Cheguei a casa, vindo da guerra, em vésperas dos santos populares e das fogueiras de rosmaninho que cada família fazia à sua porta num alegre convívio de sardinhadas e caldo verde, à mistura com o inevitável pezinho de dança ao som de música de gira-discos ou gravadores de cassetes. Tudo o que eu necessitava para reencontrar o equilíbrio e a paz de espírito. A Beirã desse tempo tinha um grande grupo de jovens da minha idade e não só.
Era uma comunidade muito viva, atuante e participativa.
Aos serões a “malta” de ambos os sexos juntava-se em grupos no Clube ou na Sociedade Recreativa, no Largo da Fonte ou à porta da Loja Grande. Havia quem tivesse viola, havia até quem cantasse muito bem, havia enfim, um estilo de vida salutar onde a amizade, a camaradagem e o espírito de grupo imperavam, fazendo de todos nós uma juventude unida e feliz.
Ninguém ou quase ninguém tinha ainda televisão em casa. Qualquer programa de maior interesse era televisionado nas salas públicas que tinham esse equipamento para utilização coletiva, o que, de algum modo, também contribuía muito para a comunidade reunir e conviver diariamente.
Os ecos da Revolução de Abril iam cá chegando mais ou menos ruidosos e com eles começaram infelizmente as tendências agressivas do partidarismo que subtilmente dividiu em claques a malta simpatizante de cada uma das diferentes opções políticas. E alguns amigos de uma vida inteira começaram a olhar-se como rivais.
Iniciou-se dessa forma a nova era conquistada na recente manhã de abril e que, em meu modesto entender, não trouxe, nem pouco mais ou menos, o que se perspetivava em termos de bem-estar coletivo ou mesmo em termos de futuro.
Muito e muito pelo contrário.
Sem que ninguém o previsse ou pudesse imaginar a Beirã começou a ruir num efeito dominó imparável e demolidor. A menina dos olhos do concelho de Marvão iniciou ali o inexorável e irreversível processo da sua lenta agonia.
Primeiro foram os agentes da Pide que fugiram ou foram presos e as suas famílias tiveram de voltar às origens, deixando para trás as primeiras casas desabitadas. Vizinhos e amigos, independentemente do que os ligava ao anterior regime ou ao que faziam no exercício da sua profissão, eram famílias inteiras que davam vida à aldeia e sustentavam a economia local.
Depois foi o processo de integração de Portugal na União Europeia. A alfândega fechou e a circulação ferroviária reduziu tanto que mais de dois terços dos funcionários da CP foram colocados noutras estações longe daqui.
Os escritórios dos despachantes oficiais também deixaram de ser necessários e a sombra do desemprego começou a pairar sem deixar lugar a dúvidas sobre muitas famílias que ali tinham o seu ganha-pão há décadas.
Foi extinta a Guarda-Fiscal e integrada na Guarda Nacional Republicana com a consequente debandada de mais de uma dezena de famílias.
Quem não era de cá pura e simplesmente foi-se embora num inesperado regresso às suas raízes para ali tentar reconstruir ou começar de novo a sua vida. Para trás ficaram as casas desabitadas, um pouco por todas as ruas da aldeia.
Ainda assim alguns, como eu, fomos ficando e lutando. Mas a machadada final foi-nos dada no dia em que pelos gabinetes do Terreiro do Paço se decretou a desativação do Ramal de Cáceres em agosto de 2012 e trouxe ainda mais solidão e abandono a estes humildes povoados do Portugal profundo longe de tudo, mas, infelizmente, longe também do interesse de quantos passaram a governar-nos no dia 26 de abril de 1974.
José Coelho
Do livro Histórias do Cota