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Nunca foi fácil a puta da minha vida. Nunca! Nascido no seio da mais modesta das famílias nesta aldeia da raia alto-alentejana num pós guerra-civil que devastou nuestros hermanos e seguido de um outro ainda mais devastador pós-guerra mundial, sobreviver não era para fracos na medida em que, faltando quase tudo, cada família tinha que comer praticamente só do que semeava na horta, com o que criava na capoeira, no estábulo ou na pocilga.
Das lojas da aldeia só se comprava o arroz e a massa, o azeite e algumas outras mercas de todo indispensáveis. Fiados quase sempre, pagando-se o avio da semana passada para poder levantar-se o da semana seguinte. Depois, como se só por si a miséria não fosse já suficiente, aqueles longos, frios e chuvosos invernos que começavam em meados de Setembro e duravam, duravam, duravam, até meados de Abril do ano seguinte. Semanas inteiras de temporal, daquelas manhãs gélidas que faziam condensar o nosso bafo numa nuvem de vapor pelo simples facto de se respirar, de se estar vivo.
Contudo, o trabalho no campo abundava. De tal modo que a oferta era quase sempre mais que a procura. E havia ainda muitas oficinas de artes e ofícios que serviam a população e geravam outro tipo de trabalho. Já poucos se lembrarão mas eu sou do tempo em que a Beirã tinha duas escolas primárias, duas alfaiatarias, duas barbearias, dois talhos e um matadouro, duas pensões, um café, um restaurante, uma carpintaria, um cartório do registo civil, uma sociedade recreativa para as pessoas em geral assistirem aos mais diversos espectáculos e um clube para as outras pessoas mais finas, seis tabernas-mercearias que de um lado eram taberna e do outro mercearia, e havia a chamada loja grande onde havia de tudo e que era assim uma espécie daquilo que começou mais tarde a apelidar-se de supermercado.
Poderia inclusivamente referir os nomes de todas e cada uma dessas pessoas que por detrás dos balcões nos atendiam, porque, fazendo parte das minhas mais queridas memórias, consigo lembrar-me pormenorizadamente delas.
Depois havia a estação do caminho de ferro que só por si era um mundo à parte. Guardas fiscais e agentes da pide, chefes de estação e fatores, chefes de laço e de distrito, carregadores e assentadores, doutores e funcionários da alfândega, despachantes e seus funcionários, guardas de passagens de nível, passageiros que partiam ou que chegavam, enfim, todo um staff que fazia parte do funcionamento de uma fronteira ferroviária e gerava movimento. E, consequentemente, desenvolvia toda a economia local.
Nos Barretos, existia um ferreiro e pelo menos quatro tabernas-mercearias. Na Bica umas termas de águas sufurosas e uma taberna. No Pereiro uma escola com cantina para as crianças almoçarem enquanto os pais trabalhavam nos campos ou nas fábricas e uma capela onde alguns jovens casaram. Na Fadagosa mais uma taberna-mercearia e as famosas termas também de águas sulfúreas, que, segundo creio saber, são muito mais antigas do que a Beirã e tudo à volta.
Era, posso afirmá-lo sem receio de exagerar, um rodopio de gente por tudo quanto era sítio. Aqui nasceram, viveram e morreram sem quase nunca de cá saírem, gerações. Outros por cá passaram e levaram no seu coração para sempre a mística e indescritível saudade que não permite a ninguém que por cá tivesse passado, conseguir esquecer.
Coube-me por sorte ser filho de camponeses. Gente humilde, do melhor, onde as dificuldades nunca foram poucas. Porque o seu trabalho era pago à jorna e à semana, se por qualquer impedimento não podiam ir trabalhar - invernia ou doença por exemplo - não havia depois como pagar o que, chovesse ou fizesse sol, se comia todos os dias.
Por estranho que pareça, tendo em conta, nestes tempos bem melhores do que aqueles mas em que cada casal tem em média um só filho, quando muito dois, naquele tempo não havia casa n'aldeia que não tivesse pelo menos cinco ou seis gaiatos.
Ou mais...
E tudo se criava, tudo se desenvolvia. Mais tombo menos pontapé, todos éramos tão mais felizes sem quase nada, do que somos hoje, com quase tudo.
Pudesse eu, com o amor infinito que lhe dedico, mudar o estranho e silencioso mundo em que a Beirã se está a transformar e aos campos que a rodeiam, estas paisagens megalíticas onde, escondidos no meio de canchos e balseirões pontuam imensos testemunhos milenares dos povos que se deixaram seduzir por tanta beleza e aqui escolheram viver e morrer.
Pudesse eu, com o amor infinito que lhe dedico, mudar o estranho e silencioso mundo em que a Beirã se está a transformar e aos campos que a rodeiam, estas paisagens megalíticas onde, escondidos no meio de canchos e balseirões pontuam imensos testemunhos milenares dos povos que se deixaram seduzir por tanta beleza e aqui escolheram viver e morrer.
Pudesse eu trazer de volta o reboliço dos comboios e dos passageiros, movimento e vida da nossa estação. Voltar a ter ofertas de trabalho em todas as áreas, abrir as tabernas-mercearias de novo, acender a luz em cada casa, descer a rua da igreja ou da escola a ouvir gente a conversar no seu interior, sentir aqueles aromas de vida, ver o fumo a sair das chaminés.
Zéi...
Hã????
Acorda...
Pois...
Um dia de cada vez. Fazer o quê?
Mas saibam todos que viverei inconformado o resto dos meus dias. E termino como comecei. Nunca nada foi fácil na puta da minha vida. Comi o pão do que o diabo amassou inúmeras vezes. Vivi muitos e amargos dias. Mas nada se compara a esta mágoa de ver a minha terra em agonia antes de mim. E também não consigo perceber porque teve que mudar-se o que estava bem...
José Coelho
03.04.19