sábado, 8 de junho de 2024

A primeira de 730 noites


 

No tropical anoitecer do dia 13 de Março de 1972 atracámos ao porto de Cabinda numa barcaça achatada (Ariete) que mais parecia uma ponte flutuante, ensonado e bastante dorido por tantas horas de viagem sentado em cima das bagagens, deficientemente alimentado pela enjoativa ração de combate e suficientemente amedrontado com as notícias pouco tranquilizadoras que nos tinham chegado ao ouvido acerca do inferno que nos esperava naquela terra de ninguém, disputada por diversas fações inimigas que tudo fariam para nos dificultarem uma estadia que não iria ser breve.

A imagem que melhor recordo daquele anoitecer da nossa chegada a Cabinda – em África não há crepúsculo como cá, anoitece ou amanhece quase de repente – é a imagem fantasmagórica das altas chamarelas nos poços de petróleo no meio do mar que salpicavam de lume toda a costa numa extensão a perder de vista, parecendo tochas gigantes refletidas no mar pelo negrume da noite.

À nossa espera estava uma coluna de várias viaturas conduzidas pelos felizardos “velhinhos” que íamos substituir e que não se coibiam de nos atazanar o juízo com a velha lenga-lenga de “maçaricos” ou “piu-piu pintainhos”, bem como de alardearem profusamente o seu já próximo regresso a casa, vociferando como dementes: “Não se enervem maçaricos! Só já vos faltam 730 dias para voltarem para a mamã…” Era da praxe e não havia que levar a mal. Mas o cansaço, o sono, a angústia do desconhecido e o mais que anunciado perigo que nos aguardava, não nos davam ânimo para celebrar com eles aquela euforia nem sequer para esboçar algum sorriso às suas felizes piadas, pelo que a nossa resposta era apenas a indiferença e os semblantes cansados.

Escuro como breu poucos quilómetros percorridos e após se extinguirem de vez as últimas luzes da civilização da vila de Lândana, acolheu-nos o imponente Maiombe em toda a sua imensidão. A coluna de viaturas serpenteava atenta e vagarosamente com milhões de sons noturnos provenientes do denso mato a soarem mais alto que o próprio ronronar dos motores dos unimogs que nos transportavam, intercalados pelas berliets que levavam as nossas bagagens. De longe em longe atravessávamos sanzalas com pequenas casotas redondas de adobe e telhados de colmo, completamente às escuras sem se vislumbrar viv’alma. Para além dos faróis das viaturas tudo o que nos rodeava era uma sinistra e pesada escuridão.

Chegámos por fim ao Belize, mais de 200 km a norte de Cabinda, bem no coração da floresta. Esperavam-nos, mais uma vez loucos de euforia, os “velhinhos” que íamos render e que nos receberam com mangueiradas de água à medida que as viaturas iam entrando naquele enorme recinto de grandes barracões cobertos com chapas de zinco a que pomposamente chamavam casernas, refeitório, posto de rádio, secretaria… Aquilo era, nem mais nem menos, um acampamento rasca sem um mínimo de condições onde centenas de homens já tinham vivido nos anos transatos e onde nós passaríamos a viver nos dois anos seguintes.

Essa noite – a primeira das tais 730 – foi mesmo para esquecer.

Exaustos porque sem dormir há quase 3 dias tivemos de suportar, perante a passividade indiferente dos oficiais e sargentos responsáveis por aquela turba, que eles passassem a noite a apedrejar os telhados de zinco das casernas onde nos tinham enfiado, provocando, como é óbvio, um alarido ensurdecedor. E gritavam, riam, ululavam, como os índios dos filmes de cowbois, tratando-nos como se em vez de sermos os bem-vindos camaradas que iam pôr fim ao seu longo desterro, fôssemos os turras que lhes haviam tirado o sossego durante a sua estadia naquele fim de mundo.

Dir-se-ia que tínhamos aportado a uma colónia de loucos completamente descontrolados a quem ninguém teve o bom senso de mandar cessar aqueles insuportáveis excessos.

Ainda assim o cansaço era tão grande que adormeci vestido e calçado sobre o beliche ao som do estrépido das pedradas a caírem consecutivamente no telhado de zinco da caserna e dos autênticos uivos dos camaradas “velhinhos” cuja justificação era somente a de estarem “cacimbados” pelas agruras da guerra e isolamento quase total naquela imensidão de selva…

(Continua)

José Coelho in Histórias do Cota