quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Coisas que escrevo...

Eu e o Rex. Foto nos anos 90 da autoria do camarada e excelente amigo 
Sargº Silva Pereira algures nos matagais nas imediações do Monte Velho


O Rex e a mãe-javali


Era lindo o Rex e foi o nosso segundo animal de estimação. Em casa dos meus pais, como já aqui afirmei, sempre houve bicharada. Cães, cabras, gatos, galinhas, patos e até pintassilgos numa gaiola, coisa que sinceramente eu não gostava, porquanto entendo que os pássaros foram por Deus criados para viverem em liberdade como nós.

Muitas vezes, algumas pessoas chegadas e da minha família, apercebendo-se da apetência da passarada para virem fazer os ninhos nas árvores e latadas do meu quintal – na primavera passada, por exemplo, tínhamos um ninho de pintassilgo na roseira-que-trepa, outro no abrunheiro, mais um de verdelhão na latada ao lado da casa e finalmente outro de carriça na trepadeira da varanda – e por isso me pediram várias vezes para lhes “apanhar” um pintassilgo ou um verdelhão, o que sempre recusei costumando perguntar-lhes meio a rir meio a sério:  - Gostavas que te metessem numa gaiola?

Mas hoje quero contar-vos uma divertida história do nosso Rex. Era um cãozarrão enorme, todo preto e com um pelo brilhante como verniz, nascido de um cruzamento do cão labrador pisteiro do destacamento da GNR de Almada com a cadela pastor alemão do então comandante daquela sub-unidade, o capitão Ochôa, posteriormente colocado em Nisa onde eu prestava também serviço.

A Lai, assim se chamava a cadela mãe do Rex, vinha prenha e deu à luz, algum tempo depois, uma bela ninhada de belos cachorros. Eram todos da raça da mãe pastor alemão à excepção do Rex que nasceu assim todo preto como uma amora madura, da raça do pai. Enquanto os outros cachorros espetavam as orelhas, o Rex, como todos os labradores, tinha-as caídas. Por isso ninguém o quis, apesar de para mim ser o mais bonito.

Como a mais ninguém interessou fiquei eu com ele para o oferecer ao Pedro que tinha na altura 9 anitos (e porque o Manel já tinha a gata siamesa Princesa que lhe tinham oferecido no seu aniversário) o qual não só ficou encantado com o novo amigo, como lhe dedicou uma amizade sem paralelo e digna de se ver. De tal modo que, ainda hoje, mais de duas décadas depois de já não estar connosco, o Rex é recordado com frequência como aquele velho e querido amigo que deixou muitas saudades.

Mimado e bem tratado como o são sempre todos os animais na nossa casa, fez-se um gigante, o cachorro. Enorme, dócil e lindo. E valente. Nada lhe metia medo. Corria para o mato todo arrufado assim que sentia qualquer mexida, fosse um saca-rabos, uma raposa, ou mesmo uma corpulenta vaca ou um boi. Ali não havia hesitações! Às vezes arreliava-me bastante com ele porque desatava a correr desatinado atrás da bicharada e tanto fazia chamar por ele como estar calado. Muitas vezes o perdi de vista e tive que depois andar de cancho em cancho já zangado à sua procura, até que lá me aparecia o gajo com um palmo de língua de fora, todo esbaforido da correria!

Mas um dia…

Tínhamos vindo morar definitivamente para a nossa casa na Beirã. Todas as tardes, assim que eu chegava de Portalegre, soltava-o e saíamos os dois a dar grandes passeios por aí, subindo canchos e desbravando matagais até às barreiras do rio Sever, coisa que o cão não só adorava como também necessitava para desentorpecer, dar umas valentes corridas e fazer o exercício indispensável ao seu bem-estar físico.

Foi numa dessas tardes que eu me ri até às lágrimas com o que aconteceu. Caminhávamos os dois pela “carreteira” da tapada dos Carvalhos de Roque quando o Rex pressentiu algo a mexer por entre as giestas.

E nem pensou duas vezes. Atirou-se de cabeça para meio do mato num ladrar furioso capaz de comer o que quer que fosse que tivesse provocado aquela agitação, para o/a poder afugentar e perseguir, como tanto o regalava. Porém, se muito depressa o perdi de vista, mais depressa o vi voltar pelo mesmo caminho, aflito e a ganir apavorado à frente de uma furibunda mãe-javali que, aos sopros e grunhidos, o perseguia sem medo. Atrás dela vinha uma dúzia de bácoros-javalis recentemente paridos, motivo pelo qual, com certeza, a zelosa mãe-marrã não achara piada nenhuma à evidente ameaça que aquele cãozarrão representava para os seus bébés. E sem hesitar um segundo, contra-atacou.

E o Rex, ó abre... Fujam da frente que vem aí gente! Patas para que vos quero!

Nunca tinha visto nada assim.

A marrã-javali quando encarou comigo, tacitamente recuou. Deu meia volta com os bácoros e desapareceu de novo no mato. Mas o Rex, de rabo entre as pernas, o tal matulão atiradiço e destemido, naquela tarde não mais se atreveu a descolar o focinho dos meus calcanhares enquanto durou o resto do passeio. 

E eu continuei a rir a bom rir durante o resto da tarde e rio-me ainda agora, muitos anos depois, cada vez que me lembro da cena.

Bons tempos...

José Coelho in Histórias do Cota