Esta calculadora velhinha, insignificante e toda oxidada já pelos anos de uso, tem uma história que me ocorre contar-vos. Começou na Estação Ferroviária de Santa Apolónia em Lisboa dentro do Comboio Hotel Lusitânia Expresso com destino a Madrid, perto das 23 horas de uma sexta-feira início de um fim de semana em 1984, quando eu frequentava o 6º Curso de Formação de Sargentos no Centro de Instrução da Guarda Nacional Republicana na Calçada da Ajuda. Normalmente eu viajava no então chamado "comboio das oito" que saía de Santa Apolónia às cinco e meia da tarde e chegava a Castelo de Vide, onde então morava, por volta das oito da noite.
Porém, em virtude de um camarada do curso ter sido internado de urgência no Hospital Militar de Doenças Infecto-Contagiosas da Ajuda (HMDIC) com uma hepatite C, vendo-o tão desesperado mais pelo receio de perder o curso por motivo das faltas, do que pela gravidade da doença, decidi ir falar com o Diretor do Curso Capitão Aloísio, perante o qual me comprometi a elaborar um resumo escrito de todas as matéria dadas em cada dia de ausência do doente para ir pessoalmente entregar-lhe em mão, podendo dessa forma ser-lhe dada a possibilidade de "acompanhar" à distância o seguimento do curso e ir estudando as matérias para ser depois submetido às respetivas provas de avaliação quando tivesse alta.
Curiosamente e porque nada acontece por acaso, o meu camarada furriel estava internado no mesmo quarto do hospital em que se encontrava um senhor capitão do Regimento de Cavalaria com o mesmo problema de saúde, e que, para que não houvesse dúvidas, em conversas regulares com o seu camarada capitão Aloísio nosso diretor de curso, elogiava a minha perseverança e pontualidade diária de ali comparecer e ficar o tempo que fosse preciso a explicar ao camarada doente como podia e sabia, tudo o que tinham sido as aulas desse dia.
Percebendo perfeitamente porque é que nenhum outro camarada do curso ia visitar o camarada doente, sabia também que o contágio daquela doença não se processa pela proximidade com os infetados mas sim pelo contacto físico permanente com algum deles sem se estar devidamente protegido. Se assim não fosse, nunca me seria permitido entrar como entrava à vontade no Hospital e aceder ao quarto dos dois doentes que ali permaneciam em tratamento.
Assim sucedeu que, durante mais de um mês, tive de optar por viajar aos fins de semana no Lusitânia que saía de Santa Apolónia às 23 horas e chegava a Castelo de Vide por volta da uma da manhã, porque isso me dava tempo de sobra para entregar os apontamentos, explicar alguma coisa que tivesse de ser explicada, jantar qualquer coisa por ali em qualquer bar da estação e apanhar o Lusitânia sem correrias.
Que tem tudo isto a ver com uma calculadora, perguntar-se-ão vocês. Pois! Quem me lê regularmente sabe que quando conto alguma das minhas histórias de vida, gosto de começar pelo princípio. E viajar num comboio internacional, a sair às tantas da noite e por sinal bem mais caro que os normais, não é vulgar. Por isso quis explicar porquê.
Acabara de me acomodar numa das confortáveis cabines perto da porta de acesso quando me apercebi de um casal de idosos cada um com seu malão de viagem quase maior do que eles, a tentarem subir para a carruagem. Apressei-me a ajudá-los. Primeiro a aceitar cada um dos malões que acomodei na rede sobre os assentos, depois a acomodá-los a eles próprios na poltrona oposta à minha.
Comunicar foi o mais complicado. Porém, entre português e inglês, à mistura com muita mímica, lá nos conseguimos entender. Eram americanos ele tinha-se aposentado recentemente e estavam a dar uma volta pela Europa. Iam para Madrid. Ele fora militar e ela era sua esposa. Viviam na Flórida. Estavam maravilhados com Portugal e com a hospitalidade dos portugueses. E eu era mais uma prova disso, riram divertidos. Como pude, apresentei-me também. Militar como o senhor, a tentar ser "sargeant" (acho que aprendi nos filmes) ia para Castelo de Vide onde tinha casa, mulher e "two childrens" (eheheh as figuras que a gente faz).
Foram três divertidas horas de viagem em que não nos calámos um minuto sequer. A dado momento o revisor veio picar os bilhetes e eu puxei do meu porta-moedas redondo de cabedal daqueles que se rodam para fazer coincidir a boca interior com a exterior para retirar o meu bilhete que ali tinha guardado devidamente dobrado. O americano olhou espantado para o porta-moedas e pediu para o ver na sua mão. Rodou, abriu, fechou, extasiado como se aquilo fosse uma coisa rara! E proferiu vários "nice" "nice"...
Disse-lhe que aquilo era artesanato, se bem me lembro acho que o comprei em Reguengos de Monsaraz. Vendo-o tão fascinado, despejei as moedas e o bilhete do comboio para o bolso e ofereci-lho. "Wow now, now, now... Exclamava. Mas eu fiz questão e ele aceitou encantado. E imediatamente me estendeu um papel e uma caneta e pediu "your address". Percebi que queria o meu endereço. E escrevi-o como ele insistiu.
Entretanto o Lusitânia acercou-se a Castelo de Vide e saí, não sem efusivas manifestações de satisfação do simpático casal de viajantes com inúmeros "tank you". E nunca mais pensei neles porque eram apenas mais dois entre milhares de outros viajantes que comigo partilharam as viagens de comboio durante anos. Até que um dia, meses mais tarde, recebi um aviso dos correios para ir levantar uma encomenda com procedência da Califórnia - USA. E fui. Era esta calculadora Casio, pioneira das calculadoras a energia solar e uma extensa carta que ainda guardo, a qual não sabia ler mas que um camarada licenciado fez o favor de me traduzir.
Agradeciam uma vez mais a minha ajuda, o porta-moedas nice, enviavam a calculadora como presente e convidavam-nos a ir visitá-los na sua Califórnia...