terça-feira, 28 de maio de 2019

(sobre)Vivi... (conclusão)


Este livro conta uma história que se passou há mais de 40 anos. Entre 1975 e 1976, o essencial do Alentejo agrário produtivo mudou de mãos. Mais de um milhão de hectares e explorações agrícolas foram ocupados pelos trabalhadores organizados em sindicatos e unidades colectivas de produção. Tudo se passou sob a orientação do Partido Comunista Português, com o apoio das unidades militares da região, do governo, dos funcionários do Ministério da Agricultura e de outros grupos políticos de menor importância. Foi um processo revolucionário rápido que usou de intimidação e terror, mas não, graças à presença das forças armadas, de violência física". 
                                           
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No final do relato que publiquei ontem, tinha previsto escrever sobre todas as filhadeputices de que fui alvo aquando do meu ingresso na GNR. Só de falar nesses dias, semanas e meses tão ruins da minha vida, não fui capaz de adormecer tranquila e normalmente porque todos os fantasmas dessas bárbaras injustiças povoaram a minha cabeça fazendo-me dar voltas e voltas na cama antes de conseguir serenar o espírito e adormecer por fim.

Já muito escrevi sobre tudo isso e está pormenorizado no livro "Histórias do Cota" que os meus filhos mandaram imprimir por sua conta própria com o relato das minhas histórias de vida, as quais fui escrevendo no Blogue TocadosCoelhos e também agora no Meu vício da escrita, e que, secretamente, eles foram guardando para me fazerem uma mega-surpresa num dia do meu aniversário. E porque a noite é, sempre foi, uma boa conselheira, mudei de ideias.

À distância de 40 anos e depois de uma profunda reflexão, as coisas são hoje talvez mais fáceis de entender. Eu viera das Minas da Panasqueira onde apesar da dureza e perigosidade do trabalho fora muitíssimo bem tratado durante quase cinco anos, e, por consequência, muitíssimo feliz. Fora lá recebido, aceite e acarinhado por três famílias de Marvão como se fosse filho de todos eles. 

Da Beirã, a Família maravilhosa do primo João Gaspar, o homem que me arranjou aquele trabalho, a sua esposa, a prima Maria José (já descansam os dois na terra da verdade) e os seus dois filhos, o António e o Zé Manel, que me acolheram nos primeiros meses com mesa e roupa lavada, já que a dormida era em excelentes dormitórios da empresa, equipados com conforto e dignidade.

Do Jardim, a Família espectacular do até hoje meu queridíssimo capataz José Batista Mouro (que vive agora a merecida aposentação na sua casa da encosta da serra de Marvão) mais a sua bondosa esposa a senhora Maria Francisca, e as duas filhas, a Patrícia e a Natália. Este senhor tudo fez por mim e não há palavras suficientes para exprimir o tamanho da minha gratidão.

Também da Beirã, o primo Antero, a sua esposa e filhas, sempre disponíveis para ajudar no que fosse preciso. Todos eles me acarinharam tanto que me adaptei e senti em casa com a minha gente. A esposa de um cuidava da minha roupa porque eu só vinha a casa uma vez por mês e porque o trabalho na mina é muito sujo sempre a chafurdar em lama e águas turvas, a esposa de outro cuidava-me da "bucha" para levar para a mina que laborava 24 sobre 24 horas de 1 a 31 do mês, em turnos de 8 horas alternados à semana.

Nunca conhecera gente tão boa em toda a minha vida. Nunca me sentira tão a gosto em nenhum outro lugar. Nunca imaginara que iria deixar aquele emprego muito bem pago para ingressar na GNR. Jamais tal coisa me tinha passado pela cabeça. Pelo contrário, tencionava estabelecer-me nas Minas definitivamente, levar a mulher e o filho para junto de mim, porque a empresa tinha dois enormes bairros residenciais a custo (quase) zero para os mineiros e suas famílias. Depois de ter ido à guerra e passado por tantos perigos a mina não me assustava.

