Aos 07 de Março de 2015 nasce este blogue que tal como o seu antecessor TocadosCoelhos pretende apenas ser um ponto de encontro e de entretenimento pautando-se sempre pelas regras da isenção, da boa educação e do civismo em geral. Sejam bem-vindos.
segunda-feira, 29 de novembro de 2021
Contos (antigos) de Natal
sábado, 20 de novembro de 2021
Coisas que gosto de reler
Coisas de alentejanos
Pedro Ferro, in Público, 9 de Outubro de 1995
terça-feira, 16 de novembro de 2021
Várzea das Amendoeiras - Ano 1960
Na
ribeira que secou
Bebia
o gado que eu tinha;
Quando
chegava à noitinha,
A
voz das águas chamava,
E
o rebanho que pastava
Deixava
os tojos e vinha.
Eu
próprio molhava as mágoas
Na
pureza da nascente;
Metia
as mãos docemente
Na
limpidez da frescura,
E
as caricias da corrente
Davam-me
paz e ternura.
O
gado, farto, bebia;
E
eu deixava-me correr
Naquele
suave prazer
Que
me levava consigo...
Eu
não tinha que fazer,
E
o gado tinha pescigo.
A
noite, então, vinha mansa
Cobrir
a lã das ovelhas;
Era
um telhado de telhas
Furadas
ou embutidas
De
luzes muito vermelhas
Por
todo o céu repartidas.
E
aquela viva irmandade
Do
rebanho e do zagal
Era
ali tão natural
Que
apagava dos sentidos
A
saudade do curral
Feita
de sono e balidos.
Mas
a ribeira secou.
Não
sei que praga lhe deu
Que
no leito onde correu
Há
pedras e maldição...
E
o meu rebanho morreu
De
sede e de mansidão.
Coimbra,
20 de Maio de 1943
Miguel Torga
sexta-feira, 12 de novembro de 2021
domingo, 7 de novembro de 2021
Prece
Senhor, que és o céu e a terra,
que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és Tu também. Onde nada está Tu habitas e onde tudo está – (o Teu templo) – eis o teu corpo.
Dá-me alma para te servir e
alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome.
Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faz com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um Pai.
Que a minha vida seja digna da
tua presença. Que o meu corpo seja digno da terra, tua cama. Que a minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar.
Torna-me grande como o sol,
para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te e adorar-te.
Senhor, protege-me e ampara-me.
Dá-me que eu me sinta teu. Senhor, livra-me de mim.
Fernando Pessoa
sexta-feira, 5 de novembro de 2021
Hoje seria o teu dia, Pai. Nunca (te) esquecerei
Pai.
A tarde dissolve-se sobre a terra, sobre a nossa casa. O céu desfia um sopro
quieto nos rostos. Acende-se a lua. Translúcida, adormece um sono cálido nos
olhares. Anoitece devagar. Dizia nunca esquecerei, e lembro-me. Anoitecia
devagar e, a esta hora, nesta altura do ano, desenrolavas a mangueira com todos
os preceitos e, seguindo regras certas, regavas as árvores e as flores do
quintal; e tudo isso me ensinavas, tudo isso me explicavas. Anda cá ver, rapaz.
E mostravas-me. Pai. Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa
indiferente deste mundo que finge continuar, os teus movimentos, o eclipse dos
teus gestos. E tudo isto é agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as
margens e a nascente; és o dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde;
és o mundo todo por seres a sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e eu queria
ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as
flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu
oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na
terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o
eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para
sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que
nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas
de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me
agride. Pai. Nunca esquecerei.
José Luís Peixoto, in 'Morreste-me'
quarta-feira, 3 de novembro de 2021
terça-feira, 2 de novembro de 2021
Dia de Finados 2021
segunda-feira, 1 de novembro de 2021
Coisas que leio e releio
Não é alentejano quem quer
Palavra mágica que começa no
Além e termina no Tejo, o rio da portugalidade. O rio que divide e une Portugal
e que à semelhança do Homem Português, fugiu de Espanha à procura do mar.
O Alentejo molda o carácter de um
homem. A solidão e a quietude da planície dão-lhe a espiritualidade, a
tranquilidade e a paciência do monge; as amplitudes térmicas e a agressividade
da charneca dão-lhe a resistência física, a rusticidade, a coragem e o
temperamento do guerreiro. Não é alentejano quem quer. Ser alentejano não é um
dote, é um dom. Não se nasce alentejano, é-se alentejano.
Portugal nasceu no Norte mas foi no
Alentejo que se fez Homem. Guimarães é o berço da Nacionalidade, Évora é o
berço do Império Português. Não foi por acaso que D. João II se teve de
refugiar em Évora para descobrir a Índia. No meio das montanhas e das serras um
homem tem as vistas curtas; só no coração do Alentejo, um homem consegue ver ao
longe.
Mas foi preciso Bartolomeu Dias regressar
ao reino depois de dobrar o Cabo das Tormentas, sem conseguir chegar à Índia
para D. João II perceber que só o costado de um alentejano conseguia suportar
com o peso de um empreendimento daquele vulto. Aquilo que para o homem comum
fica muito longe, para um alentejano fica já ali. Para um alentejano não há
longe, nem distância porque só um alentejano percebe intuitivamente que a vida
não é uma corrida de velocidade, mas uma corrida de resistência onde a
tartaruga leva sempre a melhor sobre a lebre.
