sábado, 13 de abril de 2024

Um dia mais é também um dia menos

Resplendor do sol em fim de tarde no Vale do Cano - Beirã
Foto José Coelho

Acordei cedo. Muito cedo, como sempre. O restauro e ampliação desta casa cheia de grandes janelas foi na íntegra por mim concebido. As mais amplas são as voltadas ao Nascente. Por isso, logo que a aurora começa a clarear por terras d’Espanha por detrás da Murta, a suave luminosidade filtrada pelas persianas e cortinados – associada ao cantar dos também madrugadores galos da vizinhança – fazem-me despertar. Claro que não me ponho logo a pé a essa hora, embora já não consiga dormir mais. Deixo-me ficar sossegado para não acordar a “patroa” enquanto vou apreciando o despertar de toda a natureza que rodeia estes meus domínios.

O metálico debicar dos pardais na caça aos insetos para o pequeno-almoço da sua prole no algeroz do beirado, onde já uma vez construíram um monumental ninho vingando-se talvez por eu não ter permitido que o construíssem nos tubos do motor do ar condicionado, no verão anterior. Também pelas redondezas vive há muitos anos um numeroso bando de rolas turcas que nidificam nos abundantes sobreiros da Tapada da Rabela anexa ao nosso quintal – o ano passado até  o fizeram na laranjeira sem receio do alcance das nossas mãos – e pousam no telhados ou nas chaminés onde cantam, cantam, cantam, de manhã à noite, atentas aos besouros que circulam pelas redondezas e às sementes das espigas na horta, bem como aos dois baldes de água fresca que todos os dias coloco à sua disposição e onde vão beber à vez.

Ah! E chegaram já também os famintos estorninhos que chiam como ratos enquanto devoram os primeiros figos-lampos das figueiras que também abundam por aí, sem os deixarem sequer amadurecer!

Longe vai já o tempo em que tinha de levantar-me às seis da manhã para cortar a barba, tomar um duche e o pequeno-almoço antes de marchar às minhas obrigações profissionais. Muitos dias houve também que, em função das mesmas, o nascer do dia era exatamente a hora em que a minha ronda noturna na proteção de pessoas e bens terminava. Aí então, em vez de acordar, era a hora de me deitar e dormir.

Por isso este é o tempo de descansar e desfrutar da paz e tranquilidade dos meus dias, naquele que para mim é também o melhor lugar do mundo. A Toca dos Coelhos. Aqui nasci, aqui passei inquestionavelmente os momentos mais doces da minha vida, aqui me despedi para sempre dos entes mais queridos, aqui tenho a grata bênção de envelhecer agora. Se não tenho uma vida perfeita – acho que ninguém tem – é seguramente a vida menos agitada que poderia ambicionar.

Os problemas – maioritariamente de saúde – são idênticos aos de tanta outra gente que conheço com as mesmas limitações e constrangimentos, minimizadas o quanto possível, mas sempre aceites com ânimo e resignação. Queixumes nada adiantam porque nada resolvem, por isso vou vivendo, desfrutando e agradecendo, um dia de cada vez. Mesmo com limitações, entendo a Vida como um dom valioso que me foi concedido e que tenho o dever de aceitar e fazer valer a pena. Até mesmo os dias mais difíceis. Nem sempre é fácil, nem sempre consigo estar alegre e bem-disposto, mas todos os dias tento superar o que me puxa para baixo, levantar a cara e enfrentar decididamente aquilo que me perturba.

O perigo que vivemos nos últimos anos é a mais evidente prova do quão somos impotentes perante a força da natureza e que nunca saberemos do que ela é capaz para se defender de tantas agressões e nos remeter à nossa humana insignificância. Deveríamos ser mais cuidadosos com ela e respeitar os seus ciclos naturais sem os corromper abusiva e constantemente. A pandemia foi uma tão contundente como letal resposta à irresponsável ousadia de o ser humano achar que pode fazer tudo, alterar tudo, substituir tudo.

Não pode.

Andamos – acho eu – a mexer há demasiado tempo com aquilo que não devemos e a caminhar para a autodestruição. Nunca, jamais ou em tempo algum, o Homem conseguirá substituir a Natureza. Poderá imitá-la, poderá substituir alguns dos seus efeitos por outros similares, mas nunca conseguirá superá-la. E de tanto ousar vai perder o controle e sofrer as consequências. Quiçá a Covid 19 seja apenas um começo. Sem qualquer pretensão de me julgar mais perfeito que os demais, tenho, no entanto, plena consciência que sempre a admirei e respeitei.

Sou um dos seus mais fiéis seguidores e admiradores. A atestá-lo, os milhares de imagens do meu acervo fotográfico onde mais de noventa por cento são a fauna, a flora, as paisagens rústicas e ambientais, o céu azul ou nublado, para além das cores do por do sol que em meu modesto entender são a obra-prima mais incrível que se pode contemplar, a magnificência e o esplendor na forma mais perfeita que nos são oferecidos diariamente pelo Criador.

Mas também me parecem imponentes as cores da aurora desde a primeira rosada auréola celeste, até o astro-rei se elevar na linha do horizonte. Curiosamente o nascer do dia traz consigo o despertar barulhento de toda a vida sobre a terra, enquanto o seu ocaso a emudece quase por completo.

Poucas coisas admiro mais.

Em cada acordar tenho por hábito agradecer mais um dia de vida. E antes de adormecer, o dia vivido. Não o faço por costumeira beatice mas por absoluta convicção do meu dever de gratidão. Ser grato, atento e disponível fazem, fizeram sempre, parte do meu ADN. Vivo cada dia como se fosse o último serenamente, não por ser agora recomendado em virtude da pandemia, mas porque sempre fui assim.

Entendo que cada dia que amanhece e soma mais um à nossa vida, é simultaneamente um a menos do total que temos destinados para viver. Essa é, seguramente, a mais precisa equação matemática. Nunca se esqueçam dela. E procurem ser felizes, mesmo quando não conseguirem alcançar tudo quanto acham ser preciso para o conseguir…

José Coelho