Foi com o meu filho caçula, o Pedro, tinha ele a idade que tem agora a sua filhota, a nossa linda Francisca. Era uma noite de lua cheia. De julho. E de festa na aldeia. Fomos todos ao baile no adro da igreja. Mas às tantas, o joão pestana começou a atormentar o pequenito Pedro. O mano Manel, um homem já com sete anitos, a mãe, a avó e as tias, obviamente não queriam ir para a cama tão cedo.
Era a festa. E só havia uma vez por ano.
- Sem problema, filho. Ao pai também já tá a apetecer ir deitar-se... Vamos embora os dois!
E de mãos dadas lá viemos tagarelando rua acima até casa. A porta da frente ficara fechada à chave, mas a porta da cozinha no quintal ficava sempre só ao trinco já prevendo que alguém precisasse ir a casa fazer alguma coisa. Abrimos a cancela que dava acesso ao quintal, contornámos a casa e...
Upssss!!!
Uma sorrateira visita foi apanhada em flagrante!
Passo a explicar melhor:
Em casa dos meus progenitores sempre houve animais domésticos. Cães, gatos, aves de capoeira, suínos para a matança e até uma cabrita que seguia o meu pai para todo o lado como se fosse um cão. Era por isso comum a nossa convivência com essa bicharada toda. Mas não só. Como o nosso quintal faz divisão com as tapadas cheias de canchos e matos que se estendem por aí fora até ao Rio Sever e Espanha, é normal termos regularmente alguns animais selvagens do outro lado da parede.
Raposas e saca-rabos, tourões ou texugos, javalis e até mesmo uma vez um veado aqui chegou fugido provavelmente da reserva de caça do Tiracalças do outro lado do rio.
Mulher do campo toda a sua vida, a minha mãe amava e protegia tudo quanto fosse "um ser vivente" como ela lhes chamava. E, apercebendo-se certo dia de uma raposita a rondar a parede do quintal cheia de fome, começou por lhe atirar alguns restos de comida. Pouco tardou em começar a deixar-lhe um caneco com o jantarito na varanda do quintal, passando a sortuda raposita a fazer parte dos cuidados diários da minha mãe que nunca ia para a cama sem ali deixar o jantar da sua vizinha.
Naquela noite, a da festa, não sabendo nada do baile nem do soninho do Pedro, a raposa degustava tranquilamente o petisco que a amiga Florinda ali lhe tinha deixado. De súbito e inesperadamente surgimos nós na entrada para a varanda. Eu vi-a logo porque o luar iluminava por completo o quintal. A raposa viu-nos também, mas apesar de ali ir jantar todas as noites não era muito dada a confianças.
E não havendo mais por onde sair senão por onde nós entrávamos, de um pulo atirou-se por entre as nossas pernas provocando-me um arranhão num tornozelo na sua atarantada fuga.
O Pedrito deu um grito sem perceber o que era aquilo, nem o que estava a acontecer.
A raposa saltou lesta para a tapada e desapareceu no mato.
E eu abri a porta de casa e acendi a luz da varanda...
O arranhão na minha perna, feito pelas unhas da nervosa vizinha, sangrava ligeiramente.
Comentei com o pequenito:
- Foi a raposa. Arranhou-me, a magana!
- Viste-a, filho?
Resposta pronta:
- Vi sim, pai. Era branca...
- Branca? Perguntei divertido.
- Branco ficaste tu com o susto, meu tontinho. Vamos mas é para a cama que são horas...
Um dia destes, quando me lembrar, contar-vos-ei mais contos da lua cheia. Até lá sejam felizes, que a vida é curta. Ah! Faltou dizer apenas que, ainda hoje, já meio gasto pelo passar de tantas luas, continuo a gostar muito de me sentar na varanda a olhar para a tapada quando ela está toda banhada pelo luar. Então nas noites geladas do inverno parece que o seu brilho é ainda mais intenso e quase como por magia os cristais da geada refletem-no como se fossem diamantes...
José Coelho
* Histórias do Cota (excerto)
Foto Ana Batista
- Maio 2023