Os meus avós maternos
– com quem me criei – viviam o seu dia a dia numa tão tranquila simplicidade
que ainda hoje os recordo carinhosamente, com imensa saudade. Nunca passaram
fome e a minha avó Amélia nunca deveu um tostão a ninguém, conseguindo, pelo
contrário, amealhar o pezinho-de-meia que tinha sempre guardado para prevenir
eventuais ou inesperadas vicissitudes.
Era uma senhora
pequenina de trato meigo e muito carinhosa. Qual formiguinha trabalhadeira
arranjava sempre algo para fazer nas suas lides domésticas. Ia e voltava a pé
da Cavalinha ao mercado de Santo António das Areias todos os sábados para
“mercar” muitas vezes apenas algum queijo, mais dois ou três litros de milho
para as suas galinhas poedeiras.
O meu avô José
Lourenço, mais conhecido por ti Zé Cabreiro, grande e querido amigo não só de
mim como de todos os seus netos, muito novo ficou quase cego dos dois olhos –
tal como aconteceu depois às suas duas filhas, a minha mãe e a minha madrinha
Jacinta – e por isso raramente deixava o seu cantinho na Cavalinha. Faleceu
inesperadamente aos 67 anos vítima de uma bronquite asmática. Foi a mim que
calhou, nessa triste manhã, levar à sua companheira a má notícia do seu
falecimento no hospital de Portalegre, onde se encontrava havia duas semanas em
estado crítico.
A partir daí todos os
fins de semana passei a ir visitá-la porque adorava a sua companhia e as
deliciosas comidas que ela cozinhava nas panelas ou tachos de barro em lume de
chão e para o qual eu ia sempre buscar-lhe dois ou três feixes de lenha que
nunca mais deixei que lá se lhe acabassem. Mais tarde, já muito perto dos 86
anos, recolhi-a definitivamente em minha casa, onde a minha mãe e sua filha
mais velha que já morava comigo, dela passou a cuidar amorosamente até ao dia
em que a tia Amélia da Conceição, já então com 93 anos, decidiu ir ao encontro do seu Zé Lourenço.
A pequena casa onde
viviam junto ao ribeiro da Beirã por detrás da "caseta" da passagem de
nível da Cavalinha era imaculadamente branca por dentro e por fora. Todas as
divisões da casa e aquela magnífica varanda estavam sempre cuidadosamente
caiadas e esfregadas à mão num asseio exemplar. Sobre a porta de entrada uma
frondosa e fresca latada que dava uns deliciosos cachos moscatel brancos. No
parapeito da grande janela da sala alinhavam-se vasos com manjericos, cravos e
flores de cera que impregnavam com o seu perfume tudo em redor. E havia ainda
outro canteiro com flores de noiva, dálias, açucenas e um também cheiroso
alecrim no ajardinado canto existente entre a varanda da casa e a cancela que
dava para o caminho.
Aquela modesta e
branca casinha era um pequeno paraíso de paz e harmonia, habitado por duas
criaturas maravilhosas com quem dava gosto conviver porque eram o exemplo
perfeito da honradez da honestidade e da perfeição humanas. Nunca tínhamos
pressa de os deixar. E quando por fim tínhamos que vir embora de ao pé deles
trazíamos sempre vontade de lá regressar o mais depressa possível.
O meu avô era também
um hábil artesão. Mesmo sem ver quase nada, fazia uns pássaros em cortiça muito
bonitos, os quais, por meio de uma guita com um chumbo na ponta, fazia com que
os pássaros ganhassem vida baixando alternadamente a cabeça ou o rabo ao sabor
do vaivém do pêndulo. Havia também aquela melodiosa escaravela de
lata em frente da casa com uns pequenos badalos de madeira em tamanhos vários
dispostos no seu eixo, que, ao rodarem movidos pelo vento, produziam uma música
engraçada. Consoante o tamanho de cada badalo, ao baterem na chapa um após o
outro faziam mais ou menos assim:
- Tec-tac-toc-tec-tac-toc… Tec-tac-toc-tec-tac-toc…
Sempre que podia ia
passar com eles dias inteiros. E nem dava pelo passar das horas! O meu avô, para além de um grande companheiro era também um
grande contador de histórias. Da guerra civil espanhola e de muitas outras
peripécias que viveu e sabia. Tinha um dom tão especial para as contar que nos
prendia a atenção por completo. Ao ouvi-lo no mais profundo silêncio era como
se estivéssemos a "ver" tudo o que ele ia narrando.
Quando eu era
pequenito às vezes acompanhava-o no pastoreio pelas tapadas onde ele era
guardador de gados. E recordo perfeitamente um dia, na Tapada dos Três Pontões,
os dois sentados na parede da linha férrea. Ao ouvir o zumbido dos cabos
telefónicos que bordejavam a linha, perguntei-lhe, admirado:
- O que é que soa,
avô?
Ele pegou-me na mão,
levou-me ao poste que sustentava as canecas dos fios de cobre e mandou-me
encostar lá o ouvido. E o tal zumbido que ao longe era discreto, ali, com o
ouvido encostado ouvia-se uma enorme, contínua e melodiosa algazarra:
-
Ziiinnng-zeennng-zoonnnng…
- Sabes o que estás a
ouvir? Perguntou-me a sorrir, divertido.
- Parece uma música.
Respondi eu.
- Ah pois é! São
meninas a cantar! Concluiu rindo da minha cara de espanto, ainda mais divertido.
É curioso como nunca
mais me esqueci de tal coisa! E não teria decerto mais de 3 ou 4 anitos. Ainda
hoje lá estão os pontões, a parede e o poste de ferro a olharem para o céu, mas
já sem os fios. Não sei se foram retirados quando encerrou o ramal ou se terão
sido roubados, mas cada vez que lá passo basta-me cerrar os olhos para ir ao
encontro da voz e do riso do meu querido avô:
- "São meninas a
cantar"...
Partiram há muito
tempo na sua viagem sem regresso. Inevitavelmente com eles foi um enorme pedaço
de mim. A casa onde moravam está agora em ruínas. Mas aos olhos do meu
coração continua branquinha e acolhedora. E eles permanecem lá. Vivos na minha
memória e no meu amor, incapaz de os esquecer. Consigo até vislumbrar a avó
Amélia sentada na sua cadeirinha de bunho na empena da casa, a costurar ao
solinho da tarde. E o meu avô sentado na parede aparando pedaços de cortiça
para construir os seus animados passarocos. As rosas de Alexandria e as
perfumadas açucenas do velho canteiro ajardinado conseguem milagrosamente
sobreviver há décadas e continuam a florir em cada primavera por entre o
emaranhado de silvas e outro matagal que quase já cobrem as ruínas da casa.
Inventei uma maneira
de os conservar mais perto de mim. Antes que a velha parreira da latada da
varanda secasse fui lá buscar um garfo que pus no meu quintal e que por sorte
pegou. Já comi dela os doces cachos moscatel. E como não tenho a
habilidade do avô Zé para as fazer, comprei no Mercado Franco em Castelo de
Vide uma escaravela de lata parecida com as que ele fazia e até tem no meio uns
arames que ao rodarem movidos pelo vento fazem um barulho parecido àquele que
fazia a dele, ainda que muito menos musical. Limita-se a um monótono
tec-tec-tec… tec-tec-tec…
Dá, contudo, para
sentir os dois mais próximos de mim.
Sei que um dia
voltaremos a estar juntos. Mas às vezes é complicado gerir tantas perdas,
tantas ausências, tanta falta destes afectos que a vida me foi levando...
José Coelho in Histórias do Cota