terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Na solidão dos campos vive a paz

Foto Pedro Coelho

Não sei quantas vezes já publiquei esta foto mas sei que foram muitas. É provavelmente a que mais gosto, entre muitas centenas delas que possuo no meu arquivo pessoal e digital. Talvez porque é aquela que mais diz sobre mim. Foi o meu filho Pedro que a bateu sem que eu me desse conta num fim de tarde e num dos habituais passeios que fazíamos pelos ermos desta raia imensa onde só se ouve a passarada, o vento, algum chocalho de gado a pastar e estranhamente onde até chega também o marulhar da correnteza do Rio Sever que passa lá no fundo daqueles barreirões íngremes cobertos de matagal. 

E, como o silêncio é tão puro, o som da água a correr chega cá acima ouvindo-se nitidamente.

Quando o Pedro captou o momento tínhamos acabado de saltar a parede do Monte Velho do tio João Forte e acompanhava-nos a já velhinha Sasha, uma cadela labrador meiga e grande companheira, assim como o então jovem e irreverente Bolinhas que adorava ir conosco para correr às vacas só para as ver a fugirem dele, ou então para andar a farejar o esterco dos javalis (como está a fazer na foto) e outras novidades que, na terra do carrrapau, onde nasceu em berço de ouro, não conhecia. A Sasha já partiu há muito tempo, velhinha e vítima de cancro nas maminhas, para ceder o seu lugar à maluca da Suri que mal apanhava a cancela do quintal aberta por descuido meu aproveitava logo para ir lá dentro fazer uns buracos enormes no canteiro da salsa, derrotando tudo como se fosse uma escavadora a abrir valas.

O Bolinhas também já não é vivo. Velhote, finou-se aos 13 anos que na vida de um canito devem valer 90 da vida dos humanos, acarinhado por mim até ao seu último suspiro no sofá sobre a mantinha dele. Comia e dormia, dormia e comia, já pouco se mexia e já não me atrevia a levá-lo comigo quando ia fazer alguma caminhada. Sem a sua companhia e a da Sasha fiz-me também um bocado mandrião e comecei a caminhar já muito menos, principalmente por aqueles ermos onde não chega ninguém durante meses, anos talvez, não sendo seguro nem recomendável andar por lugares tão longínquos sozinho aos 70 anos a saltar paredes ou a subir e descer calhaus. Um pé mal posto, uma queda imprevista, sei lá... 

Dizia a minha prudente mãe que, "à má hora, não ladram cães", o que queria dizer que as coisas ruins não têm hora para acontecer, por isso mais vale prevenir.

Mas tenho saudades de lá voltar e vou mesmo ter que lá regressar um dia destes para me despedir definitivamente dos ciclópicos amontoados graníticos que se sucedem até à linha do horizonte, dos sobreiros e giestas que tantas vezes me acolheram no seu pacífico seio para ouvirem os meus queixumes sempre que os procurei. Foram estes tranquilos lugares o refúgio seguro dos meus mais íntimos segredos e de lá voltei sempre com o coração em paz, grato pela cumplicidade que me era retribuída pelo sussurro das folhas nos ramos a serem tocadas pela suave brisa dos entardeceres, pelo alegre chilrear da passarada, pelo canto monótono do cuco ou da poupa, pelo afinado gorjeio dos rouxinóis que ainda não desistiram de morar nas orlas frescas do ribeiro da Cavalinha nem da fonte da Murta.

A vida tem princípio e fim. Sei, tenho consciência disso, que o meu tempo, agilidade, força, energia e capacidade, estão a começar a diminuir a cada dia que passa. Não fui tão feliz quanto desejei, mas fui feliz o suficiente para achar que valeu a pena ter nascido. Não tive tudo quanto quis e precisava ter, mas tive o suficiente para olhar hoje para trás e dizer com absoluta tranquilidade: 

- Obrigado Vida, por tudo o que me deste! 

Como toda a gente, fui bom e fui mau. Como toda a gente, ri quando fui feliz e chorei quando fui maltratado. Como (quase) toda a gente, tentei não prejudicar ninguém, não ter inveja do que os outros tinham e que eu não podia ter, ajudando no que esteve ao meu alcance quem me pediu essa ajuda ou quando foi necessário. Em resumo, tive da vida o que dela pude ter e aceitei o que por ela me foi concedido, pese embora nunca tivesse também deixado de sonhar que algum dia alcançaria mais e melhor, conforme de facto alcancei.

Hoje olho para trás e penso:  

- Céus! Estou velho porque já vi e vivi muitas coisas boas, mas outras tantas nem por isso...

Existem ainda assim coisas da minha vida que, mais de 60 anos depois, estão tão vivas no meu coração e na minha memória, como se só tivessem passado 60 minutos. Como é isso possível, se as vezes vou da cozinha à sala buscar qualquer coisa e fico especado como um tolo a olhar para todo o lado, porque me esqueci do que ali ia fazer? Estranhamente porém, há outras memórias absolutamente maravilhosas que nenhum passar de tempo ou distância conseguiram fazer esquecer. 

Quando caminho pelos lugares da minha meninice e juventude, reconstituo mentalmente com uma nitidez assombrosa o meu avô e eu pequenito, sentados os dois naquela pedra da parede dos Três Pontões que ainda lá continua no mesmo sítio, ou aquela outra cena onde me picou um lacrau na Tapada da Lagem Alta, quando eu, com tão só 4 anitos saltitava da pedra para o chão e do chão para a pedra, enquanto um pouco mais abaixo a minha mãe mondava tranquilamente mais a tia Ana Galinhas e a tia Mari'zé Meia.

Um lacrau... 
E eu com só 4 anitos. 
Vai lá vai... 

- Ó mããããeee, picou-me um bicho! 

E a Mãe Florinda, mais preocupada que zangada:

- Ah gaiato dum cabrão que já te picou algum "alacrau"!

E eu aflito com as dores e com aquele estranho formigueiro pela perna acima:

- Nã foi nada um "alacrau" mãe... Foi um bichooooo...

E vá de gritar!

Passo lá tantas vezes!
Olho sempre para a pedra encostada à vereda.
Um dia destes tenho que ir cumprir esse algo triste ritual de me despedir de todos esses lugares para sempre. Antes que seja tarde demais. Se calhar até vou pedir ao meu Pedro que vá comigo. Ele gosta desses passeios e faz sempre centenas de fotos. Lindas fotos. Como essa que ilustra este texto! É um artista com a objetiva na mão.

Só não poderemos é levar os cães. A doce Sasha já não está conosco, o maluquinho Bolinhas também não e a enorme Suri partiu na triste tarde de quinta-feira santa do ano passado. Triste tarde não por ser o dia que era, mas porque um malvado tumor maligno inoperável a estava a fazer sofrer e a impedi-la de viver com um mínimo de qualidade de vida. Por isso a sua grande amiga e veterinária foi chamada a intervir, com enorme desgosto nosso, e seu.

É assim a vida. E assim temos mesmo de a aceitar. Com ganhos mas também com inúmeras perdas. Um dia, ninguém sabe quando, nem onde, nem como, seremos nós a faltar.

José Coelho