Somos cada vez menos.
Nas casas, nas ruas, na missa dominical que até passou para os sábados e nos
poucos eventos que ainda se vão tentando organizar. Há duas excepções à regra.
A tradicional "matança do porco" organizada pela Junta de Freguesia
em março de cada ano que reúne sempre umas centenas de pessoas num dia inteiro
de alegre convívio, e a festa da Padroeira em meados de julho que costuma
congregar igualmente um bom punhado de gente quer na missa do meio-dia, quer à
noite na procissão. Num e no outro evento, alguns Beiranenses regressam para
por em dia a sua arreigada devoção à Senhora do Carmo e matarem saudades deste
recanto que os viu nascer e crescer.
Nem vale a pena lamentar. Não há nada que possa reverter este descalabro, esta sangria desatada de gente que "abalou" para os grandes centros urbanos em busca de melhores condições de vida para si e para os seus. Ao contrário do que diz o velhinho Cante Alentejano... "vou-me embora, vou partir mas tenho esp'rança" melhor será adaptar as nossas expectativas noutra não menos bonita balada que trauteia... "ei-los que partem, velhos e novos, buscar a sorte, noutras paragens, noutras aragens, entre outros povos, ei-los que partem velhos e novos..." porque quem parte não voltará mais, a não ser muito pontualmente.
Quase todos os que "abalaram" eram já mais velhos que novos e a única esp´rança que levavam devia provavelmente ser a de encontrarem o trabalho que aqui lhes foi súbita e inesperadamente negado mercê das decisões políticas que nunca me cansarei de culpar. E levavam certamente também expectativas para o futuro dos seus filhos, já que por estas bandas isso se tornou de todo improvável. Um estranho silêncio foi desde então invadindo as casas por todas as ruas sem excepção, mas, principalmente, na parte mais antiga da aldeia. E não só. É habitual, desde então, percorrê-las a qualquer hora do dia ou da noite sem que nos cruzemos com ninguém para um simples bom dia, boa tarde ou boa noite.
Na missa vespertina dos sábados (que estranha parece a missa dominical em sábado às seis da tarde) chama particularmente a atenção quase sempre o reduzido número de fiéis presentes em cada celebração. No inverno até se percebe. População maioritariamente idosa, às seis da tarde é noite cerrada e muita gente tem receio de andar pelas ruas desertas, a igreja é particularmente fria e a sua volumetria torna inútil qualquer tentativa de aquecimento com aquecedores minúsculos, enfim, diversos são os fatores que originam missas onde são mais os bancos na igreja do que as pessoas neles sentadas. É apenas mais um prenúncio do que se foi e não voltará.
Fico inevitavelmente melancólico. Levo noventa por cento da minha vida, dedicados a esta aldeia, às suas gentes e seus costumes sem nunca ninguém ter dado por isso. Não só estabeleci cá a minha residência permanente como tenho, à minha maneira, lutado com todos os meios ao meu alcance para que não se percam memórias, raízes, usos e costumes, pois considero que todos eles são a mais valiosa herança que os nossos antepassados nos deixaram e é preciso preservar. Nunca me conformei nem vou conformar enquanto viver com este abandono vergonhoso a que somos votados pelo poder central, seja qual for a ideologia de quem governa. O meu partido é a Beirã e Marvão no seu todo, o meu berço, a minha paixão, a minha vida.
Sei e tenho consciência que pareço o D. Quixote de La Mancha a lutar sozinho contra os moinhos de vento, mas não consigo conformar-me. E sei também que fiz tudo o que podia e sabia por esta terra que me está no sangue e no ar que respiro. E há mais quem saiba, mas prefere fingir que não sabe. Porque é mais conveniente lamber as botas de quem lhes arranja tachos e retribui favores. Nunca ganhei um cêntimo só que fosse, pelo que fosse, nunca pedi um favorzinho, um tacho, um qualquer benefício para mim ou para algum dos meus. Pelo contrário, recusei os que me foram oferecidos.
Por uma questão de princípios que me prezo de possuir.
E daquilo que escrevo tenho provas, preto no branco.
Momentos houve em que pessoas que ajudei, a quem dei a minha confiança e o meu respeito me deixaram sozinho. E pelas costas, por falta de coragem de darem a cara, cobardemente me difamaram. Mas eis-me aqui a lutar como sempre, de cara levantada e consciência tranquila. Confesso, contudo, porque um homem não é de ferro, que muitas vezes já, muitas vezes mesmo, dou por mim a sentir que o silêncio e o vazio da igreja, das casas e das ruas da minha aldeia vai começando a instalar-se dentro do meu coração.
Será talvez porque estou a ficar velho?
Ou
será porque os tais moinhos de vento do D. Quixote que me parecem cada vez mais
invencíveis?
Não sei...
José Coelho (Texto e foto)