quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Ainda o Rex...

O Pedro, a Mãe, eu e o Rex, num dos nossos passeios
diários de fim de tarde que neste dia foi "em família"

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Coisas que escrevo...

Eu e o Rex. Foto nos anos 90 da autoria do camarada e excelente amigo 
Sargº Silva Pereira algures nos matagais nas imediações do Monte Velho


O Rex e a mãe-javali


Era lindo o Rex e foi o nosso segundo animal de estimação. Em casa dos meus pais, como já aqui afirmei, sempre houve bicharada. Cães, cabras, gatos, galinhas, patos e até pintassilgos numa gaiola, coisa que sinceramente eu não gostava, porquanto entendo que os pássaros foram por Deus criados para viverem em liberdade como nós.

Muitas vezes, algumas pessoas chegadas e da minha família, apercebendo-se da apetência da passarada para virem fazer os ninhos nas árvores e latadas do meu quintal – na primavera passada, por exemplo, tínhamos um ninho de pintassilgo na roseira-que-trepa, outro no abrunheiro, mais um de verdelhão na latada ao lado da casa e finalmente outro de carriça na trepadeira da varanda – e por isso me pediram várias vezes para lhes “apanhar” um pintassilgo ou um verdelhão, o que sempre recusei costumando perguntar-lhes meio a rir meio a sério:  - Gostavas que te metessem numa gaiola?

Mas hoje quero contar-vos uma divertida história do nosso Rex. Era um cãozarrão enorme, todo preto e com um pelo brilhante como verniz, nascido de um cruzamento do cão labrador pisteiro do destacamento da GNR de Almada com a cadela pastor alemão do então comandante daquela sub-unidade, o capitão Ochôa, posteriormente colocado em Nisa onde eu prestava também serviço.

A Lai, assim se chamava a cadela mãe do Rex, vinha prenha e deu à luz, algum tempo depois, uma bela ninhada de belos cachorros. Eram todos da raça da mãe pastor alemão à excepção do Rex que nasceu assim todo preto como uma amora madura, da raça do pai. Enquanto os outros cachorros espetavam as orelhas, o Rex, como todos os labradores, tinha-as caídas. Por isso ninguém o quis, apesar de para mim ser o mais bonito.

Como a mais ninguém interessou fiquei eu com ele para o oferecer ao Pedro que tinha na altura 9 anitos (e porque o Manel já tinha a gata siamesa Princesa que lhe tinham oferecido no seu aniversário) o qual não só ficou encantado com o novo amigo, como lhe dedicou uma amizade sem paralelo e digna de se ver. De tal modo que, ainda hoje, mais de duas décadas depois de já não estar connosco, o Rex é recordado com frequência como aquele velho e querido amigo que deixou muitas saudades.

Mimado e bem tratado como o são sempre todos os animais na nossa casa, fez-se um gigante, o cachorro. Enorme, dócil e lindo. E valente. Nada lhe metia medo. Corria para o mato todo arrufado assim que sentia qualquer mexida, fosse um saca-rabos, uma raposa, ou mesmo uma corpulenta vaca ou um boi. Ali não havia hesitações! Às vezes arreliava-me bastante com ele porque desatava a correr desatinado atrás da bicharada e tanto fazia chamar por ele como estar calado. Muitas vezes o perdi de vista e tive que depois andar de cancho em cancho já zangado à sua procura, até que lá me aparecia o gajo com um palmo de língua de fora, todo esbaforido da correria!

Mas um dia…

Tínhamos vindo morar definitivamente para a nossa casa na Beirã. Todas as tardes, assim que eu chegava de Portalegre, soltava-o e saíamos os dois a dar grandes passeios por aí, subindo canchos e desbravando matagais até às barreiras do rio Sever, coisa que o cão não só adorava como também necessitava para desentorpecer, dar umas valentes corridas e fazer o exercício indispensável ao seu bem-estar físico.

Foi numa dessas tardes que eu me ri até às lágrimas com o que aconteceu. Caminhávamos os dois pela “carreteira” da tapada dos Carvalhos de Roque quando o Rex pressentiu algo a mexer por entre as giestas.