Teve importância fundamental na minha decisão de vestir de novo uma farda o sábio conselho do meu responsável capataz José Mouro que ao ter conhecimento que eu concorrera à GNR e tinha sido chamado mas não tinha vontade de ir, me incentivou veementemente apesar da imensa pena que lhe dava ver-me partir. E lá me conseguiu convencer a aceitar o novo desafio com os seus sensatos pareceres. Era um "emprego do estado", era mais seguro que a mina, era mais asseado, tinha um futuro mais promissor...

E eu ouvi-o. Fiz caso. A sua opinião contava para mim quase tanto como a do meu pai, a de um irmão, sei lá... Era a opinião de alguém que eu muito considerava e a quem muito devia. Por isso dei-lhe ouvidos. Só não estava à espera de um volte-face tão duro e profundo na minha vida ao ser recebido na GNR com três pedras na mão e inadmissívelmente humilhado durante todos os dias semanas e meses que durou a instrução. Porém, à distância de quatro décadas é talvez possível fazer um esforço para tentar entender tudo aquilo, por mais reprovável que possa ter sido.

O clima político por todo o Alto e Baixo Alentejo era de cortar à faca, particularmente entre a população e a GNR por causa da reforma agrária. Estava em curso a devolução aos seus legítimos donos das terras irregularmente ocupadas pelos trabalhadores nos primeiros anos da revolução. A GNR era o garante da ordem nem sempre bem conseguido, havendo frequentes confrontos com os trabalhadores que se opunham a essas devoluções. O ambiente era tenso quer no terreno quer nos quartéis. E eu tinha ganho a fama de comunista ferrenho que estaria inclusivamente a receber oito contos por mês pagos pelo PCP. 

Parvoíces sem pés nem cabeça. Tontarias nascidas de mentes sujas e cobardes que, sem nunca darem a cara, inventavam essas atoardas, no intuito maléfico de me prejudicarem. O clima de crispação reinante fez o resto. Falar em comunistas entre os GNRs era como falar do diabo do inferno. Ser GNR nas vilas e aldeias onde se faziam as devoluções das propriedades aos seus donos era ser da Pide que arrancava as unhas a sangue frio às pessoas a mando do fascismo. Num tão crispado contexto, o antagonismo entre ambos era latente, profundo, demolidor.

E quem se lixou foi o Mê Zéi (como me chamava a tia Florinda que Deus tem)  que nunca na vida soube o que é ser comunista, socialista ou fascista, ou o raio que parta todas essas denominações políticas, já que para elas não tenho, nunca tive e já não penso vir a ter qualquer formação académica que me permita entendê-las, quanto mais assumi-las. Nunca fiquei em casa em dia de eleições. Nunca. Cumpri sempre esse dever cívico votando conscientemente depois de ouvir as propostas de A, B, ou C, e de acordo com o que me pareceu mais próximo das minhas convicções.

Nunca discuti política com ninguém. Fui convidado por três vezes para fazer parte ou encabeçar a lista para a Junta de Freguesia de Beirã. Aos três convites disse NÃO. E não foi por não me sentir preparado, mas porque tenho um modo de encarar as coisas muito particular, muito próprio, muito meu. O protagonismo não me interessa minimamente. Além disso, entendo também que já dei de mim o bastante em favor da causa pública, no desempenho das minhas funções profissionais, nas quais, tal como na política, nunca se consegue agradar a todos.

E fico-me por aqui. 

A noite passada foi longa mas conclusiva; mexer em feridas mesmo que sejam já antigas só as faz voltar a sangrar de novo. Além disso, todos os que me trataram mal, já pagaram. Poucos serão os que se encontram ainda entre nós. Com verdade e humildade reconheço que nunca consegui perdoar-lhes, apesar de tentar ser um cristão convicto. Foi duro e humilhante demais. Jamais eu seria capaz de fazer tantas sacanices fosse a quem fosse. Desejo sinceramente que  as culpas não prejudiquem o seu descanso eterno, mas, se depender de mim, nem sequer lá, onde se encontram agora, quero voltar a cruzar-me com nenhum deles, quando chegar a minha vez...


Disse.

Beirã 28Mai'19
José Coelho