Algures na floresta do Maiombe nos idos de 70
Foi assim que enquanto os meus quintos – para quem não entenda o que são "os quintos” passo a
explicar que ainda hoje assim são denominados por aqui todos os
nascidos no mesmo ano – se divertiam tranquilamente pelas festas e bailes da
aldeia com os seus namoricos, já eu comia do pão que o diabo amassava a mais de
oito mil quilómetros do torrão natal e da família querida. No meu ingénuo provincianismo
jamais poderia algum dia imaginar onde iria parar e a tremenda responsabilidade das funções que
me tinham sido atribuídas após a instrução básica militar. Em boa verdade, naquele contexto
de guerrilha que nos ameaçava durante as vinte e quatro horas de cada dia, todas
as especialidades se complementavam obviamente umas às outras.
O pelotão de condutores de viaturas
representava o importante elo que unia as quatro subunidades do batalhão
dispersas pelo imenso Maiombe – Miconje, Sanga-Planície, Caio-Guembo e Belize –
para além de todo o apoio logístico exclusivamente a seu cargo. O dos sapadores
de minas e armadilhas, provavelmente a mais perigosa de todas, tinha que bater
o terreno caminhando sempre apeado à frente de qualquer coluna em movimento afim de detetarem, sinalizarem e desarmarem se possível, qualquer mina antipessoal ou anticarro que
o inimigo profusamente “semeava” pelas bermas de picadas e trilhos em toda a zona
de acção (ZA) que tínhamos por missão patrulhar.
Ao pelotão de atiradores cabia
a responsabilidade de manterem todos os seus sentidos atentos a qualquer
movimento suspeito em redor afim de garantirem a sua própria segurança e a de
todos os outros camaradas que compunham qualquer força, estivesse ela acampada ou em
progressão no terreno. E debaixo de fogo nas emboscadas ou noutros inesperados encontros
com o IN, era a eles que competia, com a ajuda de todos ou outros, contra-atacar de imediato, neutralizar, perseguir
e capturar se fosse caso disso, algum fugitivo.
Por sua vez os enfermeiros e
socorristas inevitavelmente sempre presentes também em cada patrulhamento, tinham
habitualmente muito que fazer a cuidar dos camaradas mais exaustos, tratar das inúmeras bolhas nos pés causadas por
aquelas desconfortáveis botarronas da tropa quase sempre encharcadas ou enlameadas
desde a saída do quartel até ao seu regresso, ou desinfectando algum arranhão ou picada do mato mais agressivo. Nas horas
mais amargas, eram eles que ministravam imediatamente os primeiros socorros e tentavam estabilizar como fosse possível os camaradas caídos até estes poderem ser evacuados do local o que muitas vezes demorava algumas horas.
No entanto – embora isso pareça quase ridículo hoje que
todos trazemos no bolso um telemóvel que facilmente nos liga a
qualquer parte do mundo por mais distante que esteja – a especialidade de
transmissões era, apesar da também enorme importância de todas as outras, a
mais sensível e imprescindível, na guerra onde eu andei. Naqueles fins de mundo
longe de toda a civilização rodeados por quilómetros de densa floresta ou de capim na savana e onde a distância até ao povoado mais próximo é muitas vezes de centos de quilómetros, a única ligação à civilização de qualquer força no terreno era aquele pequeno aparelho emissor-recetor TR28B2
que cada militar de transmissões carregava às costas como se fosse uma mochila.
E era ele que, em situações de emergência no meio do caos de qualquer ataque inimigo
tinha que providenciar no imediato proteger-se a si e ao seu rádio procurando abrigo, enquanto, ao mesmo tempo, tentava escolher um local propício se possível sem obstáculos capazes de "empastelarem" as comunicações com a base. Esses locais tinham que ser quase obrigatoriamente
em campo mais ou menos aberto ou pequenas clareiras onde as árvores de grande porte não fizessem tecto pois isso tornaria ininteligível e sem hipótese de
sucesso qualquer comunicação radio.
A importância deste meio de comunicações – o único que havia então por lá no
terreno – era tão vital que quando nos deslocávamos em colunas móveis de muitas
viaturas, em cada uma delas era colocada uma antena flexível e bem visível ao longe com a finalidade de
melhor proteger o operador e o respetivo rádio, confundindo o inimigo, que, daquela forma, nunca conseguiria saber qual das muitas antenas correspondia
de facto à do emissor-recetor. Posicionado sempre na
viatura do comandante, também este, misturado entre os outros militares sem
qualquer distintivo ou divisa que o identificasse, tanto podíamos ir na
viatura da frente como numa do meio ou mesmo na da retaguarda. Era ele que dava
as ordens e indicações de tudo o que fosse necessário transmitir para a base a
fim de informar a posição, a situação em curso, as baixas, as coordenadas e
condições do terreno, e, em último recurso, solicitar apoio terrestre ou aéreo quando necessário. E o operador-radio tinha que codificar de memória e de imediato
todas as frases a transmitir afim de serem entendidas e descodificadas apenas
e só pelo operador de serviço na central-radio da unidade que ao recebê-las imediatamente
fazia chegar a mensagem ao comando para ser acionado tudo o que
fosse preciso.