E nem pensou duas vezes. Atirou-se de cabeça para meio do mato num ladrar furioso capaz de comer o que quer que fosse que tivesse provocado aquela agitação, para o/a poder afugentar e perseguir, como tanto o regalava. Porém, se muito depressa o perdi de vista, mais depressa o vi voltar pelo mesmo caminho, aflito e a ganir apavorado à frente de uma furibunda mãe-javali que, aos sopros e grunhidos, o perseguia sem medo. Atrás dela vinha uma dúzia de bácoros-javalis recentemente paridos, motivo pelo qual, com certeza, a zelosa mãe-marrã não achara piada nenhuma à evidente ameaça que aquele cãozarrão representava para os seus bébés. E sem hesitar um segundo, contra-atacou.

E o Rex, ó abre... Fujam da frente que vem aí gente! Patas para que vos quero!

Nunca tinha visto nada assim.

A marrã-javali quando encarou comigo, tacitamente recuou. Deu meia volta com os bácoros e desapareceu de novo no mato. Mas o Rex, de rabo entre as pernas, o tal matulão atiradiço e destemido, naquela tarde não mais se atreveu a descolar o focinho dos meus calcanhares enquanto durou o resto do passeio. 

E eu continuei a rir a bom rir durante o resto da tarde e rio-me ainda agora, muitos anos depois, cada vez que me lembro da cena.

Bons tempos...

José Coelho in Histórias do Cota

Na escala hierarquica não fui oficial nem aprendi no BIMec mas também fui formado para comandar e não para mandar. E cumpri...

Foto by Pedro Coelho

«Na minha companhia, os oficiais distinguiam-se dos soldados por duas razões: nos exercícios, o oficial era o primeiro a fazê-los; nas refeições, o oficial era o último a ser servido.
Este é um ensinamento para a vida. Foi no BIMec que aprendi a diferença entre mandar e comandar. À medida que se sobe na escala hierárquica, aumentam as obrigações e diminuem os direitos.
Conheço muito poucos portugueses cientes desta diferença absolutamente essencial entre mandar e comandar: quem manda dá ordens; quem comanda dá o exemplo. Por isso, abundam por aí os chefes e faltam os líderes.»

Lopo Maria Albuquerque in “O meu testemunho como militar”

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Bem-vindo, outono 2016...

És a minha estação preferida, logo a seguir à estação
de Marvão-Beirã, mesmo estando já desativada.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

21 de Setembro de 2016. Ultimo dia do verão...

Às 14 horas e 21 minutos do dia 22 chega o outono. 
Bem-vindo!

Coisas que leio...

Imagem copiada do Google

Não se morre assim de qualquer maneira

A semana passada deixei de comer chouriços. E presunto. E fiambre. E mortadela! Esta semana deixei de comer queijo. “Afecta a mesma molécula das drogas duras”, dizia um estudo. Eu não quero ter nada a ver com isso, gosto muito de queijo, mas não quero ter nada a ver com drogas, muito menos ser visto como um agarrado ao queijo. Acabou-se com o queijo cá em casa. Também já tinha acabado com o pão, por isso...

O mês passado deixei de beber vinho branco. Um estudo dizia que fazia mal a não sei quê. Se calhar era cancro também. Passei a beber só tinto que dizia um estudo ser ideal para uma série de coisas. Esta semana voltei a beber branco porque entretanto saiu um estudo a dizer que afinal o branco até tem propriedades que fazem bem e muito tinto é que não. Comecei a reduzir no tinto mas, também, acho que compreendem, não quero morrer assim de qualquer maneira.

Cortei nas azeitonas também porque um estudo dizia que têm demasiada gordura, são muito insaturadas, ou lá o que é, mas não parece nada bom.

Andava praticamente a peixe até perceber que os portugueses comem peixe a mais e são, por isso, prejudiciais ao ambiente. Eu sei que não moro no continente mas como sou português, e ainda contam todos para o estudo, sei lá, os que estão e os que não estão, e como eu não quero ser acusado de inimigo do ambiente, ando a cortar no peixe também. Especialmente no atum que está cheio de chumbo e o bacalhau também por causa daquele estudo que saiu sobre a quantidade de sal mas, também, acho que compreendem, não quero morrer assim de qualquer maneira.

Esta semana saiu um estudo a dizer que afinal o vinho em geral faz mal. Fiquei devastado. Há dois meses foram as couves roxas. Vi até um especialista na televisão dizer que não devíamos comer nada cuja cor seja roxa; “é sinal que não é para comer”, dizia. Arroz também quase não como porque engorda, quanto mais esfregado pior, e saiu um estudo a dizer que implica com uma função qualquer mais ou menos delicada. Não é a reprodutora porque acho que essa é com a soja. Dá hormonas femininas aos homens, e consequentes mamas, o raio da soja (!) e prejudica as funções todas. Não, soja nem pensar!

