfortáveis botarronas da tropa quase sempre encharcadas ou enlameadas desde a saída do quartel até ao seu regresso, ou desinfectando algum arranhão ou picada do mato mais agressivo. Nas horas mais amargas, eram eles que ministravam imediatamente os primeiros socorros e tentavam estabilizar como fosse possível os camaradas caídos até estes poderem ser evacuados do local o que muitas vezes demorava algumas horas.

No entanto – embora isso pareça quase ridículo hoje que todos trazemos no bolso um telemóvel que facilmente nos liga a qualquer parte do mundo por mais distante que esteja – a especialidade de transmissões era, apesar da também enorme importância de todas as outras, a mais sensível e imprescindível, na guerra onde eu andei. Naqueles fins de mundo longe de toda a civilização rodeados por quilómetros de densa floresta ou de capim na savana e onde a distância até ao povoado mais próximo é muitas vezes de centos de quilómetros, a única ligação à civilização de qualquer força no terreno era aquele pequeno aparelho emissor-recetor TR28B2 que cada militar de transmissões carregava às costas como se fosse uma mochila. E era ele que, em situações de emergência no meio do caos de qualquer ataque inimigo tinha que providenciar no imediato proteger-se a si e ao seu rádio procurando abrigo, enquanto, ao mesmo tempo, tentava escolher um local propício se possível sem obstáculos capazes de "empastelarem" as comunicações com a base. Esses locais tinham que ser quase obrigatoriamente em campo mais ou menos aberto ou pequenas clareiras onde as árvores de grande porte não fizessem tecto pois isso tornaria ininteligível e sem hipótese de sucesso qualquer comunicação radio.   

A importância deste meio de comunicações – o único que havia então por lá no terreno – era tão vital que quando nos deslocávamos em colunas móveis de muitas viaturas, em cada uma delas era colocada uma antena flexível e bem visível ao longe com a finalidade de melhor proteger o operador e o respetivo rádio, confundindo o inimigo, que, daquela forma, nunca conseguiria saber qual das muitas antenas correspondia de facto à do emissor-recetor. Posicionado sempre na viatura do comandante, também este, misturado entre os outros militares sem qualquer distintivo ou divisa que o identificasse, tanto podíamos ir na viatura da frente como numa do meio ou mesmo na da retaguarda. Era ele que dava as ordens e indicações de tudo o que fosse necessário transmitir para a base a fim de informar a posição, a situação em curso, as baixas, as coordenadas e condições do terreno, e, em último recurso, solicitar apoio terrestre ou aéreo quando necessário. E o operador-radio tinha que codificar de memória e de imediato todas as frases a transmitir afim de serem entendidas e descodificadas apenas e só pelo operador de serviço na central-radio da unidade que ao recebê-las imediatamente fazia chegar a mensagem ao comando para ser acionado tudo o que fosse preciso.

Já pouco recordo desses inúmeros códigos. Mas garanto-vos que durante muito tempo me lembrei de todos eles. Porém, o passar dos anos e as muitas outras vicissitudes da vida foram aos poucos diluindo essas memórias na minha cabeça e hoje só recorrendo de novo aos manuais de instrução poderia voltar a lembrar-me de tudo aquilo que há 45 anos aprendi e decorei sem problema. Ainda assim, há um desses códigos impossível de esquecer. É a palavra “azul” que significava “morto em combate”. E dessa ainda me lembro talvez porque ser de todas a mais terrível. Infelizmente para os camaradas que lá ficaram, dezoito vezes teve que ser recitado esse malfadado código. Dos outros códigos para “feridos ligeiros” ou “feridos graves” já me não recordo nada, apesar de também terem sido muitos os camaradas a quem tocou esse indesejado “apelido”. Cento e três tiveram de ser evacuados por terem ficado feridos ou estropiados e nunca mais os vi. Cada posto militar tinha também o seu código. Fosse oficial, sargento, cabo ou soldado, cada um deles tinha o seu. Não era permitido levar auxiliares de memória para as patrulhas não fosse dar-se a fatalidade de sermos capturados pelo inimigo que teria assim um fácil e apetecível acesso a material altamente classificado e confidencial. Tínhamos de armazenar tudo aquilo apenas na nossa memória e nunca o revelar a ninguém, fosse em que circunstância fosse.

Só quem por lá andou e viveu tanto medo e insegurança sabe o que é morar na guerra. Sim, disse bem. Medo e insegurança. Diários. Permanentes. Todos sentíamos quer um quer a outra. E não era só de vez em quando. Era todos os dias. Estivéssemos nós no quartel todos juntos ou no meio da mata isolados em patrulha. Ninguém se negava ao perigo. Ninguém pedia para ficar no quartel ou se fingia doente para não ir. Ninguém se borrava nas calças debaixo de fogo. Muito pelo contrário. Os dedos sempre tensos sobre os gatilhos das armas prontos a retaliar qualquer surpresa, a adrenalina tão à flor da pele que quase doía e que tantas vezes fazia desejar que se desse o primeiro rebentamento. Era nessas horas que a coragem e o espírito combativo enchiam o peito de uma quase raiva que impelia a retaliar até se conseguir afugentar aquele invisível inimigo que cobardemente atacava utilizando o factor surpresa sob a camuflagem e segurança dos morros ou das enormíssimas árvores da floresta. Infelizmente muitas vezes deixaram camaradas nossos tombados no chão atingidos pelas balas ou minas deles. E sim, houve por lá alguns heróis. Anónimos para quem nunca os conheceu mas inesquecíveis para todos quantos tivemos o privilégio de com eles conviver no dia a dia até àquele que para eles foi o último. Camaradas que, na hora da verdade, se expuseram valentemente ao perigo no cumprimento da sua missão e deram a sua vida para defender as dos seus camaradas. Hoje ninguém quer saber disso. Pouco ou nada se fala já desses valentes filhos pátrios que deram o melhor que tinham para dar em nome de Portugal; a sua jovem e valiosa Vida. Não era bem ainda este Portugal democrático e pacificado de hoje é verdade. Mas será sempre e para sempre do mesmo Portugal que desde os primórdios da sua fundação teve e continuará a ter valentes e heróis, seja em que circunstâncias for.

Quase quarenta e cinco anos depois neste mundo completamente diverso do de então, pergunto-me como foi possível ter passado por tudo aquilo e ter voltado para os meus são e salvo. Talvez mais salvo que são, porque nunca mais – e não me perguntem porquê porque também não sei –  consegui voltar a ser aquela pessoa feliz e despreocupada que o tal Boeing 747 levou para Angola nos idos de um já distante março. Mais ainda. Cada ano que passa menos me identifico com a situação deste país a quem dei também de mim o melhor que tinha para dar durante quase toda a minha vida. Não consigo de maneira nenhuma identificar-me com a aflitiva inversão de valores que existe na sociedade atual e que se diz democrática. Corrupção, compadrio, delapidação do erário público, aproveitamento indevido de cargos e de outras coisas, sei eu lá quantas mais falcatruas aberrantes, muitas dos quais, senão a maior parte, congeminadas ao mais alto nível a começar no topo da pirâmide e estendendo-se progressivamente até atingir a base. Impunemente. Bem… Talvez a impunidade não seja total. Mas, se alguém tiver que ser julgado e condenado, podem apostar o que quiserem que só os peões de brega, a raia miúda da base, poderão eventualmente ser julgados, condenados e presos. Os boss’s do topo da pirâmide, os verdadeiros mentores que colhem os maiores proveitos, esses são intocáveis e jamais terão que prestar contas a alguém.

Disse.