Eu e o Rex. Foto nos anos 90 da autoria do camarada e excelente amigo
Sargº Silva Pereira algures nos matagais nas imediações do Monte Velho
O
Rex e a mãe-javali
Era
lindo o Rex e foi o nosso segundo animal de estimação. Em casa dos meus pais,
como já aqui afirmei, sempre houve bicharada. Cães, cabras, gatos, galinhas, patos e
até pintassilgos numa gaiola, coisa que sinceramente eu não gostava, porquanto
entendo que os pássaros foram por Deus criados para viverem em liberdade como
nós.
Muitas
vezes, algumas pessoas chegadas e da minha família, apercebendo-se da apetência
da passarada para virem fazer os ninhos nas árvores e latadas do meu quintal –
na primavera passada, por exemplo, tínhamos um ninho de pintassilgo na
roseira-que-trepa, outro no abrunheiro, mais um de verdelhão na latada ao lado
da casa e finalmente outro de carriça na trepadeira da varanda – e por isso me
pediram várias vezes para lhes “apanhar” um pintassilgo ou um verdelhão, o que
sempre recusei costumando perguntar-lhes meio a rir meio a sério: - Gostavas que te metessem numa gaiola?
Mas
hoje quero contar-vos uma divertida história do nosso Rex. Era um cãozarrão
enorme, todo preto e com um pelo brilhante como verniz, nascido de um
cruzamento do cão labrador pisteiro do destacamento da GNR de Almada com a
cadela pastor alemão do então comandante daquela sub-unidade, o capitão Ochôa, posteriormente
colocado em Nisa onde eu prestava também serviço.
A
Lai, assim se chamava a cadela mãe do Rex, vinha prenha e deu à luz, algum
tempo depois, uma bela ninhada de belos cachorros. Eram todos da raça da mãe
pastor alemão à excepção do Rex que nasceu assim todo preto como uma amora
madura, da raça do pai. Enquanto os outros cachorros espetavam as orelhas, o
Rex, como todos os labradores, tinha-as caídas. Por isso ninguém o quis, apesar
de para mim ser o mais bonito.
Como a mais ninguém interessou fiquei eu com ele para o oferecer ao Pedro que tinha na
altura 9 anitos (e porque o Manel já tinha a gata siamesa Princesa que lhe tinham
oferecido no seu aniversário) o qual não só ficou encantado com o novo amigo,
como lhe dedicou uma amizade sem paralelo e digna de se ver. De tal modo que, ainda hoje, mais de duas décadas depois de já não estar connosco, o Rex é recordado com frequência como aquele velho e querido amigo que deixou muitas saudades.
Mimado e bem tratado como o são sempre todos os animais na nossa casa, fez-se
um gigante, o cachorro. Enorme, dócil e lindo. E valente. Nada lhe metia medo. Corria
para o mato todo arrufado assim que sentia qualquer mexida, fosse um saca-rabos, uma
raposa, ou mesmo uma corpulenta vaca ou um boi. Ali não havia hesitações! Às
vezes arreliava-me bastante com ele porque desatava a correr desatinado atrás da bicharada e tanto fazia chamar por ele como estar calado. Muitas vezes o perdi
de vista e tive que depois andar de cancho em cancho já zangado à sua
procura, até que lá me aparecia o gajo com um palmo de língua de fora, todo esbaforido da correria!
Mas
um dia…
Tínhamos
vindo morar definitivamente para a nossa casa na Beirã. Todas as tardes, assim
que eu chegava de Portalegre, soltava-o e saíamos os dois a dar grandes
passeios por aí, subindo canchos e desbravando matagais até às barreiras do rio
Sever, coisa que o cão não só adorava como também necessitava para
desentorpecer, dar umas valentes corridas e fazer o exercício
indispensável ao seu bem-estar físico.
Foi
numa dessas tardes que eu me ri até às lágrimas com o que aconteceu. Caminhávamos os dois pela “carreteira” da tapada dos Carvalhos de Roque quando
o Rex pressentiu algo a mexer por entre as giestas.
E
nem pensou duas vezes. Atirou-se de cabeça para meio do mato num ladrar furioso
capaz de comer o que quer que fosse que tivesse provocado aquela agitação, para o/a poder afugentar e perseguir, como tanto o regalava. Porém, se muito depressa o
perdi de vista, mais depressa o vi voltar pelo mesmo caminho, aflito e a ganir apavorado à frente de uma furibunda mãe-javali que, aos
sopros e grunhidos, o perseguia sem medo. Atrás dela vinha uma dúzia de bácoros-javalis
recentemente paridos, motivo pelo qual, com certeza, a zelosa mãe-marrã não achara piada nenhuma
à evidente ameaça que aquele cãozarrão representava para os seus bébés. E sem hesitar um segundo, contra-atacou.
E o Rex, ó abre... Fujam da frente que vem aí gente! Patas para que vos
quero!
Nunca
tinha visto nada assim.
A
marrã-javali quando encarou comigo, tacitamente recuou. Deu meia volta com os
bácoros e desapareceu de novo no mato. Mas o Rex, de rabo entre as pernas, o
tal matulão atiradiço e destemido, naquela tarde não mais se atreveu a descolar o focinho dos meus calcanhares enquanto durou o
resto do passeio.
E eu continuei a rir a bom rir durante o resto da tarde e rio-me ainda agora, muitos anos depois, cada vez que me lembro da cena.
Bons
tempos...
José Coelho in Histórias do Cota