Leite também já há muito que me livrei dele. Foi, salvo erro, desde que saiu um estudo a dizer que o nosso corpo não está preparado para leites. Por isso, leite não. Sumos de frutas também dispenso enquanto não resolverem o problema levantado no estudo que apontava para... não sei muito bem para quê, mas apontava e não era nada excitante mas, também, acho que compreendem, não quero morrer assim de qualquer maneira.

Carne vermelha, claro, também não. Ataca o coração, diz o estudo. Galinha nem sonhar porque umas estão cheias de gripe e as outras encharcadas de antibióticos. Além de que carne de galinha a mais, como dizia outro estudo, impacta com o desenvolvimento dental, o que até parecia óbvio mas ninguém percebia, pois as galinhas não desenvolvem dentes. Cortei a galinha há muito tempo. Porco? Só a brincar. É óbvio que não há cá porco. Não chegassem as salsichas e afins ainda veio este outro estudo, ou ainda não leu? Pois então, diz que o excesso de carne de porco pode provocar uma diminuição de massa cinzenta e o aumento dos ciclos atópicos do mastoideu singular. Ninguém quer passar por isso! Você quer? Eu não mas, também, acho que compreende, não quero morrer assim de qualquer maneira. Esqueça-se a carne de porco, pelo amor da santa!

Ah!... Já me esquecia do glúten! Glúten, também não. É que nem pensar! Durante muitos anos nem sabia que existia, mas desde que me apercebi da existência de semelhante coisa arredei tudo o que tivesse glúten. Deixa-me pouca escolha mas, também, acho que compreendem, não quero morrer assim de qualquer maneira.

Ovos! Claro que também não como ovos. Primeiro porque não sou nenhum ovíparo e depois por causa das quantidades de coisas que aquele estudo que saiu a semana passada dizia. É um rol senhores, um rol de colesterol! Vão ver e admirem-se! Os ovos! Quem diria os ovos... Enfim, é a vida: ovos nem vê-los! Como a manteiga: é só gordura! Desde que acabei com o pão e com o queijo, a manteiga também, por assim dizer, deixou de fazer falta. Ainda a usava para fritar ovos mas agora também não se pode comer ovos... Pois, a manteiga, dizia o estudo, é só gordura animal e animais não devem comer a gordura uns dos outros. Pareceu-me um bom fundamento e acabei com a manteiga.

Ia fazer uma salada. Sem muito azeite, claro, porque, compreendem, não quero morrer assim de qualquer maneira, sem sal, naturalmente e vinagre só do orgânico, porque, compreendem, não quero morrer assim de qualquer maneira...

É quando recebo um email com o título “Novo Estudo Aconselha a Ingestão Moderada de Saladas e Hortaliças”.

Enchi um copo de água, filtrada, naturalmente, de garrafa de vidro e sorvi um golo ávido. Espero que não me faça mal.

Desconheço o Autor

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Bom início de fim de semana...

O meu está a ser uma delícia com as minhas duas princesas lindas, como será fácil perceber por esta imagem captada pela nora Ana, sem que nós nos déssemos conta, através de uma janela que dá para a varanda do quintal.

sábado, 10 de setembro de 2016

Coisas que leio e aplaudo porque com elas me identifico. Na íntegra...

Foto by Pedro Coelho

"Muitas vezes, aqueles que defendem os direitos dos animais são vistos como alguém que ama mais um animal do que o seu semelhante humano. Nada de mais errado.

A verdade é que as sociedades onde os direitos dos animais não estão protegidos são, por norma, sociedades que não respeitam os direitos humanos na sua totalidade. E porquê? Porque é através da forma como tratamos o outro que nos definimos e maltratar um animal é assistir ao rebaixamento do ser humano, à sua desumanização, à ignorância mais pura da sua própria condição. Porque o ser humano é, também ele, um animal. Com características que o distinguem dos outros, mas, no entanto, um animal. E ao não respeitar os restantes animais, não se está a respeitar a si próprio.

Portugal é um bom exemplo disto mesmo. Faltam leis e, mais importante ainda, falta uma cultura de cidadania bem arreigada, por isso, assistimos à constante violação de direitos, por falta de instrução, de cultura, de humanização. Tanto vemos cães e gatos acorrentados nas varandas dos prédios ou nos quintais das aldeias, como vemos lares de idosos em condições deploráveis. Tudo isto faz parte do mesmo problema. Enquanto não percebermos isso, falharemos em solucioná-lo, enquanto sociedade civil. E é a sociedade civil que tem de intervir para que se mudem as consciências. As leis têm de existir, mas o cumprimento delas está no coração de cada um. Os animais não falam, não se podem defender. Por isso, é importante que nós os possamos defender, possamos ter uma voz activa por eles. Sem excessos, nem fundamentalismos. Apenas com muito amor.

