Desde 1958 que o Senhor do
Sacrário e a Senhora do Carmo, ambos lá no seu altar, me têm a cirandar por
ali, aos seus pés. Tinha apenas seis anos quando o reverendo padre Caetano - já
falecido - me escolheu para seu acólito na igreja da Beirã. E naquele tempo,
gaiatos éramos aos centos na aldeia. Não sei porque "engraçou"
o ilustre clérigo com a minha insignificante pessoa, tendo em conta a
enorme possibilidade de escolha entre tão diferenciada oferta, muitos dos quais
bastante mais bem vestidos e alimentados do que eu, porque filhos de famílias
abastadas ou de funcionários públicos.
Por esse motivo a promoção a
sacristão da paróquia de um borra botas insignificante como eu foi por mim
considerada quase uma honra. O sacristão que eu ia substituir já começava a ser
moço e queria deixar essas funções para se dedicar ao namorico com as moças da
idade dele era o António Sarzedas "o sapateiro" como a gente lhe
chamava. Foi encarregado pelo pároco de me ensinar as regras e
procedimentos no altar, desde acolitar a eucaristia com o sacerdote ainda de
costas voltadas para os fiéis na nave do templo sempre repleta de gente e
responder em latim às suas locuções "et cum spiritu tuo" quando
ele pronunciava "dominus vobiscum" e muitas outras
lenga-lengas das quais eu não percebia mas aprendi a decorar na ponta da
língua. Importante também foi aprender a tocar os sinos. Toques da missa,
toques dos funerais, toques dos casamentos e batizados, toques das procissões.
Tudo aprendi sem dificuldades de maior. De tal modo que ainda hoje me recordo de muitas partes da missa em latim, do Tantum Ergo Sacramentum na adoração do Santíssimo, assim como devo ser também o último tocador de sinos com carteira profissional nesta paróquia e arredores. Fui sacristão quatro anos seguidos até terminar a escolaridade obrigatória em 1962, ano em que fiz o exame da 4ª classe e o meu pai me arranjou logo no dia seguinte um patrão para ir guardar ovelhas. Assim deixei de poder ir à missa e muito menos acolitá-la, mas sempre que podia lá ia fazer uma visitinha ao Jesus do Sacrário e à Senhora do Carmo porque sempre "senti" que os dois me ajudavam e protegiam bastante.
Essa proteção foi mais visível e evidente quando fui à guerra e regressei a casa sem um arranhão, ao contrário de um grande número de camaradas que comigo foram mas não regressaram sãos nem salvos.
Mas não só.
Todo o meu percurso de vida tem sido espelho da infinita bondade de Deus para comigo com a ajuda de Nossa Senhora do Carmo. Assim o creio e assim o afirmo sem tiques de beatice, apenas e só pela mais inequívoca e determinada convicção. Eu é que sei os apertos por que passei, as aflições e angústias que me atormentaram e a forma como consegui ultrapassar ou vencer cada uma delas. É muito fácil as pessoas opinarem sobre aquilo que não sabem, denegrirem o seu semelhante e darem palpites. Mas quem tem as dores é que as sente. O resto são tretas, muitas vezes mal intencionadas, cobardes e vindas de gente menor. Por tudo isso e por muito mais, tão depressa estabeleci residência definitiva na minha Beirã, imediatamente regressei, com carácter permanente, ao meu desempenho na igreja e paróquia, onde quer que ele é necessário e esteja dentro do meu alcance.
Faço-o por devoção, por infinita gratidão, por amor dedicado, mas, sobretudo, por espírito de missão.
Somos hoje já muito poucos os paroquianos que cruzamos a porta da igreja para
se aproximarem do Santíssimo Sacramento que há mais de 70 anos é o mais ilustre
habitante da aldeia dentro daquele Sacrário. Sei, tenho plena consciência
disso, que não estará muito longe o dia em que o senhor Bispo da Diocese irá
decidir dessacralizar a igreja da Beirã que ficará a ser, a partir daí, apenas
mais uma capela sem Santíssimo, como há já tantas. E vai doer-me, como me dói
de cada vez que mais uma casa fica sem os vizinhos queridos para se transformar
em alojamento local para encher as ruas de turistas que nada têm a ver conosco, Beiranenses.
Para mim, pessoalmente, uma igreja sem o Senhor no Sacrário é uma igreja vazia, mesmo que esteja a abarrotar de gente.
Não sou apenas, como escrevi lá atrás, o único tocador de sinos encartado destes arredores, como sou também já o único salmista que se prepara em casa durante a semana para poder subir à Mesa da Palavra e entoar os Salmos que solenizam cada Eucaristia. Sei que não sei cantar nem o faço para exibir dotes de tenor que não sou, nunca fui nem serei, faço-o unicamente por dever de consciência, por amor a Deus e à minha igreja e para que, enquanto seja possível, a nossa missa semanal continue a ser um momento de íntima reflexão, de paz interior para cada participante, e de aproximação a Cristo, seu fundador.
Até quando? Até que Deus queira.
A Ele cabe decidir.
Tenham uma excelente semana!
José Coelho