Acontece inúmeras vezes e quase
sempre à mesma hora. No crepúsculo. Quando ainda não é noite, mas também já não
há sol. Gosto de despedir-me dos dias deambulando pelo quintal a sentir a
aragem ou o vento no rosto, enquanto vou observando a aproximação da noite que
desce da linha do horizonte onde os tons alaranjados do céu tocam as terras de
Espanha lá ao longe, para se ir chegando a este vale desenhado pelas várzeas do
Ribeiro da Cavalinha.
E ontem não foi exceção.
Fui fechar a garagem, o portão do
forno a lenha, a janela e porta da cozinha-fumeiro e encostei-me à grade que
separa a zona da horta, do patim ladrilhado a retalhos de mármore em toda a sua
volta. Tive de colocar esta sólida grade para evitar as estouvadices da nossa
cadela rafeira alentejana Suri que mal via uma toupeira a bulir na terra de
qualquer canteiro, invadia furiosa as minhas culturas e sementeiras para fazer
uma monumental cova em busca da intrusa.
Foi num destes entardeceres que a
malvada víbora cornuda oculta debaixo dos espinafres de desfolhar que
bordejavam o patim marmoreado, atacou a minha marida e a enviou de urgência
para o Hospital de Santa Maria onde foi ser tratada com o antídoto adequado e
monitorizada até passar o perigo de alastramento da infeção venenosa. É o que
dá viver paredes meias com a natureza selvagem de que tanto gostamos.
Já passou, mas foi um susto
enorme sim senhor.
De súbito no meio do silêncio que
me envolvia ouvi-o muito próximo. Talvez no limoeiro ou na oliveira redondil
que lhe fica ao lado. Trinou uma daquelas suas maravilhosas melodias completas
e poeticamente descritas num dos livros de leitura da minha Escola Primária:
- Nossa Senhora disse, disse,
disse, que enquanto o gavião da videira subisse, não domisse, não dormisse, não
dormisse!
Fico tão enlevado sempre, que não
mujo nem tujo, para não o assustar e espantar. Desde menino que os ouço e
tento imitar, sem o conseguir. Ninguém canta e encanta como eles. Nos salgueiros
e silvados do ribeiro, na fonte da Murta, nos quintais cheios de árvores como o
meu de vez em quando. E olhem que deles já por aqui passaram muitas, muitas gerações,
porque os meus anos já vão sendo também muitos, muitos.
A marida foi, entretanto, sacudir
as migalhas da toalha do nosso jantar – cá em casa nada se perde, tudo se
transforma – sejam as migalhas para os pardais, sejam as cascas das batatas,
cenouras e outros legumes da nossa alimentação na compostagem para adubar a
terra.
Nunca nada é desperdiçado.
Ia precisamente o nosso alado
tenor recomeçar o seu segundo concerto, quando ao ouvir vozes se calou
subitamente. Deve ficar com certeza desiludido por não lhe darem a atenção que
merece. Olhei para a minha companheira e fiz-lhe sinal para não fazer barulho,
mas ele não voltou a cantar mais.
- O que foi? Perguntou ela.
- É o nosso amigo rouxinol que
veio cumprimentar-nos outra vez, respondi.
Mas não mais se fez ouvir. Deve
ter mudado de pouso ou ido embora. Paciência. Talvez também porque, entretanto,
ia já anoitecendo.
- Obrigado pela visita querido
amigo.
- Volte sempre e sinta-se sempre
aqui, como em sua casa…
José Coelho