Já pouco recordo desses inúmeros códigos. Mas garanto-vos que
durante muito tempo me lembrei de todos eles. Porém, o passar dos anos e as
muitas outras vicissitudes da vida foram aos poucos diluindo essas memórias na
minha cabeça e hoje só recorrendo de novo aos manuais de instrução poderia
voltar a lembrar-me de tudo aquilo que há 45 anos aprendi e decorei sem problema. Ainda assim, há um desses códigos impossível de esquecer. É a
palavra “azul” que significava “morto em combate”. E dessa ainda me
lembro talvez porque ser de todas a mais terrível. Infelizmente para os camaradas
que lá ficaram, dezoito vezes teve que ser recitado esse malfadado código. Dos outros
códigos para “feridos ligeiros” ou “feridos graves” já me não recordo nada, apesar de também
terem sido muitos os camaradas a quem tocou esse indesejado “apelido”. Cento e três
tiveram de ser evacuados por terem ficado feridos ou estropiados e nunca mais
os vi. Cada posto militar tinha também o seu código. Fosse oficial, sargento,
cabo ou soldado, cada um deles tinha o seu. Não era permitido levar auxiliares
de memória para as patrulhas não fosse dar-se a fatalidade de sermos capturados
pelo inimigo que teria assim um fácil e apetecível acesso a material altamente classificado
e confidencial. Tínhamos de armazenar tudo aquilo apenas na nossa memória e
nunca o revelar a ninguém, fosse em que circunstância fosse.
Só quem por lá andou e viveu tanto medo e insegurança sabe o
que é morar na guerra. Sim, disse bem. Medo e insegurança. Diários. Permanentes. Todos sentíamos
quer um quer a outra. E não era só de vez em quando. Era todos os dias.
Estivéssemos nós no quartel todos juntos ou no meio da mata isolados em
patrulha. Ninguém se negava ao perigo. Ninguém pedia para ficar no quartel ou
se fingia doente para não ir. Ninguém se borrava nas calças debaixo de fogo.
Muito pelo contrário. Os dedos sempre tensos sobre os gatilhos das armas prontos a retaliar
qualquer surpresa, a adrenalina tão à flor da pele que quase doía e que tantas vezes
fazia desejar que se desse o primeiro rebentamento. Era nessas horas
que a coragem e o espírito combativo enchiam o peito de uma quase
raiva que impelia a retaliar até se conseguir afugentar aquele invisível inimigo que cobardemente atacava utilizando o factor surpresa sob a camuflagem e segurança dos morros ou das enormíssimas árvores da floresta. Infelizmente muitas vezes deixaram camaradas nossos tombados no chão atingidos pelas balas ou minas deles. E sim,
houve por lá alguns heróis. Anónimos para quem nunca os conheceu mas inesquecíveis para todos quantos tivemos o privilégio de com eles conviver no dia a dia até àquele que para eles foi o último. Camaradas que, na hora da verdade, se
expuseram valentemente ao perigo no cumprimento da sua missão e deram a sua vida para defender as
dos seus camaradas. Hoje ninguém quer saber disso. Pouco ou nada se fala já desses valentes filhos pátrios que deram o melhor que tinham para dar em nome de Portugal; a sua jovem e valiosa Vida. Não era bem ainda este Portugal democrático e pacificado de hoje é verdade.
Mas será sempre e para sempre do mesmo Portugal que desde os primórdios da sua fundação teve e continuará a ter valentes e heróis, seja em que circunstâncias for.
Quase quarenta e cinco anos depois neste mundo completamente
diverso do de então, pergunto-me como foi possível ter passado por
tudo aquilo e ter voltado para os meus são e salvo. Talvez mais salvo que são, porque nunca mais – e não me perguntem porquê porque também não sei – consegui voltar a ser aquela pessoa feliz e
despreocupada que o tal Boeing 747 levou para Angola nos idos de um já distante
março. Mais ainda. Cada ano que passa menos me identifico com a situação
deste país a quem dei também de mim o melhor que tinha para dar durante quase
toda a minha vida. Não consigo de maneira nenhuma identificar-me com a aflitiva
inversão de valores que existe na sociedade atual e que se diz democrática.
Corrupção, compadrio, delapidação do erário público, aproveitamento indevido de
cargos e de outras coisas, sei eu lá quantas mais falcatruas aberrantes, muitas dos
quais, senão a maior parte, congeminadas ao mais alto nível a começar no topo da
pirâmide e estendendo-se progressivamente até atingir a base. Impunemente. Bem…
Talvez a impunidade não seja total. Mas, se alguém tiver que ser julgado e
condenado, podem apostar o que quiserem que só os peões de brega, a raia miúda da base, poderão
eventualmente ser julgados, condenados e presos. Os boss’s do topo da pirâmide, os verdadeiros mentores que colhem os maiores proveitos, esses são intocáveis e jamais terão que prestar contas a alguém.
Disse.