Rebanho a pastar nas margens do Ribeiro da Cavalinha
Foto de José Coelho
Faz hoje oito dias tive a certeza que não sou o único com saudades da velha Beirã. E apercebi-me disso da forma mais simples. Foi Domingo do Bom Pastor e como sempre, desde que me conheço, a comunidade católica, agora já tão escassa por cá, acudiu em peso à igreja para homenagear o seu pároco e bom pastor.
Não foi por acaso que escrevi Domingo do Bom Pastor com iniciais maiúsculas e depois "pároco e bom pastor" com iniciais minúsculas. O primeiro refere-se a Jesus Cristo o Bom Pastor, segundo o Evangelho de S. João. O segundo, com toda o respeito e estima que ele merece, refere-se ao nosso reverendo pároco e pastor terreno.
Também não foi por acaso que, na Eucaristia que celebra Cristo, o Bom Pastor, estavam Beiranenses que já não vivem na Beirã e por isso nem sempre vemos na igreja. Mas nesse dia vieram. E associaram-se a nós, os que ainda cá moramos, numa muito simples e muito sentida homenagem a quem tanto mas tanto a merece, não só nesse dia, mas todos os dias do ano.
E foi bonito. Muito bonito, mesmo. Gestos espontâneos de gente boa que sabe ser grata e respeita o que aprendeu desde o berço. O reverendo pároco ficou sensibilizadíssimo. E eu também. Porque, de súbito, já não estávamos em 2019 mas sim em 1959, 60, 61 e seguintes, a cantar o hino "Nesta homenagem singela, que vos prestamos senhor, nossa alma vai com ela, como prova de penhor..."
O tempo recuou àquela época em que a igreja se enchia todos os domingos e metade da assembleia éramos crianças, àquele domingo do ano em que até quem não ia à missa todos os domingos, ia nesse. Vi lágrimas furtivas em alguns olhos e até me emocionei um pouco também. A Beirã sempre teve um carisma diferente de todas as outras aldeias do concelho de Marvão. Sempre.
Nem melhor, nem pior do que as outras. Apenas diferente. Marcou fortemente quem por cá passou e viveu no desempenho das mais diversas profissões mas depois rumou a outros destinos, marcou para sempre quem, como eu, cá nasceu, cresceu e se fez gente. Uns e outros somos a mesma família, unidos por um sentimento comum, impossível de descrever. É algo que se sente e não se consegue explicar. Não há tempo nem distância capazes de destruir tal apego a esta terra.
Ontem, após a Eucaristia, realizou-se a procissão anual em louvor de Nossa Senhora de Fátima. Outra tradição que se leva a efeito ininterruptamente desde que a paróquia da Beirã é paróquia. E de novo a igreja se encheu de fiéis. Mesmo com o Benfica a jogar para a conquista do campeonato. É nestes pequenos pormenores que a Beirã é diferente. Desligou-se a tv porque havia que ir à procissão.
Bastante gente. Não tanta como antigamente mas ainda assim um bom punhado de pessoas acompanhou a Senhora pela ruas de casas fechadas e janelas às escuras sem as antigas colchas, porque já lá não mora ninguém. Duas senhoras ficaram na igreja por incapacidade física ou porque assim o entenderam.
Sentada num dos bancos de madeira que ladeiam a entrada do lado de fora do templo, uma vizinha e boa amiga que também já cá não mora e por incapacidade física não foi na procissão, limpava uma lágrima furtiva que não conseguiu conter, só ela saberia porquê. Talvez pelas suas boas memórias de outras procissões neste lugar. Talvez saudades de quem já partiu. Talvez tristeza de ver as ruas assim sem gente e as casas com as janelas sem colchas nem luz.
Talvez...
A procissão deu a volta do costume e regressou à igreja. Um casal de turistas, bem simpático por sinal, pediu para fotografar "esta igreja tão linda, tão branquinha"...
- Fotografe à vontade, respondi contente pelo elogio àquela que também considero a igreja mais bonita do mundo. E mais, adiantei: - Espere que eu desligo as luzes do altar. Fica uma foto mais bonita porque a intensidade das lâmpadas led desfocam um pouco a imagem...
- Sabe? Disse a senhora turista.
- É a primeira vez que cá vimos mas vamos voltar mais vezes. Terra linda, gente simpática, estamos encantados.
Quem não gosta de ouvir falar bem da sua terra e da sua gente?
E a senhora continuou: - É um sossego. Hoje ao acordar, o único ruído que ouvi foi o cantar das aves.
- A Beirã é um paraíso para a passarada, não sei porquê, respondi. Melros, pintassilgos, verdelhões, rolas, poupas e cucos, são os principais cantores. Mas temos um tenor particularmente famoso que ouço trinar desde que nasci. O rouxinol. Vive nas margens do ribeiro, na fonte da Murta, no arvoredo das várzeas. E pousa muitas vezes nos arredores da minha casa. Ainda um dia destes ao cair da tarde, estava um a cantar pousado no corta-fogo da casa de uma vizinha...
Ali ficámos um bom pedaço de tempo a falar sobre o antes e o agora. Eu, sensibilizado pelos elogios à minha terra, eles interessados na sua história, de como o mesmíssimo progresso a fez nascer antes e agora morrer, a comunidade heterogénea que a compunha de ferroviários, funcionários da alfândega, pide e guarda fiscal, despachantes e seus funcionários, camponeses e comerciantes, portugueses e espanhóis...
E, finalmente, como estamos hoje assim reduzidos a pintassilgos, rouxinóis, pardais e pouco mais. Por isso sejam muito bem-vindos senhoras e senhores turistas. Venham, desfrutem do descanso, da paz que procuram e aqui encontram. Venham, depois levem convosco a vontade de voltar, anunciem a toda a gente que a Beirã existe, que é linda e vos recebe muito bem.
E obrigado. Muito obrigado mesmo.
Beirã, 19.05.2019
José Coelho