No tempo da Covid já se tinha revelado o melhor e o
pior da sociedade que somos. Enquanto alguns atemorizados e cautelosos até ao
exagero nem assomavam o nariz à porta – na minha rua e vizinhança sucedia isso –
outros menos temeratos e mais oportunistas viram na pandemia uma excelente oportunidade
para dela tirarem proveitos.
São as duas “variedades” mais comuns de pessoas.
Os supersticiosos e os xicos-espertos.
Ter
cuidado e seguir as orientações das autoridades que têm a missão de nos proteger e de velar pelo nosso comum bem-estar, difundidas pelos OCS é uma coisa, viver apavorado e calafetar até o buraco
da fechadura para que nada por ali entre, é outra. No meio
termo sempre esteve a virtude. Não é por nos escondermos debaixo da cama até que
a crise passe que ela se resolverá mais cedo.
Há que enfrentar os medos sem
deles ficarmos reféns, porque a vida tem mesmo de continuar.
Preocupada
mas obediente, quase dois meses de confinamento passou a população do mundo
inteiro, conforme o indicado pelos respectivos governos, à exceção daqueles –
felizmente poucos – que tinham presidentes iluminados que achavam a Covid 19 uma
mera e inofensiva gripezinha. Nós, eu e a “minha Maria” únicos habitantes desta moradia
no topo da Fernando Namora da Beirã, cumprimos o isolamento social sem vestígios de pavor ou hipocondria. Saíamos três ou quatro vezes para fazermos
compras imprescindíveis de géneros alimentares ou dos medicamentos que tomamos
diariamente e por isso era necessário não deixar esgotar, cumprindo escrupulosamente
as medidas recomendadas.
Nesses tempos e quotidianos jamais experimentados soubemos que não é infelizmente previsível
qualquer regresso a curto prazo às nossas mais banais rotinas. O imprevisível foi a mais sensata expectativa para cada dia. A qualquer momento tudo se podia precipitar, tudo poderia mudar de forma radical e imprevisível.
Fez-me lembrar os meus tempos na guerra, quando
todos os dias ao levantarmos da cama pela manhã não sabíamos se nela
voltaríamos a deitar-nos à noite. Nunca, por isso mesmo, foi tão assertiva a frase que prudentemente aconselha a vivermos o
melhor possível, um dia de cada vez.
Entretanto
como de costume e para não variar, à pala da pandemia os preços foram logo a
seguir inflacionando de modo generalizado em todos os produtos que adquiríamos, fossem eles os géneros alimentares em geral, ou todos os outros nas superfícies
comerciais autorizadas a funcionar, fossem mesmo os medicamentos nas farmácias.
Os frascos de álcool etílico a 96 º com
250ml que normalmente eram vendidos a oitenta e seis cêntimos até em pequenos
comércios locais foram em menos de uma semana subtilmente açambarcados por
diversos membros de outras superfícies que indo à vez e como quem não
quer a coisa, cada um comprava dez frascos para em poucas horas juntarem várias
dezenas que revenderam no dia seguinte a cinco euros a unidade.
E mesmo 475%
mais caros, esgotavam em em um ou dois dias.
Aos
primeiros anúncios da Covid19 as pessoas tiveram medo de morrer de fome ou por falta de papel higiénico e esvaziaram literalmente as prateleiras das superfícies
comerciais. A seguir veio o pavor de morrer por falta de álcool
ou daquele-gel-desinfetante-que-mata-o-virus. Para uns, a ânsia de açambarcar tudo o que fossem
capazes. Para os outros, a irresistível tentação de se aproveitarem desta terrível
calamidade mais dos medos irracionais e inseguranças que a mesma semeou. Para esse tipo de gente, o caos é a
oportunidade ideal para encherem os bolsos.
E por isso, quanto pior, melhor.
Ainda essas amargas memórias não se evaporaram no horizonte e eis que um tão inusitado como impensável colapso da rede elétrica, provocou um apagão total em toda a Península Ibérica e alguns países europeus periféricos. Qual foi a primeira preocupação de uma enorme percentagem do nosso Zé Povinho? Invadir imediatamente lojas e centros comerciais na ânsia de açambarcar o que consideravam imprescindível à sua sobrevivência e despejarem as prateleiras de tudo o que lá houvesse sem importar o quê.
E de novo voltou a revelar-se o lado pior do povo que somos.
Para além das duas “variedades” de pessoas que referi no início deste texto existem outras parecidas àquelas aves de rapina enormes e muito feias – disso não têm culpa coitadas – que se alimentam
de cadáveres. Mas não o fazem por ganância. É apenas a sua forma
de alimentação.
Chamam-se abutres…
José
Coelho
07.05.2020