Vinte e oito de maio de dois mil
e vinte e dois. Esta data vai ficar para o resto da minha vida – que naturalmente
não será já muito longa – como um dos dias mais emotivos e felizes que vivi,
porque foi aquele em que reencontrei a minha Família de coração que nunca
esqueci, mas com a qual não reunia há quarenta e oito anos.
Família de coração porque lhe
quero bem e dela fiz parte desde novembro de mil novecentos e setenta e um em
Estremoz onde se formou o BCav3871 com destino a Angola, até junho de mil
novecentos e setenta e quatro, no RAL 1 em Lisboa, onde nos despedimos uns dos
outros no ansiado e definitivo regresso a casa após vinte e sete longos meses.
Unidos na permanente saudade das
nossas famílias de sangue e da pacatez das nossas jovens vidas, cercados pela
insegurança diária em cada deslocamento e até mesmo dentro dos quarteis, habitámos
aquele impenetrável Maiombe que cúmplice acoitou sempre nas suas entranhas o letal
e permanente perigo dos guerrilheiros, das traiçoeiras emboscadas, das minas e
armadilhas que profusamente semeavam pelos trilhos para matar alguns camaradas
e estropear outros.
Nenhum de nós, cada vez que isso
aconteceu – aposto tudo quanto quiserem – deixou de equacionar a sombria hipótese
de…
- Para a próxima, posso ser eu.
Viver assim meses e meses na
corda bamba sem saber onde nem quando o infortúnio poderia desabar sobre as nossas
cabeças, sentir necessidade de desabafar com o camarada mais próximo, de falar
dos pais, dos irmãos, da namorada ou esposa, alguns dos filhos até, gerou laços
de amizade, de irmandade e solidariedade, inquebráveis. Por isso, suceda o que
suceder, nem o tempo nem a distância conseguirão apagar essas memórias que
viverão connosco enquanto o coração bater.
Voluntário por opção e sendo um
dos mais novos Cavaleiros do Maiombe, não foi de todo mais fácil para mim do
que para os camaradas mais maduros. Pelo contrário. Mas já passou. Infelizmente
– ou felizmente, não sei bem – o objetivo que me levou a ser voluntário não me
foi propício porque ao regressar a casa só havia abundância de slogans
revolucionários, mas estabilidade e empregos, zero.
Tive por isso mesmo de voltar
à estaca zero, imigrar para longe da família e da minha casa, abraçar uma
profissão nunca antes imaginada – a de mineiro – na qual permaneci cinco também
longos anos, casei, fui pai do primeiro filho o qual só podia visitar duas ou
três vezes por mês dada a enorme distância, até que a família conseguiu
convencer-me a mudar de vida e ingressei nas forças de segurança em mil
novecentos e setenta e nove.
Escusado seria dizer, mas nestes
primeiros cinco anos o único contacto esporádico que mantive com o BCav3871 foi
através de um dos Cavaleiros do Maiombe a quem convidei para padrinho do meu
primeiro filho, o qual aceitou. Depois, nos anos seguintes, já como militar da
GNR entendi não me acomodar e decidi ascender aos postos imediatos possíveis. Cabo
e depois Sargento. Foi duro, muito duro, porque as habilitações literárias eram
as reduzidas ao menor denominador comum.
A quarta classe.
Tive em consequência disso de
“marrar” feio e forte durante três anos e meio no Centro de Instrução da GNR da
Ajuda, depois na Escola da Guarda em Queluz e posteriormente na Escola Prática
de Infantaria em Mafra, nos volumosos calhamaços até altas horas da madrugada
todos os dias, para conseguir decorar matérias infindáveis e complexas que
tinha de debitar nos testes semanais.
Nunca equacionei a hipótese de
chumbar por falta de aproveitamento apesar de o leque de matérias ser muitas
vezes desanimador e consegui lá chegar, sem favores de ninguém. E cheguei onde
queria, mas não me ficava tempo para mais nada. Lembro-me de, aos fins de
semana, em casa, ter de levantar-me às seis da manhã para ir estudar matérias
para a sala em silêncio, antes de os filhos – já então dois – acordarem.
Depois…
A responsabilidade de comandar o
Posto misto de Infantaria/Cavalaria de Nisa, seguida da nomeação para chefiar a
secretaria da CCS e simultaneamente ministrar instrução aos candidatos a Guardas
no Centro de Instrução de Portalegre, onde permaneci os últimos dez anos de
carreira e terminei o meu percurso, passando à situação de reforma.
Entretanto as décadas foram-se somando
e passando. Perdi, na voragem dos dias, o contacto com o compadre Cavaleiro, mas tive o grato privilégio de comandar em Nisa outro digníssimo Cavaleiro do
Maiombe que todos devem recordar porque foi o Condutor da ambulância da CCS e também militar de Cavalaria da GNR Joaquim Augusto Moreno Lopes, que
infelizmente acompanhei à sua última morada já há alguns anos, mas de cujo
filho João Gregório Faustino Lopes continuo amigo e em contacto.
O que se resume em meia dúzia de
parágrafos contém quarenta e oito anos de ausência desta Família BCav3871 que
nunca deixei de estimar. Cada camarada Cavaleiro teve obviamente o seu percurso
de vida como eu, com mais ou menos dificuldades, mas que sempre terão
comparecido à “chamada” anual de reunir. Não me sinto nem mais, nem menos que
nenhum deles, porque estive de facto fisicamente ausente, mas nunca os esqueci.
Nem poderia, mesmo que quisesse, porque ano após ano recebi sempre a
Carta-convocatória para o Almoço-convívio, além de várias tentativas pessoais
do digno camarada e amigo Adelino Magalhães Torres a quem sou grato.
Termino como comecei.
Vinte e oito de maio de dois mil
e vinte e dois. Esta data ficará para o que restar da minha vida como um dos
dias mais emotivos e felizes que vivi, porque em Peniche me senti de regresso a
casa e à minha gente depois de uma longa ausência, exatamente o que em junho de
setenta e quatro senti quando, a vir da guerra, cheguei à Beirã. Uma fraterna saudação
para todos os Cavaleiros do Maiombe e suas Famílias que estiveram na 48ª
Confraternização do BCav3871 em Peniche, outra ainda para todos os que não
puderam ou não quiseram comparecer. Talvez a 27 de maio de 2023 possamos
reencontrar-nos aqui pelo Alto Alentejo.
Bem hajam todos.
José Coelho