Amo muito os animais, como amo muito o ser humano. Defendo-os, como se me defendesse a mim, porque, em última análise, me estou a defender a mim. À minha dignidade. À dignidade da espécie à qual pertenço."

 Ana Bacalhau

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Eis alguns dos "honrosos" "panteões" onde repousam hoje muitos Heróis Portugueses mortos em combate na guerra colonial...







Basta uma simples pesquisa pelo Google para se encontrarem muitas mais imagens desta descomunal indignidade e falta de respeito para com os restos mortais de jovens militares portugueses que com a mesma idade que têm hoje os vossos filhos tombaram feridos de morte numa guerra cruel e sangrenta para onde foram enviados à força pelo poder instituído daquele tempo.

Independentemente do merecimento que cada visado com tal honra possa ter e não o questionando minimamente, sinto contudo uma profunda mágoa, vergonha mesmo, de pertencer a um país que concede honras de Panteão Nacional a poetas, escritores, fadistas, futebolistas e outras personalidades que elevaram o nome de Portugal, mas, simultaneamente, abandona a esta triste desonra e desleixo muitos daqueles que generosamente sacrificaram a sua jovem vida no cumprimento de um sagrado e pátrio dever.

Desculpem lá, camaradas e amigos abandonados. Eu também por lá andei e vi alguns de vocês caídos. Chorei e sofri com e por alguns de vós. E dói-me no mais fundo do coração olhar para estas imagens. A nova geração que nos governa e levianamente vos esqueceu nessas terras africanas longe de todos os que vos amavam e que por vós choram hoje ainda, sabem lá eles, refastelados no conforto dos seus gabinetes e mordomias, o que é levar um tiro, ouvir a explosão de uma granada, de uma mina, o desconforto permanente de sabermos que somos o alvo apetecido de muitas armas escondidas no mato empunhadas por um inimigo invisível mas sempre presente, dia após dia, semana após semana, mês após mês, durante mais de dois loooooooonguíssimos e sofridos anos.

A revolução - também ela já quase esquecida - que restaurou a democracia e libertou do flagelo daquela guerra os nossos filhos e também os povos oprimidos pelo jugo da ditadura colonial, foi uma coisa muito boa, sim. Mas que mal faria se pudesse também simultâneamente ter parido uma sociedade melhor, mais justa, mais fraterna, mais igual para todos? Convido quem ler estas minhas linhas a parar só um minutinho para reflectir comigo. E se uma destas sepulturas fosse a de um filho seu? Ou de um irmão? Ou até, quem sabe, do seu pai?

Sete anos antes...

Foto que encontrei por mero acaso aqui pela net. Um camarada junto do monumento aos mortos em combate da Companhia de Cavalaria 680 erguido no quartel do Belize e que sete anos antes de nós, lá estiveram. A foto confirma que (como todos os que tivemos o azar de lá ir parar em comissão de serviço) os militares desta subunidade comeram também do tal pão que o diabo amassava por aqueles trilhos lamacentos, húmidos, traiçoeiros e mortais da escura floresta do Maiombe.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Bom fim de semana...

Foto by José Coelho

O cachopo que teve pressa... (conclusão)

Algures na floresta do Maiombe nos idos de 70

Foi assim que enquanto os meus quintos – para quem não entenda o que são "os quintos” passo a explicar que ainda hoje assim são denominados por aqui todos os nascidos no mesmo ano – se divertiam tranquilamente pelas festas e bailes da aldeia com os seus namoricos, já eu comia do pão que o diabo amassava a mais de oito mil quilómetros do torrão natal e da família querida. No meu ingénuo provincianismo jamais poderia algum dia imaginar onde iria parar e a tremenda responsabilidade das funções que me tinham sido atribuídas após a instrução básica militar. Em boa verdade, naquele contexto de guerrilha que nos ameaçava durante as vinte e quatro horas de cada dia, todas as especialidades se complementavam obviamente umas às outras. 

