sábado, 4 de maio de 2024

Meu amigo, o rouxinol

Imagem: Google Fotos

 

Acontece inúmeras vezes e quase sempre à mesma hora. No crepúsculo. Quando ainda não é noite, mas também já não há sol. Gosto de despedir-me dos dias deambulando pelo quintal a sentir a aragem ou o vento no rosto, enquanto vou observando a aproximação da noite que desce da linha do horizonte onde os tons alaranjados do céu tocam as terras de Espanha lá ao longe, para se ir chegando a este vale desenhado pelas várzeas do Ribeiro da Cavalinha.

E ontem não foi exceção.

Fui fechar a garagem, o portão do forno a lenha, a janela e porta da cozinha-fumeiro e encostei-me à grade que separa a zona da horta, do patim ladrilhado a retalhos de mármore em toda a sua volta. Tive de colocar esta sólida grade para evitar as estouvadices da nossa cadela rafeira alentejana Suri que mal via uma toupeira a bulir na terra de qualquer canteiro, invadia furiosa as minhas culturas e sementeiras para fazer uma monumental cova em busca da intrusa.

Foi num destes entardeceres que a malvada víbora cornuda oculta debaixo dos espinafres de desfolhar que bordejavam o patim marmoreado, atacou a minha marida e a enviou de urgência para o Hospital de Santa Maria onde foi ser tratada com o antídoto adequado e monitorizada até passar o perigo de alastramento da infeção venenosa. É o que dá viver paredes meias com a natureza selvagem de que tanto gostamos.

Já passou, mas foi um susto enorme sim senhor.

De súbito no meio do silêncio que me envolvia ouvi-o muito próximo. Talvez no limoeiro ou na oliveira redondil que lhe fica ao lado. Trinou uma daquelas suas maravilhosas melodias completas e poeticamente descritas num dos livros de leitura da minha Escola Primária:

- Nossa Senhora disse, disse, disse, que enquanto o gavião da videira subisse, não domisse, não dormisse, não dormisse!

Fico tão enlevado sempre, que não mujo nem tujo, para não o assustar e espantar. Desde menino que os ouço e tento imitar, sem o conseguir. Ninguém canta e encanta como eles. Nos salgueiros e silvados do ribeiro, na fonte da Murta, nos quintais cheios de árvores como o meu de vez em quando. E olhem que deles já por aqui passaram muitas, muitas gerações, porque os meus anos já vão sendo também muitos, muitos.

A marida foi, entretanto, sacudir as migalhas da toalha do nosso jantar – cá em casa nada se perde, tudo se transforma – sejam as migalhas para os pardais, sejam as cascas das batatas, cenouras e outros legumes da nossa alimentação na compostagem para adubar a terra.

Nunca nada é desperdiçado.

Ia precisamente o nosso alado tenor recomeçar o seu segundo concerto, quando ao ouvir vozes se calou subitamente. Deve ficar com certeza desiludido por não lhe darem a atenção que merece. Olhei para a minha companheira e fiz-lhe sinal para não fazer barulho, mas ele não voltou a cantar mais.

- O que foi? Perguntou ela.

- É o nosso amigo rouxinol que veio cumprimentar-nos outra vez, respondi.

Mas não mais se fez ouvir. Deve ter mudado de pouso ou ido embora. Paciência. Talvez também porque, entretanto, ia já anoitecendo.

- Obrigado pela visita querido amigo.

- Volte sempre e sinta-se sempre aqui, como em sua casa…


José Coelho