Vitral da Basílica de S. Pedro - Roma
Retomamos no próximo sábado dia 30 de Maio as semanais celebrações eucarísticas ou outras também regulares na Igreja Paroquial de Nossa Senhora do Carmo da Beirã, interrompidas abruptamente quase ao início da quaresma deste ano da (des)graça de 2020. Pensava eu que já tinha visto tudo e que pouco mais haveria para me surpreender neste complexo mundo, numa vida a entrar pelo "outono" adentro e a aproximar-se a passos largos de somar sete dezenas de primaveras.
Pensava, mas estava tão enganado! O inimaginável surgiu subitamente e a vida de todos nós, de todas as pessoas de todos os continentes, foi subitamente ameaçada por um inimigo invisível, letal e altamente contagioso que ninguém conseguiu ainda conter, pelo menos desde que da pior maneira se deu a conhecer até ao momento em que estou a escrever estas letras. A ciência global luta tenazmente com todas as suas capacidades, avança e recua, mas a solução ainda não foi definitivamente encontrada. Nem sabemos se será.
O mundo inteiro foi obrigado a parar por completo e a confinar-se em casa para tentar proteger-se enquanto uma sucessão imparável de contagiados entupiam os sistemas de saúde de cada país e as baixas somavam muitos milhares por dia, sobretudo os mais vulneráveis, velhos, doentes crónicos debilitados por outras patologias, mas não só, porque também os mais jovens têm sido vítimas, ainda que felizmente em menor número. Vi imagens que dificilmente irei esquecer no resto da minha vida. Mortos amontoados em câmaras frigoríficas à espera de vez para serem sepultados ou cremados, pilhas de caixões a entupir morgues, funerais sem acompanhantes, colunas militares a transportar mortos para sepultar noutros cemitérios em virtude de os locais terem colapsado na sua capacidade de resposta.
As notícias do dia a dia eram pura e simplesmente aterradoras. Não sei se algum dia saberemos a verdadeira dimensão desta tragédia mas o pouco que já sabemos é suficientemente mau para ficarmos inquietos e perplexos. Nunca imaginei nada assim, ninguém poderia imaginar, julgo eu. Mas uma coisa ficou bem patente para a humanidade inteira. Somos pó. Somos nada. Somos muito mais frágeis e impotentes do que alguma vez imaginámos e não há imunidade que nos possa valer em situações desta natureza.
E outras pandemias virão, diz-se.
Ninguém está a salvo ou escapa à força da natureza quando ela se manifesta. Não há ricos e pobres, há apenas seres humanos reduzidos à sua vulnerabilidade e dimensão. Ainda não acabou o perigo, ainda não estamos livres desta ameaça e o futuro é uma enorme incógnita, mas sirva esta pandemia e tudo o que dela já conhecemos para ao menos nos fazer reflectir e sermos capazes de mudar algumas coisas. Um pouco mais de humildade para quem se julga superior aos outros, um pouco mais de fraternidade para quem julga não precisar de nada nem de ninguém.
Sinceramente nunca senti medo de morrer desta. Aprendi à minha custa e a duras penas a superar essa fraqueza lá longe, com vinte tenros anos, quando a vida me colocou no meio de uma guerra em África. Algum receio que eventualmente possa perturbar o meu subconsciente não é por mim mas pelos filhos, pelas netas, pela família, sobretudo pelos mais novos. Eu já vivi bastante, já penei muito e também já fui imensamente feliz. Por tudo isso não tenho medo. Mas quero, naturalmente, que a vida seja propícia e venturosa para os que amo.
Começou esta tragédia humanitária global em plena quaresma. Um tempo de reflexão por excelência para toda a comunidade cristã na qual me incluo. Quaresma estranha, atípica, onde seguramente muita gente questionou:
- Porquê, meu Deus?
Ou...
- Onde está Deus?
Arrepiante foi ver o nosso Papa aparentemente tão frágil e tão tristemente só na imensa praça de Roma que congrega há dois mil anos milhões de fiéis para ali reviverem a paixão e morte de Cristo ano após ano. Da solitária homilia do Sumo Pontífice retive uma carismática frase: "Acreditámos que podíamos continuar a viver saudáveis num mundo doente..."
E quase a seguir, um treze de Maio com o recinto de Fátima sem peregrinos! Que perplexidade! Dessa atípica celebração retive também da homilia do Cardeal D. António Marto, duas partes: "O Santuário de Fátima que costuma ser um mar de luz, transformou-se num deserto escuro." E... "Fica connosco Senhor que se faz noite." Dificilmente esqueceremos tudo isto mas já sinais de esperança começam a aflorar ainda que não haja remédio reconhecido para combater eficazmente a ameaça. Lentamente, rodeada de mil cautelas, a vida das pessoas começa a desconfinar. O resultado logo se verá, não podemos permitir que o medo nos paralise indefinidamente .
Por cá pelo profundo e esquecido Alentejo também começámos a deixar de espreitar por detrás do postigo e já nos atrevemos a assomar o nariz à porta, mascarados e com luvas, não vá o "bicho" estar por aí pousado nalguma flor dos canteiros. E retomamos sábado - já não pode ser aos domingos porque não há sacerdotes - a única celebração comunitária semanal a que ainda temos direito, a missa vespertina do domingo seguinte, às seis da tarde. Curiosamente - ou talvez não - celebra-se nesse dia a Solenidade do Pentecostes, a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos e Maria Santíssima reunidos no Cenáculo.
À luz dos factos é apenas uma coincidência, à luz da minha fé é um sinal de esperança. O Espírito Santo nunca fez mal a ninguém nem sequer àqueles que não crêem n'Ele. É bom voltar à igreja nesse dia e para essa celebração. Como faço há décadas vou entoar no ambão mesmo com a máscara e como melhor for capaz a sequência do Pentecostes "Vinde ó Santo Espírito, vinde amor ardente, acendei na terra, vossa luz fulgente" e depois o salmo responsorial "Mandai Senhor o Vosso Espírito e renovai a terra". Vou ainda preparar os cânticos do coro apropriados para esta solenidade "O Espírito do Senhor, encheu todo o universo... " entre outros.
Vai ser um regresso ansiado por todos nós e vai ser também um regresso com regras para cumprir impostas pela Direcção Geral de Saúde e também pela Conferência Episcopal Portuguesa para protecção de todos. Temos que começar a atrever-nos a sair de casa, a reunir nos locais públicos, a orar juntos, em suma, a continuar a viver, atentas as necessárias e imprescindíveis cautelas...
José Coelho
28.05.2020