O pelotão de condutores de viaturas representava o importante elo que unia as quatro subunidades do batalhão dispersas pelo imenso Maiombe – Miconje, Sanga-Planície, Caio-Guembo e Belize – para além de todo o apoio logístico exclusivamente a seu cargo. O dos sapadores de minas e armadilhas, provavelmente a mais perigosa de todas, tinha que bater o terreno caminhando sempre apeado à frente de qualquer coluna em movimento afim de detetarem, sinalizarem e desarmarem se possível, qualquer mina antipessoal ou anticarro que o inimigo profusamente “semeava” pelas bermas de picadas e trilhos em toda a zona de acção (ZA) que tínhamos por missão patrulhar. 

Ao pelotão de atiradores cabia a responsabilidade de manterem todos os seus sentidos atentos a qualquer movimento suspeito em redor afim de garantirem a sua própria segurança e a de todos os outros camaradas que compunham qualquer força, estivesse ela acampada ou em progressão no terreno. E debaixo de fogo nas emboscadas ou noutros inesperados encontros com o IN, era a eles que competia, com a ajuda de todos ou outros, contra-atacar de imediato, neutralizar, perseguir e capturar se fosse caso disso, algum fugitivo. 

Por sua vez os enfermeiros e socorristas inevitavelmente sempre presentes também em cada patrulhamento, tinham habitualmente muito que fazer a cuidar dos camaradas mais exaustos, tratar das inúmeras bolhas nos pés causadas por aquelas desconfortáveis botarronas da tropa quase sempre encharcadas ou enlameadas desde a saída do quartel até ao seu regresso, ou desinfectando algum arranhão ou picada do mato mais agressivo. Nas horas mais amargas, eram eles que ministravam imediatamente os primeiros socorros e tentavam estabilizar como fosse possível os camaradas caídos até estes poderem ser evacuados do local o que muitas vezes demorava algumas horas.

No entanto – embora isso pareça quase ridículo hoje que todos trazemos no bolso um telemóvel que facilmente nos liga a qualquer parte do mundo por mais distante que esteja – a especialidade de transmissões era, apesar da também enorme importância de todas as outras, a mais sensível e imprescindível, na guerra onde eu andei. Naqueles fins de mundo longe de toda a civilização rodeados por quilómetros de densa floresta ou de capim na savana e onde a distância até ao povoado mais próximo é muitas vezes de centos de quilómetros, a única ligação à civilização de qualquer força no terreno era aquele pequeno aparelho emissor-recetor TR28B2 que cada militar de transmissões carregava às costas como se fosse uma mochila. E era ele que, em situações de emergência no meio do caos de qualquer ataque inimigo tinha que providenciar no imediato proteger-se a si e ao seu rádio procurando abrigo, enquanto, ao mesmo tempo, tentava escolher um local propício se possível sem obstáculos capazes de "empastelarem" as comunicações com a base. Esses locais tinham que ser quase obrigatoriamente em campo mais ou menos aberto ou pequenas clareiras onde as árvores de grande porte não fizessem tecto pois isso tornaria ininteligível e sem hipótese de sucesso qualquer comunicação radio.   

A importância deste meio de comunicações – o único que havia então por lá no terreno – era tão vital que quando nos deslocávamos em colunas móveis de muitas viaturas, em cada uma delas era colocada uma antena flexível e bem visível ao longe com a finalidade de melhor proteger o operador e o respetivo rádio, confundindo o inimigo, que, daquela forma, nunca conseguiria saber qual das muitas antenas correspondia de facto à do emissor-recetor. Posicionado sempre na viatura do comandante, também este, misturado entre os outros militares sem qualquer distintivo ou divisa que o identificasse, tanto podíamos ir na viatura da frente como numa do meio ou mesmo na da retaguarda. Era ele que dava as ordens e indicações de tudo o que fosse necessário transmitir para a base a fim de informar a posição, a situação em curso, as baixas, as coordenadas e condições do terreno, e, em último recurso, solicitar apoio terrestre ou aéreo quando necessário. E o operador-radio tinha que codificar de memória e de imediato todas as frases a transmitir afim de serem entendidas e descodificadas apenas e só pelo operador de serviço na central-radio da unidade que ao recebê-las imediatamente fazia chegar a mensagem ao comando para ser acionado tudo o que fosse preciso.