Foi, por esta razão, que D. Manuel decidiu
entregar a chefia da armada decisiva a Vasco da Gama. Mais de dois anos no
mar... E, quando regressou, ao perguntar-lhe se a Índia era longe, Vasco da
Gama respondeu: «Não, é já ali.». O fim do mundo, afinal, ficava ao virar da
esquina.
Para um alentejano, o caminho faz-se
caminhando e só é longe o sítio onde não se chega sem parar de andar. E Vasco
da Gama limitou-se a continuar a andar onde Bartolomeu Dias tinha parado. O
problema de Portugal é precisamente este: muitos Bartolomeu Dias e poucos Vasco
da Gama. Demasiada gente que não consegue terminar o que começa, que desiste
quando a glória está perto e o mais difícil já foi feito. Ou seja, muitos
portugueses e poucos alentejanos.
D. Nuno Álvares Pereira, aliás, já tinha
percebido isso. Caso contrário, não teria partido tão confiante para
Aljubarrota. D. Nuno sabia bem que uma batalha não se decide pela quantidade
mas pela qualidade dos combatentes. É certo que o Rei de Castela contava com um
poderoso exército composto por espanhóis e portugueses, mas o Mestre de Avis
tinha a vantagem de contar com meia dúzia de alentejanos. Não se estranha,
assim, a resposta de D. Nuno aos seus irmãos, quando o tentaram convencer a
mudar de campo com o argumento da desproporção numérica: «Vocês são muitos? O
que é que isso interessa se os alentejanos estão do nosso lado?»
Mas os alentejanos não servem só as grandes
causas, nem servem só para as grandes guerras. Não há como um alentejano para
desfrutar plenamente dos mais simples prazeres da vida. Por isso, se diz que
Deus fez a mulher para ser a companheira do homem. Mas, depois, teve de fazer
os alentejanos para que as mulheres também tivessem algum prazer. Na cama e na
mesa, um alentejano nunca tem pressa. Daí a resposta de Eva a Adão quando este,
intrigado, lhe perguntou o que é que o alentejano tinha que ele não tinha: «Tem
tempo e tu tens pressa.» Quem anda sempre a correr, não chega a lado nenhum. E
muito menos ao coração de uma mulher. Andar a correr é um problema que os alentejanos,
graças a Deus, não têm. Até porque os alentejanos e o Alentejo foram feitos ao
sétimo dia, precisamente o dia que Deus tirou para descansar.
E até nas anedotas, os alentejanos revelam
a sua superioridade humana e intelectual. Os brancos contam anedotas dos
pretos, os brasileiros dos portugueses, os franceses dos argelinos... só os
alentejanos contam e inventam anedotas sobre si próprios. E divertem-se imenso
ao mesmo tempo que servem de espelho a quem as ouve.
Mas para que uma pessoa se ria de si
própria não basta ser ridícula porque ridículos todos somos. É necessário ter
sentido de humor. Só que isso é um extra só disponível nos seres humanos topo
de gama.
Não se confunda, no entanto, sentido de
humor com alarvice. O sentido de humor é um dom da inteligência; a alarvice é o
tique da gente bronca e mesquinha. Enquanto o alarve se diverte com as
desgraças alheias, quem tem sentido de humor ri-se de si próprio. Não há maior
honra do que ser objeto de uma boa gargalhada. O sentido de humor humaniza as
pessoas, enquanto a alarvice diminui-as. Se Hitler e Estaline se rissem de si
próprios, nunca teriam sido as bestas que foram.
E as anedotas alentejanas são autênticas
pérolas de humor: curtas, incisivas, inteligentes e desconcertantes, revelando
um sentido de observação, um sentido crítico e um poder de síntese notáveis.
Não resisto a contar a minha anedota
preferida. Num dia em que chovia muito, o revisor do comboio entrou numa
carruagem onde só havia um passageiro. Por sinal, um alentejano que estava todo
molhado, em virtude de estar sentado num lugar junto a uma janela aberta. «Ó
amigo, porque é que não fecha a janela?», perguntou-lhe o revisor.
«Isso queria eu, mas a janela está
estragada.», respondeu o alentejano. «Então porque é que não troca de lugar?»
«Eu trocar, trocava... Mas com quem?»
Como bom alentejano que me prezo de ser,
deixei o melhor para o fim. O Alentejo, como todos sabemos, é o único sítio do
mundo onde não é castigo uma pessoa ficar a pão e água. Água é aquilo por que
qualquer alentejano anseia. E o pão... Mas há melhor iguaria do que o pão
alentejano? O pão alentejano come-se com tudo e com nada. É aperitivo, refeição
e sobremesa. E é o único pão do mundo que não tem pressa de ser comido. É tão
bom no primeiro dia como no dia seguinte ou no fim da semana. Só quem come o
pão alentejano está habilitado para entender o mistério da fé. Comê-lo faz-nos
subir ao Céu!
É por tudo isto que, sempre que passeio
pela charneca numa noite quente de verão ou sinto no rosto o frio cortante das
manhãs de Inverno, dou graças a Deus por ser alentejano. Que maior bênção
poderia um homem almejar?
Vou mas éi comer a açorda que
tenho mais que fazer.
João Mário Caldeira - Professor de História