Já pouco recordo desses inúmeros códigos. Mas garanto-vos que durante muito tempo me lembrei de todos eles. Porém, o passar dos anos e as muitas outras vicissitudes da vida foram aos poucos diluindo essas memórias na minha cabeça e hoje só recorrendo de novo aos manuais de instrução poderia voltar a lembrar-me de tudo aquilo que há 45 anos aprendi e decorei sem problema. Ainda assim, há um desses códigos impossível de esquecer. É a palavra “azul” que significava “morto em combate”. E dessa ainda me lembro talvez porque ser de todas a mais terrível. Infelizmente para os camaradas que lá ficaram, dezoito vezes teve que ser recitado esse malfadado código. Dos outros códigos para “feridos ligeiros” ou “feridos graves” já me não recordo nada, apesar de também terem sido muitos os camaradas a quem tocou esse indesejado “apelido”. Cento e três tiveram de ser evacuados por terem ficado feridos ou estropiados e nunca mais os vi. Cada posto militar tinha também o seu código. Fosse oficial, sargento, cabo ou soldado, cada um deles tinha o seu. Não era permitido levar auxiliares de memória para as patrulhas não fosse dar-se a fatalidade de sermos capturados pelo inimigo que teria assim um fácil e apetecível acesso a material altamente classificado e confidencial. Tínhamos de armazenar tudo aquilo apenas na nossa memória e nunca o revelar a ninguém, fosse em que circunstância fosse.

Só quem por lá andou e viveu tanto medo e insegurança sabe o que é morar na guerra. Sim, disse bem. Medo e insegurança. Diários. Permanentes. Todos sentíamos quer um quer a outra. E não era só de vez em quando. Era todos os dias. Estivéssemos nós no quartel todos juntos ou no meio da mata isolados em patrulha. Ninguém se negava ao perigo. Ninguém pedia para ficar no quartel ou se fingia doente para não ir. Ninguém se borrava nas calças debaixo de fogo. Muito pelo contrário. Os dedos sempre tensos sobre os gatilhos das armas prontos a retaliar qualquer surpresa, a adrenalina tão à flor da pele que quase doía e que tantas vezes fazia desejar que se desse o primeiro rebentamento. Era nessas horas que a coragem e o espírito combativo enchiam o peito de uma quase raiva que impelia a retaliar até se conseguir afugentar aquele invisível inimigo que cobardemente atacava utilizando o factor surpresa sob a camuflagem e segurança dos morros ou das enormíssimas árvores da floresta. Infelizmente muitas vezes deixaram camaradas nossos tombados no chão atingidos pelas balas ou minas deles. E sim, houve por lá alguns heróis. Anónimos para quem nunca os conheceu mas inesquecíveis para todos quantos tivemos o privilégio de com eles conviver no dia a dia até àquele que para eles foi o último. Camaradas que, na hora da verdade, se expuseram valentemente ao perigo no cumprimento da sua missão e deram a sua vida para defender as dos seus camaradas. Hoje ninguém quer saber disso. Pouco ou nada se fala já desses valentes filhos pátrios que deram o melhor que tinham para dar em nome de Portugal; a sua jovem e valiosa Vida. Não era bem ainda este Portugal democrático e pacificado de hoje é verdade. Mas será sempre e para sempre do mesmo Portugal que desde os primórdios da sua fundação teve e continuará a ter valentes e heróis, seja em que circunstâncias for.

Quase quarenta e cinco anos depois neste mundo completamente diverso do de então, pergunto-me como foi possível ter passado por tudo aquilo e ter voltado para os meus são e salvo. Talvez mais salvo que são, porque nunca mais – e não me perguntem porquê porque também não sei –  consegui voltar a ser aquela pessoa feliz e despreocupada que o tal Boeing 747 levou para Angola nos idos de um já distante março. Mais ainda. Cada ano que passa menos me identifico com a situação deste país a quem dei também de mim o melhor que tinha para dar durante quase toda a minha vida. Não consigo de maneira nenhuma identificar-me com a aflitiva inversão de valores que existe na sociedade atual e que se diz democrática. Corrupção, compadrio, delapidação do erário público, aproveitamento indevido de cargos e de outras coisas, sei eu lá quantas mais falcatruas aberrantes, muitas dos quais, senão a maior parte, congeminadas ao mais alto nível a começar no topo da pirâmide e estendendo-se progressivamente até atingir a base. Impunemente. Bem… Talvez a impunidade não seja total. Mas, se alguém tiver que ser julgado e condenado, podem apostar o que quiserem que só os peões de brega, a raia miúda da base, poderão eventualmente ser julgados, condenados e presos. Os boss’s do topo da pirâmide, os verdadeiros mentores que colhem os maiores proveitos, esses são intocáveis e jamais terão que prestar contas a alguém.

Disse.